Lágrimas Abençoadas/IV/XVI

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Alvaro da Silveira inspirava receios de reincidencia ao padre. A sua primeira conversão parecia sincera e firme, e o anjo do bem abandonára-o ás presas do vicio resurgente. A segunda, semelhante á primeira, com quanto abonada pela experiencia de duras penas, poderia, chegando ao extremo, não vingar. Fr. Antonio temia o tempo, tremia em segredo; e não ousava dizer os seus temores á sobrinha ou á irmã.

O marido de Maria, penetrando o coração do padre, dissera-lhe:

—Conheça o coração humano, meu caro bemfeitor. A minha conversão religiosa foi um abalo que devia parar. Eu era um homem que achava pequeno o mundo. Scismára muitas vezes na eternidade, quando voltava com enojo as costas aos vicios satisfeitos. O meu espirito, immergido no lodo, não podia voejar acima do que os olhos abrangiam, e os sentidos confirmavam. Refazia-me novamente de forças para a libertinagem, procurava-lhe com cynica avidez as faces novas e, desesperado de encontra'-las, invocava outra vez a idéa confusa do meu destino.

«Quando frei Antonio me appareceu, a minha alma era um vacuo horrivel. Ouvi-o, era a primeira vez que a voz de um homem respondia ás minhas perguntas a Deus. Affiz-me a considera'-lo um justo, alteei-me onde os seus vôos me chamavam, e sentia rejuvenescer a minha alma de viço e alentos nunca experimentados. Maria, este anjo de Deus, fez que o meu coração se purificasse ao mesmo tempo que o espirito se regenerava. O amor que lhe dei, immenso e fervoroso, não era mentira; nem podia sê'-lo, por que a mentira não se sustenta á custa do sacrificio da liberdade.

«O amor d'ella era para mim uma emanação do amor divino. No dia em que aquella ardente fé nos divinos preceitos se entibiasse, arrefeceria tambem o amor a sua sobrinha. Estavam vinculados ambos os affectos: dependiam um do outro. A religião era como a lampada suspensa no meio do templo que reflecte o seu clarão em todos os altares. Logo que se apagou, fizeram-se trevas em todas as minhas affeições nobres, em todas, até vergonha senti de haver tido remorso dos meus vicios. Foi por isso que a sua presença, padre Antonio, me aborrecia, que os conselhos de meu pobre pae me enfastiavam, e que as lagrimas de minha mulher me levavam desde o desagrado até ao odio. Isto foi horrivel, mas verdadeiro.

«Como a luz da religião se extinguiu em minha alma, não sei. Lembra-me que me assaltaram saudades de uma sociedade que me ridicularisava a conversão e o casamento. Saudades de uma vida mesclada de tedios e de alegrias. Necessidade de alargar o circulo de ferro que me apertava a respiração. Era o crime que me visitava com todas as suas galas perfidas. Era o anjo mau da tentação que triumphava, pintando-me insignificante de espirito, de «fortuna», e de belleza uma mulher que parecia violentar-me a adquirir os seus habitos mesquinhamente caseiros e de baixa condição.

«Ultrajei a minha pobre victima com o desprezo, e depois pensei que a mataria com o abandono. Fui um infame dos infames que se não definem.

«Nenhum homem experimentou affrontas semelhantes ás que eu devorei. Todos os meus haveres hypothequei-os ao vicio, e ao crime. Nunca tive uma alegria de alma por um punhado de ouro. Arrojava-o com desesperação aos abysmos onde me diziam que era possivel arrancar-se das mãos do diabo uma sentença de prazer novo. Nunca, nunca! Tocaria a ultima balisa da indigencia, se o meu fausto não apparentasse uma riqueza. Pedi quantias, algumas das quaes não pagarei jámais, porque estou pobre, e outras paguei-as com o vilipendio merecido de um carcere.

«Algumas vezes vi uma sombra veneranda, padre Antonio, e pavorosos sonhos eram aquelles em que eu via minha mulher a expirar-lhe nos braços.

«Revivia-me então a necessidade de gritar pela misericordia divina; mas o grito de contricção era suffocado por um riso blasphemo. Quando o infortunio é superior ás forças humanas apaga-se a luz da razão, fica o espirito na escuridade da demencia, e já não ha alma que se refugie na esperança de uma vida melhor.

«Hoje, sim, frei Antonio. Já não é uma organisação susceptivel de impressões que obedece á eloquencia da sua palavra religiosa. Hoje é o desgraçado, que sente no coração fendido de golpes o poder do balsamo divino, ministrado pela mão d'aquella que victimei. O perdão da martyr é o que me está testemunhando a misericordia do céo. Vejo n'ella a omnipotencia de Deus: não a procuro nos livros, não a preciso da argumentação; não quero que me combatam com o raciocinio a impiedade que o meu coração rejeita. Creio em Deus, meu caro mestre, creio no céo, creio no inferno, creio em tudo que preciso crer para caír de joelhos aos seus pés, e supplicar-lhe que não duvide um momento da minha rehabilitação.»

Padre Antonio recebera-o nos braços, soluçando palavras de benção, e de felicidade inexprimivel.