História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/I/XII

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D. Diogo de Avalos vizinho de Chuquiabue no Peru na sua Miscelânea Austral, diz que nas serras de Altamira, em Espanha, havia uma gente bárbara, que tinha ordinária guerra com os espanhóis, e que comiam carne humana, do que enfadados os espanhóis juntaram suas forças, e lhes deram batalha na Andaluzia, em que os desbarataram, e mataram muitos. Os poucos que ficaram não se podendo sustentar em terra a desempararam, e se embarcaram para onde a fortuna os guiasse, e assim deram consigo nas ilhas Fortunadas, que agora se chamam Canárias: tocaram as de Cabo Verde e aportaram no Brasil: saíram dois irmãos por cabos desta gente, um chamado Tupi e outro Guarani, este último deixando o Tupi povoando o Brasil passou ao Paraguai com sua gente, e povoou o Peru: esta opinião não é certa, e menos o são outras, que não refiro, porque não tem fundamento: o certo é que esta gente veio de outra parte, porém donde não se sabe, porque nem entre eles há escrituras, nem houve algum autor antigo, que deles escrevesse. O que de presente vemos é que todos são de cor castanha, e sem barba, e só se distinguem em serem uns mais bárbaros, que outros / posto que todos o são assaz /. Os mais bárbaros se chamam in genere Tapuias, dos quais há muitas castas de diversos nomes, diversas línguas, e inimigos uns dos outros.

Os menos bárbaros, que por isso se chamam Apuabetó, que quer dizer homens verdadeiros, posto que também são de diversas nações e nomes; porque os de S. Vicente até o rio da Prata são Carijós, os de Rio de Janeiro, Tamoios, os da Bahia, Tupinambás, os do rio de S. Francisco, Amaupiras, e os de Pernambuco, até o rio das Amazonas Potiguaras, contudo todos falam uma mesma linguagem e este aprendem os religiosos que os doutrinam por uma arte de gramática que compôs o padre José de Anchieta, varão santo da ordem da Companhia de Jesus, é linguagem mui compendiosa, e de alguns vocábulos mais abundantes que o nosso Português; porque nós a todos os irmãos chamamos irmãos e a todos os tios, tios, mas eles ao irmão mais velho chamam de uma maneira, aos mais de outra. O tio irmão do pai tem um nome, e o tio irmão da mãe outro, e alguns vocábulos têm de que não usam senão as fêmeas, e outros que não servem senão aos machos, e sem falta são mui eloqüentes, e se prezam alguns tanto disto, que da prima noite até pela manhã andam pelas ruas e praças pregando, excitando os mais a paz, ou a guerra, ou trabalho, ou qualquer outra coisa que a ocasião lhes oferece, e entretanto que um fala todos os mais calam, e ouvem com atenção, mas nenhuma palavra pronunciam com f, l ou r, não só das suas, mas nem ainda das nossas, porque se querem dizer Francisco, dizem Pancicu; e se querem dizer Luiz, dizem Duhi; e o pior é que também carecem de fé, de lei e de rei, que se pronunciam com as ditas letras.

Nenhuma fé tem nem adoram a algum Deus; nenhuma lei guardam, ou preceitos, nem tem rei que lha dê, e a quem obedeçam, senão é um capitão, mais para a guerra, que para a paz, o qual entre eles é o mais valente e aparentado; e morto este, se tem filho, e é capaz de governar, fica em seu lugar, senão algum parente mais chegado ou irmão.

Fora este, que é capitão de toda a aldeia, tem cada casa seu principal, que são também dos mais valentes, e aparentados, e que tem mais mulheres; porém nem a estes, nem ao maioral pagam os outros algum tributo, ou vassalagem, mais que chamá-los quando tem vinhos, para os ajudarem a beber, ao que são muito dados, e os fazem de mel, ou de frutas, de milho, batatas, e outros legumes mastigados por donzelas, e delidos em água até se azedar, e não bebem quando comem, senão quando praticam, ou bailando, ou cantando.