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História do Brasil (Frei Vicente do Salvador)/V/XX

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Quando os holandeses tomaram a Bahia acharam trinta navios ancorados, alguns ainda carregados com as fazendas, que trouxeram do reino, outros de açúcar, já para partirem, outros de farinha da terra, e outros mantimentos para Angola, os quais todos tomaram descarregando-os nos seus, e em suas lojas, escolheram os melhores para os armarem, e servirem deles, e aos mais meteram no fundo, e fora estes lhes vieram depois a cair nas mãos alguns vinte; porque como este porto é de tanto comércio, e vem a ele de partes tão remotas, que nem daí a quatro meses se pôde nelas saber como estava impedido por si se vinham entregar, e ancorar entre os inimigos, com quanto lhes era necessário de farinha de trigo, biscoito, azeite, vinho, sedas, e outras ricas mercadorias, e por remate lhes veio um do rio da Prata carregado dela, em que vinha d. Francisco Sarmento, que havia servido em Potosi de corregedor, e trazia mulher e filhos, e um genro e neto, que todos recolheu o coronel em sua casa depois de roubados, e lhes deu mesa e vestidos.

Entre estes navios tomados foi logo dos primeiros um o dos padres da companhia, em que costumam visitar os colégios e casas, que tem por esta costa, e nesta ocasião vinha ao Rio de Janeiro o padre Domingos Coelho, seu provincial, que ia já acabando, e o padre Antônio de Mattos, que lhe havia de suceder, e outros padres e irmãos da companhia, que por todos eram 10.

Vinham também quatro religiosos de S. Bento, e eu, e meu companheiro da ordem do nosso padre S. Francisco: amanhecemos aos 28 de maio da dita era de 1624 na ponta do morro de S. Paulo, que é por onde se entra na primeira boca da Bahia, onde vimos duas lanchas, e uma nau, que se vieram a nós, e brevemente ferraram do navio por vir desarmado, e se senhorearam dele, e de quanto trazia, que eram caixões de açúcar, marmeladas, dinheiro, e outras coisas de encomendas, e de passageiros, que nele vinham e nos trouxeram para o porto, donde nos repartiram pelas suas naus de dois em dois, e de quatro em quatro, e assim estivemos até o fim de julho, que o seu general se partiu com 11 naus para as salinas, e o almirante com cinco, e dois patachos para Angola, e juntamente partiram quatro em direitura carregadas de açúcar para Holanda, em que mandaram o governador Diogo de Mendonça Furtado, com seu filho, e o ouvidor-geral Pero Casqueiro da Rocha, e o sargento-mor, e também os padres da companhia, e os de S. Bento, e a nós deixaram para nos trocarem pelos seus, que estavam cativos dos assaltos, sobre o que andava um português, morador na terra, que falava a língua flamenga, o qual depois acharam que lhe era tredo, e os enganava, pelo que o prenderam, e enforcaram com um irmão seu, e um mulato, que os acompanhava, e a nós se ficaram dilatando as esperanças da nossa liberdade, de tal sorte que meu companheiro por melhor arriscar-se a ir a nado, o que eu ainda que quisera não podia fazer, porque quem não sabe nadar vai-se ao fundo, e assim estive na prisão do mar quatro meses, os quais passados me pediu Manuel Fernandes de Azevedo um dos moradores portugueses, que ficaram na cidade, e concederam que viesse para sua casa, e pudesse andar em sua companhia pela cidade, contanto que não chegasse aos muros e fortificações, donde me ocupei em confessar os portugueses, em forma que nem um morreu sem confissão, como até este tempo morriam, mas não eram muitos, porque todos os que se quiseram ir deram licença, e três navios, em que se foram um para Pernambuco, e dois para o Rio de Janeiro, nos quais foram trezentas pessoas, os mais deles gente do mar, e passageiros dos navios, que tomaram, também fugiram muitos para o nosso arraial, para onde lhes não queriam dar licença, e de lá se veio para eles uma mulher casada fugindo a seu marido com uma filha formosa, que o coronel casou com um mercador holandês, e lhes fez grandes festas em seu recebimento de músicas, danças, e banquetes, que duraram três dias.

Aos mais portugueses, que ficamos, davam ração como aos seus de pão, vinho, azeite, carne, peixe cada semana; e as obras que lhe faziam alguns, que eram alfaiates e sapateiros, e camisas, que as mulheres faziam pagavam muito bem.