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Invenção dos Aeróstatos Reivindicada/Capítulo 1

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I
O privilegio

A petição em que Bartholomeu Lourenço de Gusmão requereu a el-rei D. João V para que ninguem, sem sua licença ou de seus herdeiros, podesse usar da machina, que inventara para navegar pelo elemento do ar, foi impressa com o desenho e explicações respectivas no anno de 1774[1]. E d'este papel a trasladaram fielmente Francisco Freire de Carvalho para a sua Memoria[2], publicada entre as da Academia real das sciencias, e o sr. Monteverde para o jornal litterario, intitulado Recreio[3]. Conserva-se, porém, na Bibliotheca da Universidade de Coimbra uma copia da mesma petição[4] com algumas variantes e muito mais conforme à lettra do alvará, em que el-rei D. João V concedeu o privilegio a Bartholomeu Lourenço de Gusmão. Uma copia egual a esta teve presente o sr. Innocencio Francisco da Silva quando annotou o capitulo IV das Maravilhas do genio do homem[5]. Na Bibliotheca publica de Evora, finalmente, se conserva tambem uma copia similhante, de lettra dos principios do seculo passado, e conjunctamente outra copia de lettra mais recente, em tudo conforme á do impresso de 1774 e com as mesmas explicações que n'elle se encontram[6]. A'quella penultima copia, por mais correcta, damos a preferencia da transcripção.

Senhor: Diz o Padre Bartholomeu Lourenço, que elle tem descoberto um instrumento para se andar pelo ar da mesma sorte que pela terra, e pelo mar, e com muito mais brevidade; fazendo-se muitas vezes duzentas e mais leguas de caminho por dia, no qual instrumento se poderão levar os avisos de mais importancia aos exercitos e a terras mui remotas quasi no mesmo tempo em que se resolverem : em que interessa Vossa Magestade muito mais que nenhum dos outros Principes, pela maior distancia dos seus dominios; evitando-se d'esta sorte os desgovernos das conquistas, que procedem em grande parte de chegar muito tarde a noticia d'elles a Vossa Magestade. Além do que, poderá Vossa Magestade mandar vir todo o precioso d'ellas com mais brevidade, e mais seguramente poderão os homens de negocio passar letras e cabedaes com a mesma brevidade. Todas as praças sitiadas poderão ser soccorridas tanto de gente como de munições e viveres a todo o tempo, e retirarem-se d'ellas todas as pessoas que quizerem,sem que o inimigo o possa impedir. Descobrir-se-hão as regiões que ficam mais vizinhas ao Polo do mundo, sendo da nação portugueza a gloria d'este descobrimento, que tantas vezes têm tentado inutilmente as estrangeiras. Saber-se-hão verdadeiramente as longitudes de todo o mundo, que por estarem erradas nos mappas causam muitos naufragios ; além de infinitas conveniencias, que mostrará o tempo, e outras que por si são notorias, que todas merecem a real attenção de Vossa Magestade. E porque d'este invento tão util se podem seguir muitas desordens commettendo-se com o seu uso muitos crimes, e facilitando-se mais na confiança de se poder passar a outros reinos, o que se evita estando reduzido o dicto uso a uma só pessoa, a quem se mandem a todo o tempo as ordens que forem convenientes a respeito do dito transporte, e prohibindo-se a todas as mais sob graves penas, e é bem se remunere ao supplicante invento de tanta importancia :

Pede a Vossa Magestade seja servido conceder ao supplicante privilegio de que, pondo por obra o dito invento, nenhuma pessoa, de qualquer qualidade. que fôr, possa usar d'elle em nenhum tempo n'este reino e suas conquistas, nem trazel-o de fóra para o dito reino ou conquistas com qualquer pretexto sem licença do supplicante ou de seus herdeiros, sob pena de perdimento de todos seus bens, ametade para o supplicante e a outra para quem o accusar, e sobre as mais penas, que a Vossa Magestade lhe parecer que pede a importancia d'este negocio, as quaes todas terão logar tanto que constar que alguem faz o sobredicto instrumento, ainda que não tenha usado d'elle, para que não fiquem frustradas as ditas penas, ausentando-se o que n'ellas tiver incorrido.

E. R. M.

A' petição da Bibliotheca da Universidade[7] acrescentou o copista a nota seguinte :

Desceu a consulta, concedeu-se-lhe o privilegio, e dizem tem comprado para a fabrica do tal instrumento aereo 24 arrobas de arames surtidos, isto é, grossos e delgados, e quantidade de papel ; com que teremos algum d'esses chamados papagaios. Dizem tambem que a primeira jornada que faz é a buscar tantos mil moios de trigo, que estará aqui brevemente etc.

D'onde se deprehende haver-se tirado esta copia no anno de 1709, na occasião em que Bartholomeu Lourenço requereu o privilegio.

Depois da copia impressa em 1774[8] vem o seguinte additamento :

Consultou-se no Desembargo do Paço a El-Rei com todos os votos ; e que o premio que pedia era mui limitado, e que se devia ampliar. Sahiu despachado com a resolução seguinte : Como parece á Meza ; e além das penas accrescento a de morte aos transgressores. E para com mais vontade se applicar ao novo instrumento, obrando o effeito, que relata, lhe faço mercê da primeira dignidade que vagar em as minhas collegiadas de Barcellos ou Santarem, e de lente de prima de mathemathica na minha Universidade de Coimbra com seiscentos mil réis de renda, que crio de novo em vida do supplicante sómente. Lisboa 17 d'abril de 1709. Com a rúbrica de Sua Magestade.[9]

Francisco Freire de Carvalho, com quanto escrupuloso na critica e analyse dos documentos que colligiu, não poz em duvida a authenticidade d'este despacho[10]. Não faltam, porém, razões para o reputar apocrypho. Em primeiro logar, não parece muito crivel que ao requerente se concedesse, coisa que não pedia, e se lhe desse o premio de um invento, cujo resultado era ainda a ssaz duvidoso. Em segundo logar, se Bartholomeu Lourenço de Gusmão tivesse realmente sido nomeado lente de prima da faculdade de mathematica não deixaria de o dizer Barbosa Machado que mencionou todas as honras e dignidades de um seu contemporaneo, a quem tantos encomios prodigalisou.[11] Em terceiro logar, se no despacho da petição se tivesse imposto aos que usassem da machina, sem licença do inventor, a pena de morte, excessiva para tal delicto, viria forçosamente isto mesmo declarado no alvará, (docum. inf.), em que apenas se vê consignada a pena de sequestro, requerida na petição. E' verdade que, foram pelo padre João Baptista de Castro mencionadas n'um seu diario, que se conserva na Bibliotheca de Evora, as alladidas mercês.[12] Isto porém não basta para provar a authenticidade do despacho, sendo possivel que o citado escriptor visse a copia da petição, que depois, em 1774, foi impressa. Deve notar-se que o despacho só appareceu n'esta copia, de cuja inexactidão se poderá convencer quem a confrontar com o alvará, e não se encontra em nenhuma das tres copias, a que já nos referimos, todas conformes e anteriores a 1774, e vem a ser as das Bibliothecas de Coimbra e Evora e a que o sr. Innocencio transcreveu em a nota da obra citada.

Deferiu el-rei D. João V o requerimento de Bartholomeu Lourenço de Gusmão, concedendo-lhe o privilegio pelo alvará, que abaixo transcrevemos da Memoria, em que Francisco Freire de Carvalho o publicou[13], declarando ter sido fielmente copiado na Torre do Tombo da Chancellaria d'el-rei D. João V--Officios e mercês—liv. 31, fi. 202 v.°

Eu El-Rei Faço saber que o P. Bartholomeu Lourenço me representou por sua petição, que elle tinha descoberto um instrumento para se andar pelo ar, da mesma sorte que pela terra e pelo mar, e com muito mais brevidade, fazendo-se muitas vezes duzentas e mais leguas de caminho por dia ; no qual instrumento se poderiam levar os avisos de mais importancia aos exercitos e a terras mui remotas, quasi no mesmo tempo em que se resolviam, no que interessava Eu mais que todos os outros Principes pela maior distancia dos meus Dominios, evitando-se d'esta sorte os desgovernos das Conquistas, que procediam em grande parte, de chegar mui tarde a Mim a noticia d'elles ; além de que poderia Eu mandar vir todo o precioso d'ellas muito maís brevemente e mais seguro, e poderiam os homens de negocio passar letras e cabedaes com a mesma brevidade, e todas as praças sitiadas poderiam ser soccorridas tanto de gente como de munições e vivères a todo o tempo, e retirarem-se d'ellas as pessoas que quizerem, sem que o inimigo o podesse impedir ; e que se descobririam as regiões que ficam mais vizinhas aos polos do mundo, sendo da Nação Portugueza a gloria d'este descobrimento, que tantas vezes tinham tentado inutilmente as Estrangeiras. Saber-se-hão as verdadeiras longitudes de todo o mundo, que por estarem erradas nos mappas causavam muitos naufragios ; além de infinitas conveniencias que mostraria o tempo, e outras que por si eram notorias, que todas mereciam a Minha Real Attenção : e porque d'este invento tão util se poderiam seguir muitas desordens, commettendo-se com o seu uso muitos crimes, e facilitando-se muitos mais na confiança de se poder passar logo aos outros Reinos, o que se evitaria, estando reduzido o dicto uso a uma só pessoa, a quem se mandassem a todo o tempo as ordens que fossem convenientes a respeito do dicto transporte, prohibindo-se a todas as mais sobre graves penas; por ser justo que se remunerasse a elle Supplicante invento de tanta importancia, Me pedia lhe fizesse mercê conceder o privilegio de que, pondo por obra o dicto invento, nenhuma pessoa de qualidade que for podesse usar d'elle em nenhum tempo n'este Reino e suas Conquistas com quaquer pretexto sem licença d'elle Supplicante ou de seus herdeiros, sob pena e perdimento de todos os seus bens, ametade para elle Supplicante e a outra ametade para quem os accusasse e sobre as mais penas que a Mim me parecessem, as quaes todas teriam logar tanto que constasse que alguem fazia o sobredicto instrumento, ainda que não tivesse usado d'elle, para que não ficassem frustradas as dictas penas, ausentando se o que as tivesse incorrido : E visto o que allegou, Hei por bem fazer-lhe mercê ao Supplicante de lhe conceder o privilegio de que pondo por obra o invento de que tracta, nenhuma pessoa de qualidade que for possa usar d'elle em nenhum tempo n'este Reino e suas conquistas com qualquer pretexto sem licença do Supplicante, ou de seus herdeiros, sob pena de perdimento de todos os seus bens, ametade para o Supplicante e a outra ametade para quem os accusar : e só o Supplicante poderá usar do dicto invento, como pede na sua petição. E este Alvará se cumprirá inteiramente, como n'elle se contem ; e valerá posto que seu effeito haja de durar mais de um anno sem embargo da Ordenação do Liv. 2.° Tit. 4.° em contrario. E pagou de novos direitos quinhentos e quarenta reis que se carregaram ao Thesoureiro d'elles a fl. 160 do Liv. 1.° da sua Receita ; e se registou o Conhecimento em forma no Liv. 1.° do Registo geral a fl. 149. José da Maia e Faria o fez em Lisboa aos 19 d'Abril de 1709. Pagou d'esta quatro centos reis. Manoel de Castro Guimarães o fez escrever.—REI.--Conferido. Patricio Nunes: E comigo José Corrêa de Moura.

Não é este alvará a prova unica da importancia que dava o rei magnanimo á empresa de Bartholomeu Lourenço : outras não menos concludentes deixaremos registadas nos capitulos que se seguem.

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  1. «Petição do Padre Bartholomeu Lourenço, sobre o instrumento que inventou para andar pelo ar, e suas utilidades. Lisboa : na offic. de Simão Thaddeo Ferreira 1774.»
    Aqui e n'outras partes, em que alludimos a este papel, referimos a impressão ao anno de 1774, data que se lê na ultima pagina. Demonstrou porém o sr. Innocencio Francisco da Silva no tomo VII a pag. 13 do «Diccionario Bibliographico» que houve erro, talvez de impressão, e que em logar de 1774 deveria ser provavelmente 1794, anno em que o capitão Lunardi deu em Lisboa o espectaculo da sua ascenção aerostatica. O sr. Innocencio adduziu, como prova concludente do erro, não ter o impressor Simão Thadeo Ferreira typographia em seu nome senão de 1781 em diante.
  2. «Memoria que tem por objecto revindicar para a nação portugueza a gloria da invenção das machinas aerostaticas. Lida na sessão litteraria da Academia real das sciencias de Lisboa de 20 de maio de 1840 pelo seu socio correspondente Francisco Freire de Carvalho. Foi impressa na Historia e Memorias da Academia real das sciencias de Lisboa, 2.° serie, tom. 1.° part. 1., 1843.
  3. «O Recreio. Jornal das Familias» tom. 2.° Lisboa 1836.
  4. Codice n.° 677 da Bibliotheca da Universidade de Coimbra.
  5. «Maravilhas do genio do homem. Descobrimentos e invenções, descripções historicas divertidas, e instructivas sobre a origem e estado actual dos descobrimentos e invenções mais celebres por Amedée de Bast—Versão portugueza de Matheus Luiz de Magalhães —Annotada por Innocencio Francisco da Silva»—Lisboa—1863.
  6. Cod. CX/2--19 da Bibliotheca de Evora. No cod. CXIII/2--16 d'esta Bibliotheca ha mais outra copia similhante á da Biblioth. da Univ.
  7. Cod. n.° 677 da Bibliotheca da Universidade de Coimbra.
  8. Petição do Padre Bartholomeu Lourenço etc. Lisboa 1774.
  9. A petição e este despacho publicou-os em francez David Bourgeois n'um opusculo intitulado «Recherches sur l'Art de voler, depuis la plus haute antiquité jusqu'á ce jour : pour servir de supplément á la description des experiences aérostatiques de M. Fanjas de Saint Fond.—Paris 1784.» Reproduziu Figuier estes documentos na obra já citada—«Les Merveilles de la science» a pag. 516.
  10. Memoria citada.
  11. Bibliotheca Lusitana, tom. 1.°, pag. 463 e seg.
  12. Cod. CXII/2--6 e CXII/2--44 da Bibliotheca publica de Evora. O Diario do primeiro d'estes codices chega atè ao anno de 1774; o do segundo até ao anno de 1768. Começam ambos en 1700, e em ambos se leem sem differença essencial as mesmas palavras a respeito do invento, e são as seguintes :
    «Em março (1709) inventou o padre Bartholomeu Lourenço de Gusmão um instrumento para andar pelo ar, e el-rei lhe fez mercê da primeira dignidade que vagar na collegiada de Barcellos, e de lente de prima de mathematica na Universidade de Coimbra com 600$000 réis de renda : mas nada teve effeito.»
  13. Memoria citada pag. 141. O mesmo alvará foi reimpresso pelo sr. José Feliciano de Castilho em a nota do § 191 na «Grinalda da Arte de amar»—Rio de Janeiro, 1862; e pelo sr. Innocencio Francisco da Silva em a nota citada das «Maravilhas do genio do homem.»