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Lourenço (Franklin Távora)/XII

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A chegada de Lourenço foi uma festa, uma primavera para todos no Cajueiro; não foi somente uma festa, foi principalmente uma ressurreição, uma evocação que reviveu ilusões e esperanças mortas, porque ele já tido ali por perdido para sempre à vista da sua longa ausência e do silêncio tumular que havia crescido em torno do seu nome.

Passados alguns dias depois da abortada tentativa de tomada de presos, começaram a mostrar-se no Cajueiro, umas vezes à boca da noite, outras ao raiar do dia, nunca em hora certa, sujeitos estranhos, de suspeitas cataduras, que alguns vizinhos diziam ser do rancho do Cipó. Mais de uma vez Marcelina havia surpreendido um ou outro rondando-lhe a casa, como quem espiava a vida dos moradores. De uma feita, um deles, com todo o desplante, encarando a matuta, perguntou-lhe:

— Que novas me dá de seu filho, que há muito ninguém lhe põe os olhos em cima? Pois era agora ocasião de aparecer quem andava por estas beiradas arrotando tanta valentia.

— Eu ia perguntar mesmo a vosmecê - tornou a cabocla - o fim que lhe haviam dado; porque não sei onde ele para. De todo o mal que aconteça ao rapaz, eu só tenho que me queixar de vosmecês, porque sem razão juraram de dar-lhe fim, desde aquela matinada que os homens fizeram para soltar "seu" Cosme Cavalcanti. Começaram a espalhar que Lourenço tinha sido o autor da tragédia, e quase que o matam.

— E quem foi senão ele, que meteu os outros na dança? Não foi outro. Você deve saber de tudo, agora põe-se de fora como quem não sabe como se arranjou a história. Eu só queria ainda encontrá-lo com vida. E se fosse hoje, que estou com os meus calundus, você e ele haviam de ver o bonito.

— Vosmecê não tem razão; o rapaz não é mau.

— Ele sempre foi muito mauzinho, não por você, mas pelos bofes que trouxe do Pasmado. Pelo gosto de você, ele não fazia muita coisa que não era para ele fazer, porque ele não é nada; mas é que ele lhe tomou fôlego,e não leva mais você em conta.

— O que eu sei é que vosmecês deram fim aqui ao meu filho; só me parece que nunca mais o tornarei a ver.

Ditas estas palavras, Marcelina pôs-se a chorar, enquanto o espião, como se comovera, ou convencera, nenhuma lhe voltou em resposta, e deu logo o andar.

Posteriormente, espalhou-se em Goiana que o rapaz tinha morrido. Pedro de Lima dizia a quem queria ouvir, jactando-se da sua proeza, que havia deixado por morto o filho de Francisco, à beira do Tracunhaém, por ocasião de encontrá-lo, vindo ele, Pedro de Lima, entender-se com o Tunda-Cumbe sobre certa diligência de muita circunstância.

Ocioso seria dizer quanto esta triste nova enlutou as mulheres que por tantos laços, cada qual mais estreito, se achavam ligados ao jovem almocreve. Marcelina, conquanto acostumada a receber más notícias desde que Francisco se ausentara, e que Lourenço dera em fazer freqüentes jornadas para fora; Marcelina que, muitas vezes, quando alguém vinha lhe dizer que seu filho estava preso, que o marido era morto, tinha esta resposta invariável: "Tempo de guerra, mentira como terra", desta vez não pode suster as lágrimas por muitos dias; e quanto mais tempo se passava, mais crescia aos seus olhos a certeza daquela infausta nova, que o testemunho pessoal de Pedro de Lima e os dois companheiros, verificado por pessoas sérias, viera confirmar em termos que não admitiam réplica.

Foi nestas condições que Lourenço ressurgiu inesperadamente, vivo, forte, e até mais bonito de feições. A longa estada à sombra, pela enfermidade, e posteriormente pela convalescença, dera ocasião a que suas formas se desenvolvessem e aumentassem, se lhe afinasse e clareasse a pele, enegrecesse o cabelo, apontasse a barba. Essas formas, já varonis, adquiriram um novo dom - a gentileza; os olhos, já cheios de brilho, receberam de desconhecido centro de luz novos raios em que se deixava reconhecer o reflexo de paixões impacientes. A expressão dessas esferas luminosas. que graciosamente se moviam entre as pestanas finas e bastas, era banhada em áureas vivacidades, com uns longes lampejos lácteos, que um pintor poderia copiar para primor das suas estampas. Demais - e era talvez esta circunstância exterior o que mais afirmava a diferença - no trajar, Lourenço já não era o almocreve tu, desasseado e grosseiro; as novas roupas em que apareceu metido, davam-lhe o aspecto que distingue os homens de boa procedência e educação. Poucos meses bastaram para o afeto de pai transformar o filho.

No outro dia pela manhã, reunidos todos na casa ocupada por D. Damiana, Lourenço deu mostras de não ter mudado o seu sentimento para Francisco, assim como tinha mudado de formas e trajos.

— Eu vim somente dizer-lhes, advertiu ele, não morri, porque nem eu posso ficar por muito tempo aqui à vista de todos, nem, ainda que pudesse, ficaria antes de saber notícias de meu pai. Eu sempre cuidei que ele já estivesse de volta; mas uma vez que ainda não veio, uma vez que está sabe Deus onde, devo ir ver se o encontro vivo ou morto.

— Filho abençoado, tornou-lhe Marcelina, era isto mesmo o que eu queria te dizer. Vai, e não voltes sem trazer Francisco adiante de ti. Não me digas nem por graça que ele morreu, porque assim como tu tornaste cada vez mais bonito, quando todos aqui diziam e até eu cuidava que já não existias, assim Francisco há de tornar também, gordo, forte e mais moço, que Deus não há de permitir que meu marido, tão bom, morra por aí além sem ter quem, na hora da morte, lhe chame pelo nome de Jesus.

Nada, porém, ficou assentado quanto ao dia da partida. Lourenço disse que se sentia cansado da longa jornada; D. Damiana, que ficara muito abalada do susto e comoção porque passara na noite precedente pediu tempo para escrever, com a devida pausa e meditação, uma carta minuciosa que Lourenço devia entregar a Amador, único parente que, conquanto preso, a podia atualmente valer e socorrer.

Um ponto negro, que se mostrara logo no horizonte iluminado pela presença do rapaz, começou a avultar de hora em hora - a idéia do perigo que ele correria, se se deixasse ficar no Cajueiro, enquanto não seguia para o Recife. Aos olhos de Marcelina, prudente e prevenida, já começavam a aparecer a cada canto os vultos suspeitos, os espiões sinistros que tempos atrás haviam tido as vistas sobre a palhoça, ameaçando devassá-la e esmerilha-la, cantinho por cantinho, na intenção de descobrir quem havia incorrido no ódio dos mascates pela sua dedicação aos nobres. Marcelina tinha o coração nas mãos, de sobressaltada e temerosa que andava. Ainda não haviam decorrido vinte e quatro horas depois da chegada de Lourenço, e já a solicitude da cabocla, estremecendo pela segurança dele, não sabia onde o resguardar de emboscadas e delações inimigas.

— Tu não podes ficar aqui muito tempo, Lourenço. Vê lá como te haveis.

Depois de refletir por alguns momentos, Lourenço, dando mostras de ter achado a melhor solução, tranqüilizou os espíritos com estas palavras:

— Não se importem comigo. Os cabras não hão de lamber-me. Tenho um lugar que ninguém suspeita, e para mim é o melhor que eu podia encontrar. Irei dormir lá todas as noites; e até de dia, estando eu lá. Não há quem seja capaz de descobrir onde estou.

Passou-se o dia sem coisa de maior. Quando o sol desapareceu por trás da mata do Bujari, deixando cair sobre a estrada as primeiras sombras da tarde, o rapaz, armado com faca e pistola - uma pistola que encontrara em casa do padre Antonio - despedindo-se das mulheres, tomou pelos fundos do sítio do mesmo padre, e alcançou a mata. Logo adiante deu com o cavalo dentro do fechado onde o deixara todo o dia. Em vez de o cavalgar, foi levando-o por um cabresto, com grande dificuldade, porque não podia dar um passo sem lhe ser preciso antes abrir caminho através das folhagens e cipós emaranhados, que faziam redes e tapagens de diferentes formas.

Depois de andar um bom pedaço pelo mato a dentro, parou para se orientar. Tinha o espírito confuso. Perdera-se no labirinto e não sabia onde estava. Com o rigoroso inverno, as antigas veredas haviam desaparecido, e em lugar delas, e onde supunha encontrá-las, o que achou foram árvores novas, cujos galhos se entrelaçavam, fazendo com os longos fios e as miúdas folhas dos cipós, largos panos que o seu braço por fim já se sentia cansado de mutilar e romper. A cada passo ouvia o sibilar de cascavéis, ouvia os suspeitos ruídos da massa enorme da selva que não se afronta impunemente.

— Por onde ando eu, meu Deus? disse começando a apoderar-se de inquietação. Estou perdido. Já nada vejo. Escureceu de todo mais cedo do que eu cuidava. Agora não há outro remédio senão ficar aqui mesmo.

Quando estava neste solilóquio, ouviu, não longe o ponto onde parara, rumor de cavalgada e vozes. Deu mais alguns passos para a frente, e pôde reconhecer, por entre as sombras da noite, que estava não no seio da mata, como julgara, mas à beira do cercado do engenho Bujari. Obra de cinqüenta braças na frente dele passava a estrada, e pouco adiante se deixava ver, como uma grande laje escalvada e negra, a casa grande do engenho.

— Ora, meu Deus! Como vim parar aqui?

Ficou um momento em silêncio, observando o lugar, combinando as idéias, buscando uma resolução.

Não tardou muito que lhe ocorreu um pensamento singular, e, na realidade, original - o de pernoitar na própria casa do engenho, que, conquanto seqüestrada com os demais bens do defunto, nenhum destino se lhe havia dado ainda.

— É, e não é arriscado dormir lá - disse Lourenço, como se praticasse consigo mesmo. Quem é que há de pensar que eu vou dormir no engenho? Ainda que soubessem que eu já estou em Goiana, ninguém havia de me julgar com a coragem de ir recolher-me na casa grande, quanto mais não havendo quem saiba que eu cheguei. Em vez de arriscado, eu acho até que é o lugar mais seguro que possa encontrar por aqui para estar. Nunca ninguém há de ir lá em minha procura.

Lourenço quebrou as varas do cercado, para que o cavalo pudesse passar, e, logo que lhe pareceu estar longe a cavalgada atravessando a estrada, tomou para a casa grande.

Chegando aí, estranhou quase tudo o que viu. Nada há que desfigure tanto os lugares destinados à habitação do homem como deixá-los por algum tempo sem habitador, porque tomam conta dele outras habitantes de diversa natureza, tomam conta dele os matos, os musgos, as parietárias, os bichos peçonhentos: a situação demuda-se: as paredes amarelecem ou enegrecem: aqui escalam-se, acolá embuçam-se nessa vegetação parasitas que estendem os seus domínios mais depressa pelas regiões onde pisou o pé, ou pousou a mão humana, do que nas regiões virgens em que plantas mais fortes e avultadas não lhe dão lugar à invasão.

À roda da casa nascera um jerobebal espesso, em cujo fechado poderia esconder-se, não só um homem, mas muitos homens; dentro dele, em caso de aperto, ainda mesmo de dia, Lourenço poderia ocultar-se com o cavalo, sem receio de ser descoberto, a não haver suspeita ou denúncia que determinassem busca minuciosa.

O seu primeiro passo foi para a estrebaria.

— Ponho aí meu cavalo, e deito-me perto dele. Uma noite passa depressa.

Assim fez. A porta da estrebaria estava encostada, mas não trancada. A invernada tinha esburacado as paredes do lado norte,e pelos buracos penetrava no interior a escassa luz da lua cheia, que mal deixava distinguir os objetos, dando-lhes feições que infundiam pavor.

Lourenço pôs o cavalo a comer na longa manjedoura deserta um pouco de milho que trouxera do Cajueiro, e estendeu-se sobre uma tábua velha, junto da porta.

— O ladrão que entrar aqui há de primeiro pisar em mim, antes de pegar o cavalo.

Tentou dormir, mas não pôde. As sombras do aposento destinado a animais, e não a homens, lançavam-lhe vagos temores no espírito. De um e outro lado ouvia silvos de cobras. Pesados sapos saltavam-lhe por cima do corpo, aumentando a intensidade das impressões desagradáveis. O mau cheiro das emanações deletérias que se desprendiam de restos de matérias corruptas por tantos meses retidas naquele pequeno espaço, onde o ar não girava livremente, começou a produzir no hóspede tonturas e náuseas, que o determinaram a mudar de pouso.

Pensou então em pernoitar no sobrado. Mas havia de deixar o cavalo sem defesa? Ainda se a estrebaria pudesse trancar-se...

Levando a mão à porta, deu ai com a chave na fechadura.

— Ora bem! disse com satisfação. Fechada a porta, já não será tão fácil furtarem o animal. Qualquer barulho me despertará, e em dois saltos estarei cá embaixo.

Lourenço deu a volta à chave, que tirou. A porta era segura. Não se podia por dentro com duas razões.

Rodeou a casa, não sem as devidas cautelas, e vencida a escada de tijolo, parou à porta de entrada, entre as três janelas da direita, e as outras três da esquerda, que davam ao sobrado o aspecto de um convento. Pela entrada principal não podia abrir caminho, visto que estava trancada; mas, com a força das chuvas, ou da ventania, fora aberta a primeira janela da direita, para a qual não era difícil passar do peitoril de pedra e cal com que terminava o longo plano de parede que ladeava a escada, sem esforço pôde ele alcançar o batente, e saltar dentro.

A sala, onde se achava, era a destinada às mulheres. Penetrando aí, sentiu-se tomado de instintivo respeito, porque pouca vezes em vida do sargento-mor tivera ocasião de chegar até o aristocrático aposento de D. Damiana, e sempre que nele entrava, era seguido de todos os escrúpulos que a nobreza e a representação da gentil senhora impunham aos que mais ou menos dependiam de sua casa.

A admiração do rapaz foi ainda maior quando notou que a mobília nova, comprada por João da Cunha para ocupar o lugar da que fora arremessada de cima do pátio do engenho e aí entregue às chamas pelo bando do Tunda-Cumbe dois anos antes, estava no mesmo lugar em que a vira pela última vez. O santuário, o estrado, o bufete de D. Damiana faziam nascer a ilusão de morar ela ainda na sua casa, longe de qualquer constrangimento, e ainda menos penúria. O seqüestro parecia não ter tido senão um fim - o de humilhar a viúva e o nome do orgulhoso membro da nobreza.

Bem depressa porém outras foram as impressões.

A luz do luar, alongando-se pela sala em forma de um vasto lenços da largura da janela, mostrou-lhe a porta da alcova aberta, e lá dentro um vulto de grandes dimensões que aparecia, como uma larga mancha escura, no fundo da parede. Era a cama do casal ausente. do casal que nunca mais se de juntar havia ali, cama altaneira, ao paladar do tempo, para a qual se subia por degraus. Estava nua, mas tinha o estrado em ser.

Lourenço parou defronte dela: contemplou-a por instantes; chegou a comover-se. Aquela armação parecia-se mais com uma eça do que o teto de um leito onde a tranqüilidade e o repouso deveram ter dado momentos de suave satisfação. Os bons tempos tinham passado por cima daquela árvore de felicidade, tinham-lhe levado os adornos e elegância, filhos da posse e condição dos cônjuges, e tinham-lhe deixado os ramos nus, secos e desgraciosos, representavam o arcabouço da passada existência, outrora vestido de lençaria, sedas e damascos, agora mal coberto por tecidos de outra espécie - os que fabricavam no escuro e no silêncio as aranhas, essa industriais dos bairros despovoados. Era a imagem viva do casal já desfeito em parte pela morte. Figurava a viúva reduzida à extrema pobreza, desataviada, recolhida, em escuro canto e condição. Tudo o que fora grandeza e soberba desaparecera com o finado consorte.

Logo que se desvaneceu esta primeira impressão que não podia durar muito, porque o momento não era para reflexões filosóficas, nem o cérebro do rapaz comportava larga meditação, ocorreu-lhe a idéia de passar a noite na própria cama diante da qual se achava.

Mas agora eis que lhe surgem novos escrúpulos no curto espírito; nova luta vem aí travar-se: vem o respeito pueril dizer-lhe que não devia ocupar o lugar que pertencera a tão nobres e respeitáveis pessoas. Pareceu-lhe que o vulto do sargento-mor surgiria diante dele, com a usual arrogância, para tomar-lhe satisfação da sua ousadia.

— Deitar-me na cama de seu sargento-mor! advertia ele dentro de si mesmo. Dormirei em ouro lugar, naquele estrado, ou naquele canapé.

Antes de se decidir por qualquer dos móveis indicados, chegou-se à janela para ver se havia alguma novidade da banda de fora. Era tudo silêncio e imobilidade. Abaixando a cabeça para o lado da cavalariça, e prestando atenção como quem escutava, pareceu-lhe ouvir longe, longe, o estalido do milho quebrado pelos forte molares do cavalo. A lua estava no horizonte, e mal esclarecia a paragem com a sua alva luz enfraquecida. Ao cabo de pouco mais a escuridão dentro do sobrado seria completa.

Lourenço voltou-se para a alcova, e ganhou resolutamente a cama.

Por um fenômeno fisiológico, que os sensualistas ou os materialistas talvez expliquem facilmente, em lugar do vulto do sargento-mor, o que surgiu na fantasia do rapaz, foi a imagem da viúva, conjunto de perfeições humanas. Deitar-se na mesma cama onde ela se deitava, afigurou-se-lhe o mesmo que ter a gentil viúva ao seu lado. A intimidade com um objeto de pessoa que consideramos acima de nós, parece dar-nos a intimidade com o próprio dono dele: abate as barreiras, enche os abismos que nos separam.

Ilusão ou fenômeno natural, Lourenço sentiu-se imediatamente outro. Acenderam-se-lhes as paixões, determinando-lhe estremecimentos nervosos. Ofegava, como se a imagem da formosa mulher fora uma realidade, e esta ali estivera com o calor, a suavidade da pele, a voluptuosidade do amplexo e do ósculo, produzindo nele a excitação, ou antes estimulando-lhe as sufocantes ambições da carne. Lourenço pensou em tudo o que a natureza põe nas formas da mulher bela para adoçar no homem, por instantes, as agruras deixadas pelo trabalho, que é a sua lei fatal, pela inveja dos outros homens, pelas injustiças da sociedade, enfim pelas misérias da comunhão exterior, que, se em certos casos protege e ampara, em outros gera crenças veneráveis, destrói incentivos nobres, desnorteia e avilta afetos que devia encaminhar e ajudar a subir, bafeja ruins paixões que desenvolve indiretamente, comunica a bons corações o vírus da sua perfídia, ensina maus caminhos pelo seu exemplo, planta a semente do egoísmo onde havia o germe da generosidade natural.

A ilusão, casando-se com a lembrança, pôs na fantasia do rapaz um quadro completo. Ele reviu, porventura mais vivamente, a cena em que representara vinte e quatro horas antes, perto da casa do padre Antonio, com a orgulhosa senhora de engenho. Sentiu novamente os braços, desta vez com melhor consciência, porque em lugar do inesperado de então, tinha agora o conhecimento prévio e a sensação antecipada, sentiu o doce contato do corpo de D. Damiana, inteiramente entregue ao seu corpo. A precipitação com que atravessara a estrada e fora bater, sobressaltado e aflito à porta da palhoça onde já dormia Marcelina, não lhe tinha dado, além disso, ocasião para bem apreciar os atrativos daquela que carregara em desmaio. Esses atrativos desenhavam-se agora, no fundo sombrio do quarto, como se fora iluminado em tela; e ele via-os distintamente, um por um, cada qual mais encantador, ou fossem os grandes olhos ternos que ela pusera nele quando tornou a si, ou fossem os espessos cabelos negros que pelos ombros se lhe espalharam, ora cobrindo, ora descobrindo o colo anelante, ou fossem as mãos afiladas, aristocráticas, frias, em que ele pegara trêmulo e comovido, ou fossem sobre todos os outros atrativos, o corpo nem muito pobre nem muito rico de carnes, mas muitíssimo graciosos, pelas curvas brandas, pela flexibilidade comparável à das hastes das plantas novas que, ao mais leve toque da viração, se inclinam, e tornam logo à sua natural atitude.

Lourenço viu tudo isto, ora vagamente, ora permanentemente, sem poder ter diante dos olhos outra visão.

Não dormiu um só instante, posto houvesse levado a noite neste sonho fantástico e ideal.

Quando menos pensava a primeira claridade do dia penetrou na câmara.

Passara toda a noite lidando com a viúva do sargento-mor, no dormir mais original que ainda tivera na vida.