Lágrimas Abençoadas/II/III

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O nome de Fr. Antonio dos Anjos vulgarisou-se com o de sua sobrinha. A ligação de mestre e discipula apregoava as duas pessoas com egual elogio.

Um fidalgo de Lisboa quiz conhecer o egresso. Achou-o semelhante aos gabos, que o engrandeciam. Honrou-o com attenções e obsequios, que occultavam um fim honesto. O fidalgo tinha um filho de dezoito annos, rebelde aos rudimentos das boas sciencias, mas em demasia versado n'esta alchymia do mundo, em que o libertino devora primeiro o cabedal da sua virtude, e sacrifica depois a virtude alheia, como o escravo infeliz d'aquelle prestigio queimava no cadinho a sua subsistencia, e seduzia depois os outros a empobrecerem-se.

Fr. Antonio, instigado pela caridade que lhe impunha a salvação de um naufrago, acceitou a empresa, recusando a feliz perspectiva que devia remunerar-lhe o seu trabalho.

O padre considerou-se imprudente em annuir, quando viu a funesta impressão que tal noticia causou em sua sobrinha, particularmente. Roubarem-lhe o anjo da infancia, quando, adulta, mais carecia d'aquelle esteio a que o seu coração se acostumava, era penalisa'-la com saudades inconsolaveis: era uma crueza, não de um extranho, mas de seu tio, que não tinha precisão de assoldadar-se ao pão alheio. Esta sua queixa, justificada com profunda tristeza, e continuas lagrimas, pungia o coração do velho até ao extremo de o lançar no leito da doença. Era irremediavel a promessa indiscreta: a palavra de honra, que lhe fôra pedida pelo fidalgo: a obrigação que se impoz de arrancar á libertinagem, que dominava grande parte dos antigos fidalgos, um mancebo perdido.

Maria, quando viu adoecer seu tio, ministrou-lhe o balsamo da ferida. Ella mesma, repesa da severidade de seu amor, pede-lhe que vá repartir com os necessitados o pão da sciencia e da virtude, que, tão farto repartia com ella.

—Era peccaminoso o meu egoismo!...—lhe diz—Não pude vencer-me! O meu coração é impetuoso. Meu tio não quiz remediar-me este defeito, reprimindo-me a dedicação com que, ha seis annos, correspondo á sua amizade. Ambos somos culpados; mas eu sou mais... Fui precipitada. Lembrei-me que era abandonada, por ser esquecida algumas horas do dia!... É forte creancisse, não é, meu tio?

—Eu!... esquecer-te... minha filha!...—balbuciou o padre.

—Bem o disse eu! É muito meu amigo... leva a minha imagem no seu coração para onde fôr... tem-me ao seu lado nas suas orações... responde ao meu coração que lhe pergunta a adivinhação d'estes segredos que eu tenho aqui, e só meu tio me adivinha... é tudo isto... sim, meu caro tio?

—Sim, tudo, minha menina.

—Oh meu tio!—continuou ella exaltada—não nos podemos separar. A intelligencia é um fio electrico. Ha vibrações na minha alma, que, se meu tio as não ouvisse, seriam perdidas, como as notas de uma harpa tocadas pelo vento em cima de um sepulchro deserto. Meu pae, e minha mãe, e meus irmãos, quero-os para o amor, quero-os para o coração, morro pela sua felicidade se m'o exigirem; mas o meu espirito precisa de alimento, a minha intelligencia quer um pasto ideal que não acho aqui, se meu tio me desampara. Não vê que foi um impulso providencial, que o trouxe aqui salvando-o de tantas mortes que lhe embaraçaram o caminho? Eu não tenho sido ingrata a Deus: ergo-lhe as mãos todos os dias, reconhecida, humilde, mas venturosa de ter nascido sua sobrinha!... Não me faça persuadir que Deus olha com indifferença as minhas preces...[1]

—Maria, interrompeu o padre, tu não pensaste o que dirias antes de vires ao meu quarto!... Magoaram-me as tuas ultimas expressões... Não me pareceram tuas...

E Maria arquejava sem desafogo. Parecia não escutar o tio.

—Vem cá, minha filha—continuou elle, extendendo-lhe a mão, com um sorriso affavel—vem cá. Que queres tu de mim? Não queres que eu vá fazer um bom filho, e um bom cidadão?

—Vá, vá, meu tio!—exclamou ella, com energia.

—Não achas tão sublime a missão confiada por Deus ao padre velho, que não tem outra herança a legar-te, senão a memoria da sua beneficencia?

—Sim, sim... é o que ha de superior a tudo... ao amor, á vida, á esperança... Sim, sim...dê-me esse irmão em crenças, veja-o subir para Deus, impellido pela sua palavra inspirada... eu pedirei por elle; trocaremos as nossas orações; elle pedirá por mim, porque a conversão de um perdido enche o céo de alegria e faz exultar os anjos!... Elle ha de, inspirado pelo céo, compreender, como nós já compreendemos, desde que vivemos artistas, o que é o amor de Deus e a virtude do trabalho.

Notas[editar]

  1. Nem sempre é inverosimil a linguagem figurada. Mais de um critico, a estas horas, se indispõe contra as hyperboles de Maria, aos quatorze annos tão espevitada! Pois creiam que não é justo o seu reparo. Se lhes eu tivesse dito que Maria convivera nas salas onde o lyrismo do coração não tem nada a fazer com a vida positivissima que lá se vive, em linguagem chan e desenflorada de figuras inuteis, tinham razão sobeja para dizerem que nunca por cá toparam d'estas donzellas Ciceros ou donzellas Gongoras, como quizerem. Attendam, porém, ao facto, se não teem a experiencia: mulher instruida, ou presumida de instrucção, se lhe falta o trato que precisa o estylo segundo as circumstancias, fala assim, e escreve assim. Aquella filha de Manuel de Sousa e D. Magdalena de Vilhena, que o immortal Garrett faz morrer de vergonha, em Fr. Luiz de Sousa, era, com menos sete annos, muito mais espirituosa, e, se querem, mais desnatural. O inverosimil é algumas vezes verdadeiro, assim como
    Le vrai peut quelque foi n'être pas vraisemblable.

    (Boileau, Art. poet. c. 3.^e).

    [N. do Autor]