História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/IV/XXXIV
É tão necessário ao bom governo do Brasil zelarem os governadores a conversão dos gentios naturais, e a assistência dos religiosos com eles, que se isto viesse a faltar seria grande mal, porque como estes índios não tenham bens que perder, por serem pobríssimos, e desapropriados, e inconstantes, que os leva quem quer facilmente, se espalham donde não podem acudir aos rebates dos inimigos, como acodem das doutrinas em que os religiosos os tem juntos, e principalmente contra os negros de Guiné, escravos dos portugueses, que cada dia se lhe rebelam, e andam salteando pelos caminhos, e se o não fazem pior é com medo dos ditos índios, que com um capitão português os buscam, e os trazem presos a seus senhores.
Entendendo isto bem o governador Diogo Botelho apertou muito com o nosso custódio, que então era, que pois doutrinávamos os Tabajaras / do que os Potiguares estavam mui invejosos /, desse também ordem, e ministros, que os doutrinassem, pois essa foi a principal condição com que aceitaram as pazes na Paraíba, e havia cinco anos que os entretínhamos dizendo-lhes que fizessem primeiro igrejas, ornamentos, sinos, e o mais, que era necessário, e vendo que o custódio se escusava por não ter frades peritos na língua brasílica, escreveu a Sua Majestade, e ao nosso ministro provincial grandes; pelo que vindo do reino o irmão custódio frei Antônio da Estrela, veio sobre isto muito encarregado, e ordenou três doutrinas para os Potiguares da Paraíba, além das duas que tínhamos dos Tabajaras, onde já também havia alguns Potiguares casados, pondo quatro religiosos em cada uma, porque como era tanto o gentio, além das aldeias em que residiam os frades tinham outras muitas de visita, era necessário andarem sempre dois por elas, doutrinando-os e batizando os enfermos, que estavam in extremis, que foram mais de sete mil, fora as crianças, e adultos catecúmenos, que foram quarenta e cinco mil, como consta dos livros dos batizados enquanto os tivemos a nosso cargo, confesso que é trabalho labutar com este gentio com a sua inconstância, porque no princípio era gosto ver o fervor e devoção, com que acudiam à igreja, e quando lhes tanjiam o sino à doutrina ou a missa corriam com um ímpeto e estrépito, que pareciam cavalos mas em breve tempo começaram a esfriar de modo que era necessário levá-los à força, e se iam morar nas suas roças, e lavouras, fora da aldeia, por não os obrigarem a isto; só acodem todos com muita vontade nas festas em que há alguma cerimônia porque são mui amigos de novidades, como dia de S. João Batista, por causa das fogueiras, e capelas, dia da comemoração geral dos defuntos, para ofertarem por ele, dia de Cinza, e de Ramos, e principalmente pelas Endoenças, para se disciplinarem, porque o tem por valentia, e tanto é isto assim, que um principal chamado Iniaoba, e depois de cristão Jorge de Albuquerque, estando ausente na Semana Santa, chegando a aldeia nas Oitavas da Páscoa, e dizendo-lhe os outros que se haviam disciplinado grandes e pequenos, se foi ter comigo, que então ali presidia, dizendo «como havia de haver no mundo que se disciplinassem até os meninos, e ele sendo tão grande valente / como de feito era / ficasse com o seu sangue no corpo sem o derramar, respondi-lhe eu que todas as coisas tinham seu tempo, e que nas Endoenças se haviam disciplinados em memória dos açoutes que Cristo Senhor Nosso por nós havia padecido, mas que já agora se festejava sua gloriosa Ressurreição com alegria, e nem com isto se aquietou, antes me pôs tantas instâncias dizendo que ficaria desonrado e tido por fraco, que foi necessário dizer-lhe fizesse o que quisesse, com o que logo se foi açoutar rijamente por toda a aldeia, derramando tanto sangue das suas costas quanto os outros estavam por festa metendo de vinho nas ilhargas.