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Lourenço (Franklin Távora)/V

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A cavidade onde estavam Lourenço e Falcão d'Eça terminava, com a forma de funil, em abertura entre certo bamburral enredado, obra de vinte braças distante do cedro: por esta abertura dificilmente passava um homem. Rastejando um atrás do outro, chegaram os dois à extremidade, e esperaram que cessasse inteiramente o ruído dos passos dos soldados e animais.

— Segue-me - disse Falcão a Lourenço. Nada temas. Quase todo o dia transito por estes lugares onde, para bem dizer, me nasceram os dentes.

Lourenço trazia o espírito preso a certa ordem de idéias que o envolviam como em cipoal mais inextricável do que o bamburral por onde iam. Pensava em livrar o sargento-mor, ainda que para o livramento lhe fosse preciso sacrificar a própria vida. Pensava em castigar atrozmente os inimigos que tinham levado a audácia ao ponto de prenderem o ilustre senhor de engenho, como se fora um dos seus negros: Lourenço estava quase fora de si, arrebatado, nas asas do desespero, da vingança e do ódio.

— "Seu" Falcão - disse ele ao saírem do estreito - se vosmecê não pensa em meio de prender, açoitar, matar, queimar os infames camarões e tunda-cumbes, escusa de estar com estes atalhos e estas voltas, eu não sirvo para isso, não senhor; eu queria morrer mesmo entre eles, contanto que matasse esse cachorro que tem feito tantos latrocínios por aí além.

Ouvindo estas palavras, o capitão parou e encarou o rapaz, como quem queria ler-lhe o íntimo através da face.

— E que cuidas tu, Lourenço? inquiriu a modo de ofendido. Cuidas que não é o meu pensamento de todas as horas, de todos os instantes, tomar uma vingança dos nossos inimigos? Não sabes que estava tudo pronto para darmos hoje um assalto ao engenho de Manoel Carneiro, e tirarmos dali o governador e o ouvidor, e enforcar depois um na tripa do outro? Mas em toda parte há traidores: Cristo teve um Judas para o entregar: eu tive um cunhado. Se não fora a infame traição, podíamos ter a esta hora nossos principais carrascos, prontinhos para um sarapatel no meio destas matas.

— Mas - disse Lourenço - por uma vez mentir fogo a espingarda, a gente não deixa de lhe pôr nova escova e fazer pontaria outra vez sobre a caça.

— Miséria, miséria sem nome! Ajustaram a minha cabeça com o governador. Venderam-me ao ouro português. Denunciaram o abrigo de cinqüenta patriotas, cinqüenta bravos, que representaram nestas matas seculares a nacionalidade brasileira. Pernambucanos degenerados, vilões ruins que lançam com esta ação infame uma mancha eterna sobre a nossa história, rica de páginas verdadeiramente imortais.

— E não poderemos ir tomar aqueles presos?

— Como? Poderíamos fazer uma surpresa, mas não empenhar-nos em luta mais séria. Falta-nos o exército; só temos comandantes. O povo não está conosco. porque o governador o não importuna, antes o chama para o seu lado, fingindo-se amigo dele. Por ora, contamos apenas com meios de defesa, e estes mesmos escassos; meios de agressão não temos nenhum; Talvez para diante possamos compor tropas regulares, que estejam no caso de fazer frente às infantarias de Félix José Machado. Mas não há razão para desanimarmos. Tenho cá um pensamento que, se for posto em prática, a vitória há de ser necessariamente nossa. Vamos ver o que diz da minha idéia o Padre Guerra.

Eram chegados ao novo pouso, que não se distinguia por nenhuma feição particular, a não ser um embastido de árvores colossais, que formavam com sua basta folhagem um abrigo sombrio. Nenhuma árvore fora abatida, nenhuma cabana fora levantada. Viam-se apenas algumas redes armadas, alforjes pelos pés de paus, trouxas, malas e armas.

No momento em que chegaram Falcão d'Eça e Lourenço, havia no pouso de quinze a vinte foragidos, entre os quais estava o Padre Antônio Jorge Guerra.

— Que notícias nos trazeis? perguntou o padre a Falcão.

— Tristes, muito tristes. O Tunda-Cumbe apanhou sempre onze dos nossos companheiros. Que lhes disse eu?

— Grande desgraça!

— Mas, não nos deixemos desanimar, senhores, por este revés. Tratemos de desforra, e eu chamo a vossa atenção para o que vou dizer-vos. Se o bispo se dirigir, por um pastoral, aos povos da capitania, declarando-lhes que está em campo, e pedindo o seu auxílio contra o governo de Félix José Machado, exclusivamente empenhado em acabar com os pernambucanos, fio que o povo acompanhará o seu prelado; e se o acompanhar, a vitória há de ser nossa.

— Toda a dificuldade está em resolver o bispo a fazer a guerra - disse Martinho de Bulhões.

— Não a fará, não a fará nunca - disse o ajudante Bernardo Alemão.

— Se, quando ele exercitava o governo, faltou-lhe ânimo para dirigir a guerra, como tomará hoje à sua conta esta obrigação? inquiriu o coronel Duarte de Albuquerque.

— Mas, senhores, tornou Falcão - refleti que, se não o fizer, ele próprio será preso, e talvez correrá risco a sua cabeça. Ignorais o ódio que lhe votam os principais dos mascates? Ignorais que já foi entre eles ponto resolvido tirar-lhe a vida? Tão fraco será D. Manoel, que nem ao menos se defenda? Não é possível. Chegou a ocasião de fazermos o Brasil grande e feliz. Não sou pela guerra de um partido contra outro, guerra pessoal e local; sou pela guerra inspirada num motivo verdadeiramente nobre - o de tornarmos nossa terra independente de Portugal. Senhores, até quando havemos de ser colônia de portugueses? Não poderemos prosperar enquanto não nos pertencerem os nossos próprios destinos. É chegada a ocasião de quebrarmos a pesada cadeia que nos acorrenta. Não deixemos para mais tarde uma obra grandiosa, que podemos realizar hoje com algum esforço e sacrifício. Se há dois anos, por ocasião da fuga de Castro Caldas, tivéssemos levantado bem alto a bandeira da independência brasiliense, conforme propuseram Bernardo Vieira de Melo Silva e outros patriotas insignes, não estaríamos agora derramados por estas matas, separados de nossa mulheres e filhos, curtindo as mágoas e dores, comendo o sobressaltado pão do homizio. Padre Guerra, que fazeis, vós que sois amigo particular de D. Manoel, que fazeis, que não pegais já da pena para o convidardes a vir colocar-se ente nós, ser o nosso general, levantar conosco o pendão da liberdade do meio destas solidões, que por si só aterram a tirania?

Nas palavras do capitão havia o que quer que era de majestoso e patético. O sentimento nacional subira-lhe até os lábios, e dali se derramava, comunicando a todos que o escutavam, os tons desta paixão excelsa.

— Não creio que D. Manoel aceite esta posição; ele não viu a luz do Brasil. Mas, não obstante, escrever-lhe-ei. Tendes portador seguro para lhe levar a carta?

— Quanto a isto não vos inquieteis - respondeu Falcão d'Eça.

Então o padre, tirando de uma maleta um frasco com tinta, uma pena e papel escreveu sobre um tronco derrubado, a carta seguinte:

Revmo. Senhor.

Do seio destas matas, refúgio franco e largo contra a tirania, sou obrigado a enviar a V. Revma., nestas regras escritas sobre tosco madeiro, a súplica de pernambucanos êxules e perseguidos.

Revmo. Senhor: ninguém melhor do que V. Revma. pode ajuizar das nossas desgraças, porque delas tem sido, como nós, ilustre vítima.

As armas, as algemas, as injúrias ainda não cessaram contra nós o seu odioso ofício. Nossos inimigos não escolhem meios de aniquilar-nos.

Tendo por eles o governador e o ouvidor, não há ofensas que destes desnaturados ministros não consigam contra nossas pessoas, nossas famílias, nossas próprias vidas.

A caçada geral, ordenada pelo parcial governador, apanhou onze dos nossos mais estimados amigos, e ilustres pernambucanos.

Neste momento tivemos aqui a notícia da prisão dos meus dignos irmãos João Alves Guerra e Miguel Lopes. Para levarem a efeito este intento, não hesitaram ante o sangue e a morte; pelo crime de tomar a defesa de seus senhores, um escravo fiel foi assassinado.

Do nosso seio os bandoleiros de Camarão e Tunda-Cumbe acabaram de arrancar tão importantes amigos e patrícios, e sobre a cabeça destes está pendente cruel sentença de morte.

Enfim, de toda a parte levantaram-se aos céus clamores contra a tirania de Félix José Machado e Marques Bacalhau, instrumentos dos mascates do Recife.

À vista de tantos e tão violentos atentados, Revmo. Senhor, estamos deliberados a lançar mão das armas para defesa da pátria e de tudo o que nos pertence.

Essa defesa nós a imaginamos grande, forte, tenaz. O que nós queremos é a independência de Pernambucano, e antes que V. Revma. nos pergunte qual o meio de realizar essa independência, apresso eu a declaração: esse meio é a revolução.

Aos que nos disserem, Revmo. Senhor, que, não procedendo de el-rei, mas de seu governo, os males que padecemos, haveria excesso do recurso indicado, responderei que não se podendo compreender sejam bons reis aqueles que sustentam maus governos, não há excesso, antes há justiça, na projetada providência.

Não é de hoje que na separação do Brasil do reino de Portugal eu vejo o único remédio para os nossos males.

Quando em 1710, em Olinda, reunidos o senado da Câmara e a nobreza se tratou da eleição do governador, por ter fugido covardemente para a Bahia, Sebastião de Castro Caldas, antes que fosse feita a escolha tão honrosamente para a pátria, por ter recaído na pessoa de V. Revma., largamente se discutiu a idéia "de sacudir com os mascates, o jugo de Portugal", e V. Revma. sabe decerto, que a independência de Pernambuco era ponto decidido e concertado pelo venerando ancião Bernardo Vieira de Mello, herói talhado pela natureza para libertador da pátria com seu mestre de campo, o famoso João de Freitas da Cunha e o capitão-mor Antônio Ribeiro da Silva

Nesse ajuntamento, Revmo. Senhor, votei com estes exímios patriotas para que nos "declarássemos em República ad instar dos venezianos"; e se então os nossos votos não prevaleceram, por entender a maioria do ajuntamento que o nosso projeto era de "alta audácia e magnitude", e que, com a mudança do odiado governador, volveriam a Pernambuco ditosos e serenos tempo, não pensam mais assim esses mesmos que ilusoriamente acreditaram na eficácia dos meios incompletos, e ao menos todos os que nos achamos no seio destas matas seculares, não temos por eficaz nenhum outro remédio senão a independência do Brasil, seja qual for a forma de governo que possa ele vir a ter.

Cheguei ao ponto essencial desta carta, Revmo. Senhor.

Somos por hora trinta, os que nos achamos aqui; amanhã seremos talvez mil. Dos presentes não um só que não prefira perecer honrosamente no campo da batalha, pelejando pela liberdade da pátria, a afinar-se obscura e ignominiosamente nos subterrâneos das Cinco Pontas, servindo de ludibrio a estrangeiros que nunca jamais hão de ter para nós sentimentos benévolos.

Que é que nos falta para realizarmos a magna idéia da libertação do Brasil, ou pelo menos de Pernambuco? Falta-nos um chefe querido do povo da capitania, Revmo. Senhor, um chefe de reúna em si altas virtudes particulares e públicas, que seja de egrégias tradições, de ilustre consciência e ilustrada razão, que comungue conosco amigavelmente aos pés do altar da liberdade, que francamente, como nós, queira a revolução, por bem da felicidade dos brasileiros.

V. Revma. preenche satisfatoriamente as condições exigidas no chefe de que necessitamos. V. revma. é vítima como nós, da sanha dos mascates, por ter sido desde o começo da guerra o primeiro esteio da nobreza, é alvo das iras inimigas e está exposto à prisão e à morte; por suas altas virtudes e respeitabilíssima posição, pode melhor do que nenhum outro, ocupar o lugar mais elevado e conspícuo no movimento libertador. E logo que proclamar aos povos da capitânia, todos se levantarão para o seguir, como um só homem, ao caminho da glória.

Eis-nos, por todas estas razões, a pedir a V. Revma. que salve a nossa pátria, aceitando o lugar que está por preencher na frente das falanges pernambucanas.

É esta a nossa súplica, Revmo. Senhor.

Vosso humilde servo e respeitador,

PADRE A. JORGE GUERRA

Em menos de cinco minutos Lourenço estava de caminho para Olinda, e dois dias depois entregava a resposta do prelado que foi desanimadora. "Que nos resta senão curvamos a cabeça aos decretos da Providência?" assim concluía ele.

Passado um momento Falcão d'Eça perguntou aos seus companheiros de infortúnio:

— Que havemos de fazer, meus amigos?

— Se havemos de errar expatriados, famintos, sem sossego de noite e de dia, e por fim cair no poder dos nossos opressores, melhor é que, poupando tantas inclemências e padecimentos, nos entreguemos em suas mãos. Teremos por esta forma, feito jus ao perdão d'el rei, e salvado com as nossas vidas, parte das nossas fortunas.

— Entregue-se quem quiser, disse Falcão; eu não me entregarei jamais. Daqui não sairei senão morto ou livre. Ainda que todos me abandonem, não abandonarei eu estas solidões e espessuras protetoras. Até a última gota resistirei à opressão.

— Também nós resistiremos - disseram alguns dos foragidos.

— Resistiremos todos, Falcão - disse o padre Guerra. Não ficareis só. Trinta homens dentro de uma fortaleza batem um exército aguerrido, quanto mais dentro de um mundo imenso e desconhecido, como são estas matas intricadas.

— Tendes razão, padre Guerra.

— O que devemos fazer agora é alargar e aumentar os meios de defesa e agressão.

— Isto corre por minha conta,.

Eis como finalizou o congresso dos fugitivos, após a leitura da carta do bispo.

O espírito de resistência em todos os dominava; a firmeza de seus ânimos; a coragem; a fé; a convicção de que por seu número, que tendia a aumentar, e pelas condições de defesa, não havia forças que os pudesse bater, fizeram voltar-lhe aos corações o sossego, um momento interrompido.

Não tendo mais de fazer ali, Lourenço, que ouvira as últimas palavras, profundamente comovido, despediu-se de Falcão d'Eça e tomou para Goiana.

Ia descontente e desanimado. Não lhe restava a mais pequena esperança de salvar o sargento-mor. A última carta tinha sido jogada, e perdera-se a mão.

— Sempre pensei - dizia consigo - que seu Falcão faria alguma coisa; mas toda esperança está acabada. Vejo que não posso ser bom em nada. E como terei ânimo para contar em Goiana, a sinhá D. Damiana e à minha mãe, esta grande desgraça? Oh! que tempos, meu Deus, que tempos! A gente não sabe meios nem modo de fugir à adversidade,

E para matar as idéias tristes que lhe iam na cabeça, começou a cantarolar as letras de uma chula popular:

Tenho minha cachorrinha.
Que minha Tatá me deu;
Tenho um só desgosto dela:
É ser filha de europeu

Toda moça que é briosa,
Não casa com marinheiro;
Espera para casar
Com os quindins dos brasileiros.

Bravo, patusco
Patusquinho, patuscão
Marinheiros, pé de chumbo,
Comedor e beberrão

Lodo impuro que o exclusivismo partidário, revolvendo os corações trazia à luz como arma de guerra, colocava à frente da família, primeiro santuário do povo.