Lágrimas Abençoadas/I/XVI

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—«Quereis a historia dos meus trabalhos, não é verdade?» perguntava o monge, com sua sobrinha Maria sentada nos joelhos, e com dois dos outros abraçados.

—«Sim, sim, queremos» respondeu Maria com extranha vivacidade.

—«Não—replicou o coronel—não recordes penas que te não alliviam o receio de outras maiores...»

—«Não é assim...—tornou Frei Antonio—As afflicções, que se recordam com serenidade, parecem zombar das afflicções por vir...»

—«Conte, conte... meu tio» instou Maria com muita doçura, dando á voz a terna inflexão de uma supplica.

E frei Antonio, alegre como se contára apraziveis lances da fortuna, contou assim o transito doloroso dos ultimos mezes da sua vida:

«Viver trinta annos, vendo todos os dias o leito onde se espera morrer, e a sepultura onde o repouso do corpo continuará, foi a minha vida do mosteiro. Ao lado d'esse leito, e d'essa sepultura, vigia quasi sempre o espirito, porque na terra nem ao justo é permittida completa tranquillidade. Vigiar, é entregar ao espirito a guarda do coração; é pôr os olhos em Deus, alonga'-los ao mundo da esperança, enxugar-lhes o pranto por homens, que o desprezam e o desprezam porque o não comprehendem. A vigilia de um monge, tem, ás vezes, dôres, que ninguem póde imagina'-las, sem sentir-se abrasado do santo interesse da humanidade, que se espedaça.

«Não me viste saír da casa do nosso pae, meu irmão!... Eras creancinha, e do colo de nossa mãe me deste um beijo, que me fez chorar, porque era o ultimo, que me davas com labios de innocencia. Nunca mais te vi; mas essas lagrimas, que te vejo agora, são as do meu irmão... é impossivel que o não sejam. Sabias tu que eu existia?»

—«Sabia, mas ha doze annos que não tive novas tuas» respondeu o coronel.

—«Ha doze annos... é verdade... Ha doze annos que frei Antonio dos Anjos descera a um tumulo... O espirito vivia... mas o espirito do penitente, vinculado pela expiação á imagem do seu crime, quebra os vinculos do sangue, se os tem no mundo.

A voz do padre balbuciava estas ultimas palavras, cortadas de pausas, que traíam a sua serenidade contrafeita.

Seguiram-se o silencio, e a anciedade.

Frei Antonio, á custa de um grande sacrificio, e de uma penosa recordação, explicou a seu irmão o extranho silencio de doze annos.

Doze annos tinham sido o prazo em que as noites eram veladas pelo remorso do homem, que tentára uma vez quebrar a alliança que fizera com a renuncia de todos os gosos terrenos. Doze annos de purificação para quem se manchara, um minuto, na rebeldia aos estatutos da sua ordem, fôra um grande prazo, uma longa expiação, um zelo suicida, talvez!

É que os homens não o comprehendem. Doze annos de crimes, e um momento de remorso... isso sim, que, se não em todos os criminosos, em alguns pelo menos, é verosimil e explicavel.

Esses prodigios explica-os facilmente a philosophia materialista: não é o remorso, nem os gemidos do bem torturado pelo mal, nem o temor de Deus: é a organisação com seus mysterios. Mysterios na escola da materia, onde a natureza, positiva e carnal, é tudo! Como é que da seiva do erro se nutrem viçosas as vergonteas da verdade? As luzes faiscam do seio das trevas. Ha máximas preciosas que brilham ao clarão dos incendios philosophicos.