Lourenço (Franklin Távora)/XI
Ainda hoje o seqüestro é um grande mal, não obstante suavizado pelos princípios novos, mal que até nos indiferentes que o vêem realizar-se produz vexame: pacientes há que à dor da vergonha, preferem o suicídio.
A justiça entra pelas casas estranhas, e como se foram dela, apreende bens ali que os donos não deixariam passar, contra sua vontade, ao poder de outrem, sem defesa ou resistência formal, não raro ensangüentada. A justiça procede assim, fria, inexorável, algumas vezes arrogante, sempre hirta. Em certos casos, talvez não cumpra o seu ofício com os olhos enxutos; mas, dado que isso aconteça, como ter uma prova da sua piedade, se a justiça traz nos olhos uma faixa que os vela? A verdade é que a justiça não chora nunca, não tem coração, não tem entranhas: a justiça não tem o direito de chorar, direito vulgar que pertence a todos, até ao que não tem direito nenhum.
Era, ao menos, assim a que em Goiana, quando na fazenda do Jatobá se passavam os acontecimentos que sabemos, invadiu com surpresa dos moradores o engenho Bujari, onde haviam feito estada a aflição e o luto, desde que ali se teve notícia do falecimento do sargento-mor.
Acompanhado da fez do foro venal, parcial, ou vingativo, o oficial público, incumbido da execução, não chegou à sala da casa, trazendo a compostura, ainda que severa, da linguagem da lei, chegou ali, precedido por insultadores canalhas, quadrilheiros afeitos a conspurcar a modesta majestade das famílias desamparadas, e a assenhorear-se do que nos lares desprotegidos encontravam agradável à sua cobiça; chegou ali trazendo carranca e esgares pavorosos, pelos quais se podia aferir a sua brandura, ou antes, a sua intenção. Bastará dizer que faziam parte do séquito o Tunda-Cumbe e o Pedro de Lima, nunca assaz execrados bandidos do rancho do Cipó.
Os insultos ignóbeis, as zombarias torpes não tiveram forças para vencer o espírito da jovem viúva. Em vez de se abater com esta face da sua adversidade, colheu ela novos alentos da aspereza do transe, primeiro tão rude por que passava.
Dois escravos, únicos que no engenho restavam da avultada fábrica, inveja de muitos vizinhos, e que, vendo aproximar-se o bando, tentaram a fuga, quase pagaram com a vida esta dedicação à senhora de engenho. Animais, móveis, jóias, tudo quanto representava qualquer valor, foi irremissivelmente seqüestrado. O sargento-mor, embora falecido, estava indiciado em crime de primeira cabeça; todos os seus haveres deviam ser confiscados para a coroa, nos termos da tenebrosa Ord. do Liv. 5º. Era isto o que dizia o executor, era isto o que repetiam, vociferando irados, os sequazes, dignos daquela legislação de sangue e rapina, que os tempos justificava, mas não enobreciam.
Logo que recebeu a intimação para despejar o sobrado, D. Damiana, voltando-se ao santuário, que ainda se via em cima de uma mesa, pôs os olhos na imagem de sua devoção, e, traindo a amargura que lhe ia na alma, disse:
— Para onde hei de ir, Virgem da Conceição?
Uma resposta amiga não se fez esperar:
— Para a minha casa, sinhá D. Damiana, para minha casinha, que há de ter muita honra em recebê-la.
A senhora de engenho, enternecida, caiu nos braços de Marcelina.
— Bem sei - prosseguiu a cabocla - que ela, à vista deste palácio, não merece que vosmecê volte para ela os olhos; está na mesma esteira dos mocambos dos negros fugidos... Mas terá lá uma escrava para olhar por vosmecê, e dar-lhe água para os pés.
— Havemos de ver - disse um dos da multidão - havemos de ver até quando durará este amparo reles.
— Há de durar até quando vosmecês quiserem - respondeu, sem titubear, a cabocla. Eu sei que nada do que é meu me pertence contra a vontade de vosmecês.
— Marcelina, por piedade, cala-te - disse D. Damiana, receando-se de roubarem aquele mesmo cantinho obscuro onde podia repousar a cabeça, depois de haver chorado livremente os seus males.
— Pois, já que têm onde se metam, ponham-se no andar da estrada sem demora. Tudo o que está aqui pertence a el-rei, tirado antes o que deve caber aos credores do nobre senhor falecido.
Era, em termos irônicos, a intimação para que saíssem as duas mulheres.
D. Damiana ergue-se imediatamente. As roupas negras, realçando-lhe a palidez do rosto, davam-lhe aspecto senhoril, em que ainda falava a altivez de outrora.
Relanceou os olhos por sobre os móveis que decoravam a sala, e dos quais ia apartar-se para sempre.
Dando as suas vistas, no rápido percurso, com o oratório, pousaram aí um momento, e dos lábios lhe saíram, sem que as vistas se afastassem estas palavras:
— E as minhas imagens também me são arrancadas das mãos?
— Tudo o que existe no engenho, de porteiras para dentro, pertence à coroa, respondeu o oficial que dirigia a execução judicial. De tudo o que os rebeldes deixam, as suas viúvas somente herdam a má fama.
— Vamos, Marcelina, disse D. Damiana, com decisão, voltando-se à cabocla.
E caminhou-se à porta, por entre a turba, que sem intenção, se abriu a fim de lhe dar passagem. Por algum tempo aqueles homens ordinariamente bulhentos, não tiveram uma palavra das suas grosseiras e banais chacotas com que menoscabarem a solenidade de tão aflitivo momento.
Chegando embaixo, Marcelina disse à senhora de engenho:
— Se pudéssemos tirar um cavalo da estrebaria... Daqui ao Cajueiro é longe para vosmecê, sinhá D. Damiana. Como é que há de romper tanta distância a pé?
— Vamos assim mesmo, Marcelina. Nem eles nos deixariam tirar qualquer cavalo, nem os cavalos me pertencem mais. Vamos a pé. Havemos de chegar lá, ainda que seja com a noite ou com a madrugada. Demais, o Cajueiro não é tão longe, como dizes. Daqui uma hora, quando muito, estaremos lá.
A vida de D. Damiana no Cajueiro, ao princípio passada de amarguras quase incomportáveis, foi perdendo pouco a pouco o travo dos primeiros tempos. Não se demorou a resignação, devida em grande parte às condições ministradas por Marcelina, que fazia tudo por adivinhar os pensamentos da sua nobre hóspede.
Uma vez, depois de certa fineza, a viúva falou nestes termos à cabocla:
— Marcelina, tu não nasceste para viver na pobreza; tu devias ser muito rica, e viver em palácio, tão nobre és nas tuas ações.
— Quer vosmecê que lhe diga uma coisa, sinhá D. Damiana? Dentro das casas de palha, na gente pobre, encontra-se muito bom coração.
Era a voz do povo que se erguia, sem floreios, em linguagem trivial, para responder à voz da nobreza vencida, mas não convencida.
A história da aludida fineza conta-se em poucas palavras.
Dois dias depois de estar no Cajueiro,a viúva de João da Cunha travou com ela, a mulher de Francisco, o seguinte diálogo:
— Eu sei - disse Marcelina - que vosmecê não passa bem aqui. A casinha é pequena e não é digna.
— Muda de conversa - respondeu-lhe D. Damiana. Que é que me falta? Vim até encontrar a tranqüilidade e a consolação que haviam fugido da casa grande.
— Vosmecê me perdoe, mas eu bem vejo as coisas. Por sua honra, vosmecê diz que está muito bem; mas pela minha também eu hei de dizer o que conheço.
— Estou muito bem, sim.
— Pois se está bem pode ficar melhor; e isto é o que eu quero dizer. Vosmecê pode mudar de casa, sem ir para muito longe; ficará tão perto daqui que, chamando por mim, eu daqui mesmo ouvirei a sua voz.
— Como há de ser isso então?
— Eu estive pensando ontem de noite e achei o que queria. Lembrei-me de que tenho em meu poder a chave da casa de seu padre Antonio, que fica ai, do outro lado da estrada. É uma casinha bonita, limpinha e boa. Vosmecê sabe melhor do que eu que ela foi dada a seu padre por seu sargento-mor.
— E está sem morador?
— Está, sim senhora. Na véspera de fazer a viagem, que ninguém sabe onde foi, seu Padre Antonio disse-me estas palavras, que nunca mais hei de esquecer: "Como é possível que no lugar para onde vou, tenha de entregar a alma a Deus, peço-te, Marcelina, que olhes por tudo o que é meu, a minha casa, a minha criação, as minhas plantaçõezinhas, de que levo tantas saudades". A estas palavras, acrescentou ele estas outras: "Se eu morrer por lá mesmo, podem vocês dispor de tudo o que lhes entrego, sejam meus herdeiros; mas, enquanto não tiverem certeza do meu acabamento, tratem de minha casa como bons vizinhos e amigos". Eu não tenho certeza de seu padre ter morrido, e Deus queira que ele tenha ainda muitos anos de vida, e muito breve esteja de volta ao Cajueiro, a que deu tantos aumentos deu com a sua presença; mas, enquanto ele não chega, sua casa há de estar se enchendo de aranhas e de ratos, não é melhor estar servindo a quem já foi dono dela e das terras onde ela está, e que já morou e ainda há de morara em ricos palácios?
D. Damiana achou caminho na proposta, e aceitou-a com reconhecimento. E para que tudo saísse à feição, uma preta idosa, muito pegada com a viúva, e que fugira para o mato, por certo desgosto no engenho, vindo a saber as condições que estava a senhora, apareceu no Cajueiro logo depois da mudança desta para ali, onde aquela ficou. Com a nova companhia, D. Damiana passou-se para a casa do padre, continuando Joaquina e Marianinha a morar junto de Marcelina na palhoça que fora levantada entre a lagoa e a casa queimada.
Estavam as coisas neste pé, quando uma noite, por volta das oito horas, D. Damiana, ainda não recolhida ao seu quarto, sentiu ruídos de pisadas por perto da casa. Tinham-lhe dito que, sabedora de estar com ela a escrava Felícia, a autoridade viria tirá-la às escondidas do seu poder, a fim de adjudicá-la, com os outros bens, à coroa. Novos dissabores e novas inquietações para a infeliz viúva.
Era aquele o único benzinho de que estava de posse; era todo o seu haver. E porque na atualidade os serviços da escrava valiam pelo de cem escravos para a senhora de engenho, a idéia de lha tirarem trazia-a sobressaltada e agoniada.
Por isso, ouvindo as pisadas já ao pé da casa, correu à cozinha em busca de Felícia. Esta não se achava ali, e a porta que dava para fora estava aberta.
Tomada de exaltação momentânea, sem medir a gravidade do passo, a senhora de engenho ganhou o terreiro, resoluta a disputar a presa ao roubador que, valendo-se das trevas e do ermo, viera, com emboscada, despojá-la do último possuído.
Junto da porta estava, de pé, um homem que parecia indagar com as vistas, cautelosamente, se havia alguém dentro. Vendo-o só, a viúva como se cobrara novos ânimos, encaminhou-se apressadamente até onde ele estava e falou-lhe com veemência nervosa:
— Senhor, quero a minha escrava, quero a minha escrava. É o único bem que me resta; todos os mais levaram em nome de el-rei; mas ela, não consentirei que a levem. Preciso de uma escrava para o meu serviço. A justiça deve ser feita com a prata, os brilhantes, os móveis, os bens de raiz e até os santos de que me privou, quando eu deles mais necessitava para minha consolação. Faça de conta que Felícia já não existe, ou anda fuga. A única súplica que faço à justiça de Goiana é que me deixe a minha negra.
Estas palavras foram um raio de luz no espírito do desconhecido que, a modo de espanto e confuso, nenhuma palavra dirigira à agoniada senhora. Em lugar de afastar-se correu para ela, como quem queria tomá-la nos braços.
Este gesto atemorizou a viúva, que só então pareceu medir o alcance de sua temeridade.
Faltou-lhe inteiramente a coragem para sustentar o seu papel. Quis correr, mas entrara tanto pelo terreiro que quem quando com os olhos buscou a porta da casa, viu entre esta e ela, o desconhecido, que se adiantara e se aproximava cada vez mais, fazendo menção de a querer cingir com os braços.
— Não corra, não corra de mim, sinhá D. Damiana.
Foi tarde. Temor pânico tomara a gentil senhora, e após o temor viera o delíquio. Se o desconhecido a não amparasse, se a não sustentasse contra o peito, ela daria com o corpo em terra, tamanha fora a exaltação que lhe esgotara os poucos alentos deixados pelas adversidades recentes.
O desconhecido era Lourenço. Acabara de chegar da fazenda do Jatobá. Deixara o cavalo preso pelas rédeas no fundo do sítio e viera, pé ante pé, cauteloso, para não ser visto, a fim de atravessar incólume a estrada e ganhar o lado oposto. Contando com o sítio desabitado, tomara por ele para maior segurança; mas, vendo aberta a porta da cozinha, e pressentindo morador dentro da casa, por curiosidade ficara a espiar, quando saiu D. Damiana, que de modo nenhum o pudera reconhecer, não só porque estava longe de o supor tão perto dela, mas também porque era de noite, conquanto esclarecida por tíbio luar, e especialmente porque estava Lourenço trajado muito diversamente do costume, pois trazia chapéu de palha fina, burjaca preta, calças de ganga, botas de polimento, onde retiniam esporas de prata; numa palavra, Lourenço não era mais o matuto chão, descalço e vulgar como quando fugira de Bujari para não cair nas unhas do Tunda-Cumbe.
Toda esta transformação, como bem se compreende, era devida ao padre Antonio que, na hora da partida, brindara ao filho com aquele fato novo, o seu cavalo mais forte que tinha, o selim e arreios do seu uso, alguns trajos caseiros que chegavam exatamente no rapaz, e um cartucho de moedas de prata, não sem recomendar-lhe primeiro que fosse tratando de se apresentar mais dignamente, para que tivesse a consideração dos homens de bem; que deixasse a vida errante, e se empregasse em trabalhos estáveis; que fugisse de batebarbas com quem quer que fosse enfim, que se desse o respeito para que qualquer malfeitor não se julgasse no caso de lhe fazer o que os três malvados haviam praticado com ele semanas antes.
— Se tu não andasses com mulheres dos outros na garupa, não havia de acontecer o que te aconteceu.
Por último, disse-lhe o padre Antonio:
— Até aqui, tenho somente tratado de ti; quero agora dar-te instruções que se ligam com o meu interesse. Ainda uma vez te encomendo, Lourenço, que a ninguém, exceto Marcelina, te suceda declarar o nome do dono desta fazenda. Não quero fazer juízo temerário; mas uma vez íntima, a voz de Satanás está a dizer-me que, se os frades de Goiana forem sabedores da minha estada nestas paragens, são capazes de mandar tirar o restante da minha inofensiva existência, somente porque não consenti em prestar-me a auxiliá-los nos seus planos de iniqüidade e feroz vingança. Sê prudente e cauteloso. Não tenho grande apego à vida Lourenço, mas não desejo que ela me seja tirada por outrem, senão por Aquele que me achou merecedor de guardar este pesado depósito.
Ainda não de todo restabelecido, Lourenço deixara a fazenda, por não poder vencer o desgosto de ver Bernardina casar-se com o Cipriano.
— Está em minhas mãos - dissera ele mais de uma vez - impedir este casamento, que tanto desgosto me tem dado; era só eu querer; tomava a rapariga outra vez na garupa e abalava para este mundo que não tem fim. Mas, o muito que devo a "seu" padre Antonio, que foi que me arranjou tamanha desgraça, prende-me tanto as mãos, que eu não posso ser bom em nada.
Bernardina, acometida de grave enfermidade, ficara em cima de uma cama, às portas da morte.