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História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/I/III

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Grandes dúvidas e diferentes se começavam a mover sobre as conquistas das terras do Novo Mundo, e houveram de crescer cada dia mais, se os reis católicos de Castela, d. Fernando, e d. Isabel, sua mulher, e el-rei de Portugal, d. João Segundo, que as iam conquistando não atalharassem com um concerto, que entre si fizeram, de que também deram conta ao Papa, e houveram sua aprovação e beneplácito. O concerto foi, que de uma das ilhas de cabo Verde chamada Santo Antão se medissem 370 léguas para o oeste, e dali lançando uma linha meridiana de norte a sul, todas as terras e ilhas que estavam para descobrir desta linha para a parte do oriente fossem da coroa de Portugal, e as ocidentais da coroa de Castela.

Conforme a isto, diz Pedro Nunes, famoso cosmógrafo, que a terra do Brasil da Coroa de Portugal começa além da ponta do rio Amazonas, da parte do oeste no porto de Vicente Pizon, que demarca em dois graus da linha equinocial, para o norte, e corre pelo sertão até além da Baía de S. Mathias, por 44 graus, pouco mais ou menos, para o sul, e por esta medida / diz o mesmo cosmógrafo / tem o Brasil pela costa 1500 léguas; porém, dado que assim seja na teoria a prática é não chegar ao Brasil mais que até o rio da Prata, que esta em 35 graus, e, contudo, ainda tem mais de 1000 léguas por costa, porque posto que em algumas partes corre de norte a sul, que são os graus só de 17,5 léguas: todavia pela maior parte, que é para o sul do cabo de Santo Agostinho até o rio da Prata, corre de nordeste a sudoeste, que são de 25 léguas, e para o norte do cabo Branco até o rio Amazonas, quase de leste a oeste, onde se altera o grau, se multiplicam as léguas, e assim não é muito que em 35 graus haja tantas.

Donde se colige também, que é a terra do Brasil da figura de uma harpa, cuja parte superior fica mais larga ao norte correndo do oriente ao ocidente, e as colaterais a do sertão do norte a sul, e da costa do nordeste a sudoeste, se vão ajuntar no rio da Prata em uma ponta à maneira de harpa, como se verá no mapa mundi, e na estampa seguinte.

Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até agora não houve quem a andasse, por negligência dos portugueses que, sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentam-se de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos.

Depois do sobredito concerto e demarcação, se moveram ainda novas dúvidas sobre a conquista destas terras; porque um português por nome Fernão de Magalhães, homem de grande espírito, e de muita prática e experiência na arte de navegação, por um agravo que teve de el-rei d. Manuel, por lhe não mandar acrescentar um tostão a moradia que tinha para ficar igual a de seus antepassados, se tirou do seu serviço e se passou ao imperador Carlos Quinto, oferecendo-se até dar maiores proveitos da Índia de que tinham os portugueses, e por viagem mais breve e menos custosa e perigosa que a sua, por um estreito que ele novamente descobrira na costa do Brasil; e lhe pôs também as ilhas de Maluco na demarcação de Castela. Ao que o imperador não somente deu ouvidos, mas admitiu ao seu serviço, e posto que el-rei lhe escreveu logo, fazendo-lhe as lembranças necessárias, não deixou de dar navios e gente a Fernão de Magalhães com que cometeu a viagem, e foi pelo estreito às ilhas de Maluco, onde todos se perderam, exceto um, que depois de passar muitos trabalhos e perigos, e cinco meses de fome estreitíssima, de que lhe morreram 21 pessoas, os que ficaram vivos, constrangidos da extrema necessidade, arribaram-se à ilha de Cabo Verde, onde os portugueses, enquanto não souberam da viagem que traziam, os agasalharam e proveram com todos os mantimentos e refrescos necessários, porque os castelhanos diziam virem das Antilhas, mas depois que entenderam a verdade, determinaram secretamente de lançar mão da nau, e a fizeram deter, até darem aviso ao reino, o que também aventaram os castelhanos, e se fizeram à vela com tanta pressa, que não tiveram tempo de recolher o seu batel, e os da ilha o tomaram com 13 homens, que estavam em terra, e os mandaram logo a el-rei com novas do que passava. el-rei que já nesse tempo era d. João Terceiro, por falecimento de el-rei d. Manuel, seu pai, que havia um ano era morto, a 13 de dezembro de 1521, mandou logo quatro caravelas em busca do navio, mas por maior pressa, que se deram, acharam novas, que já era aportado em Sevilha.

Pelo que determinou no seu Conselho de mandar pedir ao imperador toda a especiaria, que o navio trouxera das ilhas de Maluco, por estarem dentro da sua demarcação, e que não quisesse começar a dar motivo de se quebrarem as pazes, que por ambos estavam ratificadas, e assim o escreveu ao imperador e a Luiz da Silveira, que havia mandado por seu embaixador a Castela sobre casamentos e lianças, escreveu mudasse a substância da embaixada, e só tratasse deste negócio, como também o mandou fazer o imperador pelo seu secretário que estava em Portugal, Cristóvão Barroso, ao qual escreveu, que falasse logo a el-rei, e lhe desse uma carta, que sobre isso lhe escrevia, em que se queixava muito de todas estas coisas, e principalmente de ele mandar no alcance da sua nau, que vinha carregada de especiaria das terras, que cabiam na sua demarcação sem tocar por toda a Índia e que isto era quebrar as capitulações antigas, e novas das pazes, que estavam assentadas, e juradas de um reino a outro, sendo todos os navios portugueses por seu mandado mui bem recolhidos em todos os portos de seus senhorios, por onde lhe pedia, que lhe mandasse soltar os presos, e castigar na ilha os que prenderam: às quais queixas se respondeu de parte a parte, que se poriam em juízo, e se julgaria o que fosse justiça.

Mas sem falta se viera o negócio a averiguar pelas armas, se não se efetuassem neste tempo os casamentos del-rei com a rainha d. Catarina irmã do imperador, e do imperador com a imperatriz d. Isabel, irmã del-rei com que ficaram duas vezes cunhados, e irmãos, e pelo conseguinte em muita paz e amizade.

Também el-rei Francisco de França desejoso de ter parte nos grandes proveitos, que diziam tirar-se destas terras, começou a argüir novas dúvidas sobre a demarcação que entre si os reis de Portugal fizeram com os de Castela, da qual ele se lançara de fora sendo requerido para isso, e agora sentia muito a renunciação, que tinha feito. Donde se veio a dizer, que pelo desgosto, que tinha destes dois reis de Portugal e Castela repartirem entre si o mundo, e o demarcarem à sua vontade, consentia andarem os seus vassalos pelo mar tão soltos, que não somente roubavam os navios, mas cometiam as ditas terras, e as queriam povoar, principalmente as do Brasil, como adiante veremos.