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Lourenço (Franklin Távora)/XIV

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No mesmo dia em que se deu este triste caso, um cavaleiro, acompanhado de vistosos pajens, descavalgou, por volta de três horas da tarde, à porta de D. Damiana.

— Não me esperava por aqui agora, prima? - perguntou ele, logo que avistou a senhora de engenho.

Esta correu para o recém-chegado. Abraçaram-se com efusão: lágrimas de contentamento orvalharam os olhos da viúva.

— Por aqui, Amador?! Eu tinha já uma carta escrita para lhe mandar.

— Então pensava que não nos tornaríamos mais a ver?

— Que poderia eu pensar, sendo tão crus os nossos inimigos? Só milagre.

Amador sorriu ironicamente.

— Sim, milagre foi; milagre do deus-açúcar, ou antes, do deus-dinheiro. Não me compreendes, prima? Não sabe que Cristovam de Holanda, nosso parente, preso pelo Bacalhau a dezoito caixas de açúcar, de que abriu mão a sua mulher, deve o ter voltado à sua liberdade? [1] Não sabe que o mesmo milagre se reproduziu com André de Abril de Souza, Antonio Cavalcanti Bezerra e outros? [2] É um deus todo poderoso o deus-açúcar: Félix José Machado rende-lhe o culto especial que não tem para o verdadeiro Deus - aquele que o há de punir pelos seus crimes. Ao deus-açúcar devo também a minha salvação.

Amador tinha entrado. No exterior dava logo a conhecer que ele se tratava à lei da nobreza. Um pouco empertigado, um pouco arrogante, olhando por cima do ombro, era o mesmo que dantes. A prisão não lhe abatera a vaidade. Solto, parecia mais orgulhoso do antes de ser preso,

Percorrendo as vistas por sobre os objetos que cercavam a cunhada, e somente descobrindo neles humildade e modéstia, não pôde fugir de observar, com acento de moralista:

— Mas, em que estado a venho encontrar, prima! A última vez que a vi foi ao lado do mano João. Tinha você todos os mimos da felicidade e da nobreza. Venho agora achá-la só, vestida de luto, quase desamparada neste ingrato ermo. Reveses da sorte. Mas Deus é grande. Quando você nem mais se lembrava de mim, entro-lhe pela porta, para velar pelo seu destino. Nada lhe faltará de hora em diante. Estou livre, outra vez livre.

Por ocasião do jantar, Amador desenrolou aos olhos da cunhada o tristonho quadro das perseguições e rigores.

Principiou contando-lhe o que ele próprio sofrera de Luís Brás, o famigerado carcereiro das Cinco-Pontas.

— Luís Brás é a imagem fiel dos ministros, seus superiores na hierarquia, seus iguais nas perfídias e manhas. O seu Deus já não é o deus-açúcar; também não é o Deus d'Abrão, mas o deus-dobrão. Os grilhões "feitos a molde de tormento e de martírio, porque não têm mais de um palmo, para impedir aos presos o andar, com o ferro quadrado e farpado para ferir, os elos tão justos que a alguns presos fazem inchar as pernas", os grilhões, inventiva do ministro da devassa, realizada pela Câmara, enchem as mãos de Luís Brás de alourado fruto. "Sem mais ordem de justiça, ele bota nos presos para, a preço de moedas d'ouro, se livrarem deles". Outras vezes, "quando quer que lhas dêem, ameaça-os com eles", o que não produz pequeno lucro. Nenhum dos presos logra escrever duas regras a quem quer que seja, sem pagar a este fiscal da tirania o costumado imposto. "As boas festas que Luís Brás dá aos presos nas ocasiões e dias delas, é convidá-los para grilhões, inventando novas ordens para botá-los, a fim de haver por este modo, em câmbio, moedas d'ouro, porque mais que este, valem em sua mão os ferros". A este cão da porta do inferno, porque inferno é a prisão das Cinco-Pontas, paguei eu o tributo extorquido pela fereza e perversidade. Provei dos seus grilhões, enchi-lhe do meu ouro as mãos. A carta que escrevi à prima, participando o falecimento de seu marido, custou-me seis moedas d'ouro. As pernas, trago-as ainda inchadas do tormento infernal, mais rendoso que um engenho ou uma fazenda. Imagine a prima, pelo que rapidamente lhe estou narrando, o que não padeceram as onze vítimas que compuseram a primeira remessa para Lisboa, o que padeceram André Dias de Figueiredo, Bernardo Vieira de Melo, Cosme Bezerra, Cosme Bezerra Cavalcanti - nosso primo, João de Barros Correa, José Tavares de Holanda, Leonardo Bezerra Cavalcanti, Lourenço da Silva e Manoel Bezerra, ilustres mártires em que o governador e os infames ministros primeiro ensaiaram a sua sanha.

D. Damiana escutava, atenta e comovida, esta rápida relação dos padecimentos infligidos aos nobres pelos instrumentos do governador. Por vezes benzia-se, de assombrada do que ouvia, e em que dificilmente queria crer.

Amador prosseguiu:

— Com a chegada do desembargador Cristovam Soares Romão, que veio substituir Bacalhau, a sorte dos nobres, se não piorou, não melhorou. Tínhamos visto passar os pés de um cadáver com um sovelão, para verificarem se a morte fora real ou mentida, como fizeram ao respeitável capitão-mor João de Barros; tínhamos visto meterem no subterrâneo das Cinco-Pontas o licenciado David de Albuquerque, porque "sendo advogado insigne e perfeitíssimo, conhecido por tal, e finalmente homem grande nas letras, temeram o governador e o ouvidor que por seu conselho viessem a pagar o mal que a tantos sem razão estavam fazendo - um homem quase morto, chagado e sem mãos para servir-se; tínhamos visto mandarem matar o crioulo do Capitão Nicolau Pereira, cortarem-lhe a cabeça, levarem-na ao ouvidor, e receberem deste 3$ de gratificação, por haver aquele crioulo - instrumento da justiça divina - tirado a vida ao malvado bandido Pedro de Lima.

— Pedro de Lima! exclamou a viúva . Já me pagou os insultos e ousadias.

— ... Tínhamos visto todas estas estranhezas, sem contarmos as prisões, os seqüestros, os despotismos contra a nobreza; e parecia-nos que o novo ministro, conquanto de muitos conhecido por apaixonado e ambicioso, viria pôr cobro a tamanhos desatinos; mas os males não tiveram termo, prima; a ambição e o ódio não desapareceram da face de Pernambuco: Cristovam Romão seguiu o caminho de Marques Bacalhau. Um dos seus primeiros passos foi instar para que fossem embarcados os onze mártires, que a esta hora, talvez, já tenham sido degolados em Lisboa. Tratou depois da devassa, na qual ouviu como testemunhas, hoje um mulato, amanhã um cativo, um vil, um destinado, e com esta madeira erigiu a execrável fábrica destinada a servir de cadafalso à nobreza. O capitão Antonio Bezerra foi recebido a toque de charamelas pelos mascates, regozijados da sua prisão. O Capitão Francisco de Freitas andou quatorze léguas, presas as mãos ambas nas algemas. Por impedir que os nobres se entendessem, foram estabelecidos presídios em vários pontos, dos quais não passam os passageiros, sejam brancos ou pretos, clérigos ou frades, por não terem licença de ir adiante, nem ainda de voltar para trás, por mais que o desejem; somente em Tracunhaém se contam nove. E porque o ódio ainda não se sentia satisfeito, ordenou o governador que o Tunda-Cumbe, com trezentos e sessenta vagabundos, se unisse com o Camarão e seus trezentos índios, para baterem novamente as matas, com cães de caça, "a fim de levantarem aos que, por fugirem dos homens, se haviam acolhido ao trato das feras". Neste exercício passaram largos dias sem verem rasto de pessoa alguma, andando mais de quatrocentas escondidas, e nem de todas as que chegaram a esconder-se puderam prender-se jamais algumas, porque não eram no mato tão afoitos os que as buscavam, como nas casas onde sabiam não haver mais poder que o das mulheres! Prima, o que têm feito contra a nobreza os portugueses europeus com o seu ouro e os seus instrumentos de baixa ou da alta origem, nunca havemos de esquecer.

Amador sobresteve, um instante. Tinha os olhos inundados de estranho e insólito brilho. Depois continuou:

— Cinco dias passou sem comer, o capitão-mor Matias Coelho, dentro de um pau oco sem dele sair; e o Capitão Gonçalo Carneiro, homem de mais de setenta anos, outros cinco esteve debaixo da terra em um caixão bem coberto, ficando parte dentro de uma casa e outra parte fora dela, sem ser visto, aberto para ter entrada o ar. O sargento-mor Domingos Coelho Nunes assistiu a uma temporada no meio do Capibaribe, entre umas lapas, sem mais comércio, nem mais trato do que com as águas do mesmo rio, e um filho que lhe levava o sustento. Prima, a valentia dos pernambucanos em lutar com todos os inimigos que esta guerra assanhou como fim de abater egrégias tradições, tem-se manifestado por vários modos que eu me sinto insuficiente para dar a conhecer.

Em idêntica recordações levou Amador o resto do dia.

Na manhã seguinte, deixando o campo das divagações, e mostrando-se mais ligado aos interesses da família, disse à cunhada:

— Não lhe parece ser tempo de tratarmos da nossa ida?

— Devo dizer-lhe, Amador, que, perdendo meu marido, encontrei uma proteção amiga - respondeu D. Damiana.

— Esta declaração encheu-me de satisfação; mas devo também dizer-lhe que, vindo a Goiana, não tenho outro fim senão levar você comigo para o seio de minha família, que não é senão a sua mesma,.

D. Damiana não disse uma palavra. Notando este silêncio, acrescentou Amador:

— Esteja pronta no mais breve tempo que for possível. Precisam muito de mim no meu engenho. Não posso demorar-me aqui senão o tempo necessário aos aprestos da partida.

— Primo - tornou-lhe D. Damiana - muito lhe agradeço o seu desvelo; mas não estou resolvida a deixar Goiana. Por que razão deixarei a terra onde nasci? Bem sei que estou pobre, porque tudo me roubaram os perseguidores da nobreza; mas, bem depressa me conformei com a adversidade e vivo hoje tranqüila neste ermo, sem outra cobiça senão a de continuar viver nele. Você não conhece os tesouros de ternura das pessoas que me receberam na sua companhia. Marcelina, aos respeitos que, por sua condição obscura, julga dever ter para mim, ajunta afetos que me lembram os de minha prezada mãe; Lourenço, filho de Marcelina, não sabe onde me ponha; a solicitude dele para mim não se pode avaliar. Entre os meus, Amador, nunca encontrei nem hei de encontrar mais verdadeira estima.

Estas palavras, impondo silêncio ao irmão de João da Cunha deram-lhe que pensar por alguns momentos.

Horas depois, voltou ao mesmo assunto, outra era a expressão do seu rosto, o tom da sua voz.

Disse:

— Em poucos meses, prima Damiana, aprendeu você uma lição que é a repulsa viva e absoluta de todas as lições da nossa família e da sua vida passada. Muito pode a adversidade; seja, porém, qual for a sua conformidade com as circunstâncias que tanto lhe mudaram os sentimentos, devo declarar-lhe que não acho para isso explicação razoável. Compreendo, e todos compreendem, que, tendo você o espírito elevado e o coração católico, as vicissitudes da sorte gerassem nele menos o desespero que a resignação, e que você visse nos últimos infortúnios largas ocasiões oferecidas por Deus, para dar provas das grandes qualidades de que é dotada. O que nem eu, nem você, nem ninguém poderá explicar, é este enfraquecimento dos laços que a ligaram por tanto tempo a uma vida distinta e limpa. Nem ainda é isto o que mais me admira. Que r saber o que me parece verdadeiramente misteriosos e incompreensível: É a sua indiferença às relações da família; é o seu desapego aos afetos que sempre lhe tiveram os seus parentes, e, entre estes, eu sobre todos.

— Mas, quem lhe disse, Amador, que sou indiferente à sua benevolência, às relações da nossa família? Será prova de desamor querer viver no retiro?

— Não, é o retiro o que se lhe pode estranhar, prima. É natural que, havendo perdido aquele a que, deve o seu maior lustre, busque ocultar do mundo as suas lágrimas. O que não é natural é que você troque pela proteção que lhe devem os parentes, a que, por caridade, lhe dão humildes estranhos. Isto é inexplicável. Atente bem nisso, prima. O mundo tem mil bocas maldizentes. Vendo você viver às costas de uma família anônima e pobre, o mundo há de ter para mim os maiores baldões. Não há de faltar quem diga que, à baixeza minha, e não ao seu capricho na realidade difícil de compreender, se deve o fato de ficar você vivendo de esmola, quando eu disponho de largos meios.

D. Damiana foi sentar-se mais perto de Amador.

— Amador, disse-lhe com voz suplicante, que interesse tem você de privar-me de uma ilusão que me resta na vida? Quero ter toda a franqueza para você. Tudo o que acabou de figurar, já me tinha passado antes pelo espírito. O que o mundo poderá dizer de mim, já o ouvi eu da minha consciência. Mas, Amador - por que não lhe hei de dizer toda a verdade? - já não poderei viver apartada desta família, sem sentir o coração despedaçado. Não há muitos meses que estou aqui; mas, as cadeias que me prendem a esta gente, são tão fortes, que se alguém as quebrasse, quebraria com elas as veias do meu corpo, e não sei como poderia viver depois disso. Sinto que não terei forças para libertar-me de prisões que são hoje cordas do meu coração.

Amador em poucas horas estava informado de tudo. Soubera de Felícia a história da restituição dela; soubera da triste cena da estrada entre Lourenço e Marianinha. Suspeitou que este e a viúva o amor os enleara em estreitos laços.

Ergueu-se, e deu alguns passo pela sala. Voltou-se depois para a cunhada, em cujas faces a palidez se estampava. Fitou-a, não revelando ódio, sim tristeza; não ira, sim, desdém.

— Sra. D. Damiana - disse-lhe - se se tratasse simplesmente da felicidade de uma mulher, fosse nobre ou mecânica, não seria Amador Cavalcanti quem se interpusesse entre essa mulher e a fonte da sua felicidade, posto que as mulheres, além de caprichosas, são muito fáceis de cegar-se e acham muitas vezes grandeza de leão no verme que rasteja pelo pó. Trata-se, porém, de uma mulher que foi recebida por um nobre, como legítima consorte, digna do seu nome e do seu sangue, à face da igreja e do mundo. Dobrada covardia seria a minha, se eu fosse tão fácil em retroceder, quanto foi fácil à senhora adiantar-se: como irmão desse nobre, tenho o dever de afastar de sobre o seu nome uma mancha iminente. Se eu não procedesse assim, seria mais vilão que o vilão que, valendo-se da adversidade de uma senhora para quem nunca jamais devera erguer as vistas, pode lançar no coração dela germes fatais, de que se geraram serpentes peçonhentas.

—A sua intenção é oculta, Amador. Seja claro.

— Já compreendi tudo, sra. D. Damiana; de tudo fui sabedor: o mistério de há pouco, penetrei-o. Aquele que morreu mártir de sua nobreza, vai ter um sucessor que nem apelido tem. Os mascates não calcularam com esta vingança, que muito mais os deve alegrar do que a própria morte do sargento-mor João da Cunha. A viúva deste nobre será amanhã mulher de um ente anônimo, que percorre as estradas de Pernambuco, descalço e maltrapilho, vendendo os seus serviços por muito menos dinheiro do que vendia outrora os seus a Tunda-Cumbe.

— Meu Deus! Que está dizendo, Amador! Que fiz eu, que autorize a formar de mim este conceito? O senhor ofende-me sem razão. Não preciso das suas lições para saber respeitar-me.

— Se esta desgraça houvesse chegado ao meu conhecimento, antes de me ver outra vez livre, eu diria que Deus resolvera extinguir de todo a nobreza de Pernambuco, pela prisão, pela morte, e pela infâmia. Não posso compelir, porque não tenho esse direito, não posso compelir a sra. D. Damiana a zelar a sua própria honra; a minha nobreza, herdada de meus avoengos, aumentada com a educação que me deram meus pais, impede-me de constranger a ter nobre procedimento qualquer mulher que a não queira ter, ainda que essa mulher seja a viúva de meu irmão. Mas, o direito de desprezar essa mulher, que é a primeira a desprezar-se, este eu o tenho, e ninguém pode impedir-me de me o exercitar. A sra. D. Damiana é livre; pode acompanhar-me, pode ficar. O que, porém, lhe afianço é que Amador Cavalcanti saberá perseverar na altura a que tem direito, e aonde não chegarão jamais nunca os salpicos das lamas levantadas pelos animais dos arreeiros ou pelos próprios pés destes.

Amador não deixou tempo para mais a D. Damiana. Voltando-lhe as costas, chamou imediatamente por um dos flâmulos, e, em voz alta, deu-lhe ordem a fim de ter os animais prestes para a volta, no dia seguinte, muito cedinho.

À noitinha, um vulto veio rompendo do fundo do sítio, e, conhecendo gente demais na casa, esteve para voltar; pouco depois, tirou para a cozinha. Era Lourenço que sem ânimo para deixar Goiana tornava ao Cajueiro. Felícia informou-o de tudo. O rapaz quase perde o uso de suas faculdades mentais.

Passada essa primeira impressão, tomou para a palhoça, onde foi encontrar Marcelina chorando. Com a sua presença a cabocla reanimou-se.

— Não imaginas o que tem acontecido nestas vinte e quatro horas. Joaquina com a Marianinha mudaram-se das nossas vizinhanças; e sinhá D. Damiana segue de madrugadinha para Jaboatão. O Cajueiro vai ficar bem triste. Quanta novidade em tão pouco tempo, sem a gente esperar! Felizmente, vejo-te ao pé de mim, filho.

— Que lhe disse sinhá D. Damiana, minha mãe?

— Saiu há pouquinho daqui. Ia banhada em lágrimas. "Nunca julguei - disse-me ela - que havia de passar por este golpe. Tinha para mim tão resoluto o meu destino!! Mas, que hei de fazer, minha boa amiga? Amador é duro. Falou-me em nome da memória de meu marido. Disse-me que se eu o não acompanhasse, cobrir-me-ia de infâmia; que os mascates, para menoscabarem essa memória, me levantariam mil aleives. Tenho medo da má fama, muito medo. Além disso, não me pertenço, conquanto pareça que sou senhora de mim; pertenço a uma família. Como havia de ser feliz se não tivesse um nome! Na riqueza não vivi melhor do que na pobreza. Mas, que hei de fazer, senão pagar o tributo que se exige de mim? Nunca me esquecerei de ti, Marcelina, nem de Lourenço". Ah! - disse ainda ela - dize a teu filho que eu lhe quero falar antes de partir.

— Sinhá D. Damiana não sabia que eu havia indo embora?

— Não sabia. Eu não quis contar-lhe o ato de desespero praticado ontem por ti.

— Fez bem, minha mãe; mas o que não farei é vê-la mais.

— Por que não hás de vê-la, Lourenço, se a pobre senhora se mostra tão agradecida a todos nós?

— Mostra-se muito agradecida? Não tem de que. Não passamos de uns miseráveis que não lhe fizemos senão o nosso dever. Se ela não nos tivesse nesta conta, não havia de deixar-nos com tanta ingratidão.

Quando ia a prosseguir, Lourenço sentiu sobre o ombro uma pressão meiga. Voltando-se rapidamente, viu junto dele a gentil viúva. A mão, que lhe pousara no ombro um instante tomou uma das dele. Nunca o rapaz tinha sentido o doce contato dessa mão fina e deliciosa, senão por ocasião do desmaio da viúva, ou nos fantásticos delírios em que ele se absorvia, durante as últimas noites no sobrado.

— Não me queiras mal pelo que eu faço contra a minha vontade, Lourenço, disse ela enternecida. Tenho o coração despedaçado. Minha alma fica no Cajueiro, ao lado de vocês. Mereço mais a tua compaixão do que o teu agravo. Levo comigo a saudade e a tristeza, bem cruéis companheiras; levo-as para bem longe, donde talvez não torne mais nunca a esta terra dos meus pais, das minhas recordações, das minhas mágoas. Não te esqueças inteiramente de mim, Marcelina, nem tu, Lourenço.

— Ninguém há de esquecer-se aqui da sinhá D. Damiana, respondeu o rapaz comovido.

As lágrimas acudiram-lhe aos olhos. Deu o andar para a porta e desapareceu nas últimas sombras do lusco-fusco, hora atroz para os amantes que se despedem certos de nunca mais se avistarem.

Notas do autor

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  1. Histórico.
  2. Histórico.