Saltar para o conteúdo

Lourenço (Franklin Távora)/XV

Wikisource, a biblioteca livre

A liga de Tracunhaém engrossara. Reduzida, pela caçada geral, a trinta membros, compunha-se de quinhentos um ano depois, não se compreendendo neste números os escravos e agregados dos senhores de engenho que com eles se haviam asilado nas matas. O nome do chefe andava de boca em boca. Falcão d'Eça era a égide dos expatriados, a providência dos perseguidos; alguns dos nobres tinham-no por doido, muitos por temerário, a maioria deles por defensor das suas pessoas e fortunas.

Falcão não descansava. Mensageiros de confiança levavam os seus convites suasórios aos pontos mais afastados. Os nobres, que pela distância em que ficavam de Tracunhaém, não podiam sem perigo vir aumentar com suas pessoas o grande núcleo da resistência, remetiam mantimentos, roupas e munições. Alguns tinham contribuído com escravos e moradores.

Todas estas diligências porém realizavam-se com grandes cautelas por evitar os grandes perigos a que se expunham os que nela se metiam.

Como era este o único ponto que o açoite do governo ainda não lograra reduzir à ultima expressão, o governador tinha nele concentradas as vistas. Muitos piquetes varriam quase constantemente as estradas que iam ter a Tracunhaém; muitos percorriam as proximidades do refúgio. A cada momento, para assim dizermos, estavam sendo espiados os menores passos dos refugiados, e somente à conhecida valentia do chefe da liga se devia não se animarem os troços ambulantes a penetrar no esconderijo onde aquele chefe devia ter o centro das suas operações, e que eles por maiores esforços empregados não haviam logrado devassar.

Coisas maravilhosas diziam-se sobre o ponto. Exagerando as forças e recursos dos asilados, o povo propalava e acreditava que o inimigo, por mais poderoso, que penetrasse ali, estaria irremissivelmente perdido. No dizer popular, as matas estavam cortadas de minas. Inexpugnáveis fortificações haviam sido construídas para defendê-la de assaltos. Existia dentro verdadeiro arraial de guerra, onde nada faltava.

Havia exagerações nesses boatos, que explicam a reputação quase lendária, que cercava o nome do chefe da liga e a própria liga.

Ao contrário disso, Falcão d'Eça assentara por maior segurança não ter pouso fixo e ter muitos em vários pontos. Certo havia dentro das matas uma região, um vasto perímetro que os nobres tinham por seguro, e consideravam do seu exclusivo domínio. Dentro dessa região, rica de naturais defesas, em parte aumentadas pelo trabalho dos refugiados, moviam-se estes, segundo convinha. Certo tinham eles armas e munições, víveres e gente para lutar quando oferecesse ocasião; mas - pode-se quase afirmar - não passavam daí os seus elementos de defesa; porque o pensamento de Falcão não era ficar nas matas por muito tempo, não era somente defender-se, mas principalmente, quando a medida dos seus recursos estivesse completa, fazer irrupção sobre a vila odiada, e dar cabo do governador e dos ministros, ou, ao menos, expulsá-los de Pernambuco, a exemplo do que em 1710 haviam feito a Sebastião de Castro Caldas.

— Nós não somos negros fugidos, dissera ele uma vez a um dos companheiros. Os negros contentam-se com o seu esconderijo. Quanto mais oculto é este, tanto mais lhes convém; porque os negros fugidos, como morcegos, têm horror à luz. Nós somos patriotas, que nos ajuntamos aqui especialmente para combinarmos sobre os meios de lançar fora da terra, que nos deixaram nossos avós, os intrusos que miram apoderar-se da herança que nos deixaram nossos pais. As matas de Tracunhaém não são os Palmares. Aqui há homens livres que tratam de castigar o despotismo; aqui há patriotas que esperam quebrar as cadeias com que pretendem acorrentá-los aventureiros ralados de cobiça; aqui não há escravos, há senhores, que hão de castigar, como a escravos esses estrangeiros, que inculcando-se amigos do povo e atraindo-o a si, têm o pensamento clandestino de tornar-se donos de Pernambuco.

Em um dos primeiros dias de junho de 1714, cortando por manhosas veredas que iam dar na região dos homiziados, onde eram esperados, quatro sujeitos chegaram a um dos pousos.

Seriam dez para onze horas da noite. Chovia copiosamente; as gotas de água, caindo na vasta folhagem da mata, produziam rumor monótono e surdo, que se assemelhava ao do vento nas folhas do coqueiral.

No pouso estava o chefe da liga, que foi o primeiro a recebê-los. Dois deles eram Faustino Figueira e Domingos Gonçalves Freire que, depois de muito buscados pelos bandos do governador, e depois de várias tentativas abortadas para chegarem às matas, tinham realizado o seu intento, auxiliados por mensageiros de Falcão d'Eça. O terceiro era o nosso conhecido Francisco dos Prazeres, marido de Marcelina. O quarto era Saturnino.

O aspecto do pouso era simples. Em um ponto onde os matos haviam deixado um pequeno espaço livre, mostrava-se suspensa, sobre quatro forquilhas de boa altura, uma ramada mais baixa para um lado que para o outro, em forma de meia-água, sob a qual uma fogueira que esclarecia, tanto quanto era preciso, o âmbito. Não obstante ser muito copiosa, a chuva não ofendia o fogo assim abrigado.

Para livrar-se do mau tempo, tinham os refugiados posto em prática o meio simples que em certas tribos os selvagens empregam: em altura conveniente haviam sido fortemente ligadas por cipós aos troncos de grandes árvores folhas de palmeira, de um e de outro lado, inclinadas obliquamente, de modo que ao mesmo tempo serviam de condutores de águas e de coberta às redes pendentes dos primeiros galhos destinadas ao repouso dos donos durante a noite. Não eram poucas as árvores que se mostravam decoradas com estas palmas largas e compridas, o que indicava não ser pequeno o número das pessoas existentes naquele pouso. Todavia, como nesta indústria não interviera senão matéria prima oferecida pela floresta, não se imaginaria, se não fora a fogueira, que por ali passara a mão do homem.

Faustino Figueira era capitão do terço de linha de Olinda. Por ocasião do levante dos mascates, em 1711, marchara contra o Camarão. Pelo seu arrojo e intrepidez, na batalha de Sibiró, onde praticara atos de bravura, pondo duas vezes em retirada as forças daquele caudilho, tanto se expusera que, perdida a batalha, teve de cair no poder dos inimigos. Remetido para o Recife, foi solto pelo bispo, que era então o governador; mas, com a mudança dos tempos, sendo tenazmente perseguido, escapava às perseguições, asilando-se nas matas de Tracunhaém.

O outro, Domingos Gonçalves Freire, sargento-mor da ordenança em Olinda, e que, na distribuição dos presídios, quando os mascates estiveram sitiados, tivera a seu cargo o comando e inspeção dos pontos que pelo lado daquela cidade fechavam o assédio, receoso de pagar com sua liberdade estes atos de hostilidade contra os mascates, viera com o mesmo destino de Figueira.

Quanto a Francisco, bastará dizer que, não podendo vencer o remorso de prestar serviços aos perseguidores da nobreza, resolvera enfim passar-se para os perseguidos. O ajudante-de-tenente indicara-o a Figueira, exaltando muito a sua fidelidade e discrição.

Foi, talvez, ele o principal guia ao pouso, isto é, o que melhor compreendeu as indicações.

— Graças a Deus, que já posso dizer —"não estou com os mascates", dissera o matuto, penetrando na mata. Eu sei bem que se eles me pegam me penduram logo no primeiro pé de pau que encontrarem; porque antes de tudo sou desertor - dirão eles. Mas eu direi que desertor era eu quando lá estava, porque a minha gente sempre foi a nobreza, e nunca os pés de chumbo. Se estive com eles todo este tempo, só Deus sabe quanto isto me custou. Por vontade minha não foi; foi porque encontrando-me com a farda nas costas e pau furado na mão, puderam dar-me leis e obrigar-me a fazer coisas que, em meu juízo e em minha liberdade, eu não faria nunca; Mas agora, lá se avenham; agüentem-se como puderem, que eu, se puder, ajudo a lhes tirar o couro. Estou muito prático no serviço da arma; sou hoje um soldado de patente; podia até ser um sargento-mor. Estou pronto para entrar em fogo, tendo à minha frente "seu" Falcão, que é só em quem se fala. Eu também só falo nele, porque tenho muita fé em quem mostra tanta coragem.

Tudo isto dissera Francisco ao entrar na mata. Parecia ter ganhado aí alma nova, ter recuperado os seus antigos espíritos, e até a sua graça e bom humor natural.

— Capitão - disse Figueira, logo que avistou Falcão d'Eça - trago-vos uma notícia cruel.

— Mais uma que venha não fará mossa na minha couraça. Há dois anos que não recebo aqui notícias de outra natureza, mas dizei-me sempre o que é, dizei logo, sr. Capitão Figueira.

— Tranqüilizai-vos. Não é nada contra as matas de Tracunhaém.

— Contra as matas, retorquiu Falcão, já eles não têm mais nada que pôr por obra. O seu entendimento esgotou-se; digo mal, esgotou-se a sua covardia, a sua perfídia. Somente lhes resta hoje um meio, que a chuva do céu não lhes permite por em prática: é tocar fogo nas matas. Se não fora invernada parece que estas léguas de espessura já teriam ardido, e com elas os que existem aqui dentro, mais prontos para morrer que cuidadosos da vida.

Tinham desembarcado na pequena aberta onde ardia a fogueira. Vendo-os chegar salvos, vários dos refugiados, saltando das redes e dos troncos secos onde estavam, correram ao seu encontro: havia uma como comunicação de alegria em todos, sempre que chegava um novo companheiro. Ao reflexo do fogo, aqueles vultos de barbas e cabelos compridos, de variados trajos, uns altos e esguios, outros baixos e cheios de corpo, quase todos silenciosos; alguns trazendo arma de fogo na mão, e cartucheira a tiracolo, alguns com espadim, ou catana pendentes de cintura, alguns arrimados a grossos cipós-paus; estes trazendo chapéus na cabeça, aqueles trazendo unicamente esta parte do corpo envoltas em lenços de cor, como praticam com lenços brancos as mulheres beatas, ou as de humilde condição, mal se cuidara que ali estava representada a primeira nobreza da província, e que homens de clara estirpe, muitos deles senhores de grandes fortunas, se confundiam assim pelas mostras, com um bando de malfeitores, réus de todos os crimes. Havia, contudo, ali corações verdadeiramente nobres; espíritos verdadeiramente dignos, pelas idéias de engrandecer a terra natal; entre esses mesmos haviam muitos que eram realistas sinceros, inimigos do governador, mas vassalos fiéis que, não sem mágoa, viam em colisão a sua vida e a hostilidade aos representantes do rei, os depositários da autoridade pública.

Restabelecido o silêncio, Falcão voltou ao assunto de que tratara momentos antes:

— Não nos dissestes ainda qual é a triste notícia que tendes para dar-nos.

Figueira respondeu:

— Não fostes sabedor de ter chegado ao Recife uma esquadra de Lisboa, e nela ordem para que o bispo se retirasse cem léguas da sua catedral, a fim de não influir suborno nas testemunhas?

— Fomos sabedores, sim, dessa gentileza do governo da metrópole, respondeu Falcão.

— Pois bem. O bispo já está de marcha para as Alagoas, cumprindo humildemente a vontade caprichosa dos fariseus.

Depois de rápidos instantes de silêncio que sucederam a estas palavras:

— Que vos disse eu, padre Guerra? perguntou Falcão, voltando-se para um dos nobres que cercavam os recém-chegados. Eu esperava que assim tratassem quem já os teria posto fora, se houvesse aceitado o convite para ser o chefe da revolução.

— Mas, senhores - disse o padre - já a igreja não merece nenhum respeito a quem tem o dever de velar pela majestade dela? Quando a impiedade partia dos aventureiros, nada havia que dizer: os aventureiros profanam os lugares sagrados, e arrancam dos santos as jóias que vendem nas tabernas a troco de cachaça ou bertagel; mas que da corte de Lisboa venha semelhante desacato, coisa me parece esta que excede a medida da maldade humana, e bem indica o ódio de Portugal contra a nobreza de Pernambuco.

— A chegada daquela frota não foi de todo má, visto que esta notícia nos trouxe outra com que devemos alegrar-nos. Veio ordem para que devassasse dos levantes o desembargador Cristovam Soares Romão... disse Domingos Freire.

— O Cutia, o Cutia - acudiu Falcão d'Eça... Sim... É boa chita o Cutia. Falas ironicamente, não é assim?

— Não vos pareceu sempre um pouquinho melhor que o Bacalhau, a quem os drs. Ortiz e Brandão deram por suspeito em Lisboa pela sua notória parcialidade a favor dos mascates?

— Melhor! exclamou Antonio Bezerra. Achais pouco o que tem feito? Conheci na Paraíba o Cutia. É capaz de todas as aleivosias, e o tempo vai mostrando se eu não tenho razão. Ah! pensais que nos há de chegar de Lisboa coisa que preste?

Falcão concentrou-se um momento, enquanto os companheiros praticavam de vários assuntos relativos ao ponto principal.

Domingos Freire, que era dotado de gênio jovial, quando os outros consideravam o assunto pelo lado sério, atraiu a atenção de alguns, encarando o lado cômico.

— Senhores, tenho um presente que lhes dar, mas antes de tudo, quero cachaça para tomar uns goles, porque estou resfriado; e depois dos goles, alguma coisa que comer, ainda que sejam pastéis fresquinhos, ou queijadas doces, como as que aparecem nos presepes de D. Úrsula.

— Pastéis frescos e queijadas doces nestas alturas! Sempre te conheci chalaceiro, Domingos, disse Manoel Bezerra.

— Não desconversem. Vocês, que são os donos do rancho, estão na obrigação de dar boa ceia a hóspedes da minha prosápia. Se, por gulosos, comeram na janta o peru e toda a eletria, contento-me com um pouco de carne de sol assada ali na fogueira. Quem é o despenseiro?

— A despensa é franca. Do jantar nos ficou ali um quarto de carneiro. Tira um pedaço, mete-o no espeto, assa-o tu mesmo.

— Asso eu, asso eu - gritou Francisco.

— Então faze logo esta obra de caridade às nossas barrigas famintas. Molharemos depois a goela com bom vinho de Lisboa, que deve haver na adega de Falcão.

— Aqui não entra nada de Lisboa, nada da santa terrinha.

— Perdão, perdão, não adverti que estava num acampamento onde se trama contra tudo quanto é europeu.

— Mas olha: ali há ótima aguardente num garrafão. Chegou ontem do engenho Cumbe. Presente que mandaram a Bulhões.

— Mas enquanto não chega o carneiro, dá-nos o mimo que trouxeste, observou Francisco Botelho.

— Isto só ao pé da fogueira.

Encaminharam-se para ali, e em troncos sentaram-se todos os que com Domingos Freire estavam formando grupo. Além de Matias Barbosa, Antonio Bezerra, Manuel Bezerra e Francisco Botelho, compunham aquele grupo Francisco de Melo, João Nunes Tinoco, Lourenço Uchoa, Álvaro Marreiros e Simão Mendes.

— Não é nem brilhante nem ouro em pó; mas é coisa que vale ouro e brilhante. É uma décima que compôs para epitáfio do juiz de fora uma musa nossa patrícia.

— Para epitáfio do juiz de fora?

— Sim, o juiz de fora Paula Carvalho, que é morto.

— É verdade.

— Morreu hidrópico do muito mal que fez à nobreza, e das largas peitas que recebeu da mascataria. Tão hidrópico morresse o Bacalhau que publicamente dizia que a "todos que" morassem das pontes do Recife para fora, se não pudesse tirar a pele, havia de tirar a camisa. O diabo os fez e o governador os ajuntou, esse governador alarve, que é capaz de comer um boi numa assentada, tão sevandija que, estando à mesa, mandou buscar o asqueroso e imundo vaso de espúrias pra exoneração do ventre cheio, e à vista dos assistentes, no mesmo ato do comer, estar em ato contrário. [1]

— Quem pratica "ação" tão fidalga pode presumir-se e afirmar-se que teve o nascimento em alguma estrebaria, e a criação em algum chiqueiro, [2] disse Simão Mendes.

— Vamos à décima, acrescentou Botelho.

Então Domingos Freire, tirando do bolso um papel, desdobrou-o e leu:

"Jaz debaixo de um calhau
Que é de pederneira galho
O defunto juiz Carvalho
Esperando o Bacalhau
Da morte deste marão
Nenhum dos mortais se queixe
Deixe andar o mundo, deixe
Que a morte não acabou
Se ela o Carvalho cortou
Inda há de pescar o peixe" [3]

Gargalhadas e palmas, sucedendo-se irressistivelmente a este produto da musa pernambucana do século XVIII, atroaram os ares abafados da floresta.

Quando cessou o estrépito do aplauso, Domingos Freire, voltando-se para um lado, gritou:

— Ó Francisco, traze logo o carneiro.

Francisco entrou, quando ainda soavam estas palavras, no pequeno espaço esclarecido pela fogueira; mas em lugar de carne, o que trazia era um homem agarrado pela véstia. Com grande esforço pudera arrastá-lo até ali. A luta fora tão renhida que parte da camisa do matuto vinha em pedaços.

— Tomem conta do cabra, que já não posso comigo mesmo!

Assim dizendo, atirou para o lado da fogueira com quantas forças lhe restavam o desconhecido, e, por não se poder ter mais em pé, caiu para o outro lado.

Em menos de um minuto o desconhecido estava cercado por todos os que de perto, ou de longe, haviam testemunhado a inesperada cena. Alentada a fogueira de propósito, para que pudessem ser bem reconhecidas as feições do espião, puseram-lhe as cordas, e amarraram-no ao tronco de uma árvore.

Havia por esse tempo no Recife uma mascate de nome Gregório, muito protegido por um europeu chamado Afonso Maciel, de todos temido. Quando o Camarão, primeiro sustentáculo dos mascates ao sul da província, entrou no Recife para visitar Félix José Machado, chegado de há pouco, muito escândalo ocasionou à nobreza Afonso Maciel com os vitupérios e convícios que para ela teve.

Com um grande séquito de conterrâneos seus, fora esperar e receber o caudilho em Afogados, ao som de fagotes e chamarelas. No momento de Miguel lançar ao pescoço do Coração uma medalha em festão lavrada de ouro, Maciel, não querendo ficar atrás, desabotoou o talabarte donde pendia vistoso espadim de bainha de ouro, e cingiu com ele o chefe caboclo. Ao passar pela rua onde morava, alcatifada como se houvera de receber um monarca, ou um benemérito da humanidade, foi a mulher de Maciel, que de cima das suas janelas adornadas com tapeçarias as que mais custosas ostentava, foi a mulher desse europeu a que mais água de Córdova, mais flores, mais confeitos e mais moedas atirou em honra do Camarão. Foi ela a que, descendo da sua morada até a rua, obtida permissão do marido, correu e abraçou o chefe caboclo, que arrogante e ancho de tão estrondosa recepção ostentava à frente dos seus quatrocentos índios, a bizarria de um guerreiro e a altivez de um ditador.

Não lhe faltando meios, porque ele era negociante sólido, não lhe faltando estímulo, porque a maioria dos seus conterrâneos, reconhecendo de quanto era capaz, lisonjeava a sua vaidade, e o incitava a praticar os maiores desdéns para os nobres, disse um dia, no fim de um jantar opíparo, em um dos sobrados da rua dos judeus, que lhe havia de ser o seu Gregório quem daria com o esconderijo de Falcão d'Eça, e quando não pusesse as algemas neste rebelde, havia de tirar-lhe a vida, para que não tramasse novo levante, e de uma vez para sempre ficasse ensinado. Fora dito isto depois de larga comezaina e de copiosos licores que lhe deveram perturbar a consciência; mas, no outro dia, camaradas exaltados lembraram-lhe o juramento feito no dia precedente, e foi isto bastante para que Afonso Maciel o ratificasse. Entre os baixos sequazes dos mascates, aqueles que percorriam em continuadas jornadas o sul da província, não havia um só que não soubesse entrar nas matas de Tracunhaém e chegar até a região onde não corria risco inspeção estranha, porque constituía domínio do público; mas dentre tantos que chegavam até terreno ou campo neutro, nenhum se arriscara jamais a dar um passo para adiante, temendo, não sem razão, cair na emboscada do célebre chefe da liga.

Gregório, porém, levado por sequazes conhecedores das veredas, animou-se a penetrar nas que eram suspeitas; e com a coragem dos instrumentos da sua condição, deixara-se ficar em paciente observação, oculto pelos matos, na entrada de uma dessas veredas, aguardando meio de penetrar no segredo.

Duas desgraças esperavam-no porém ali. A primeira foi Faustino Figueira acertar, com os companheiros, de tomar pela mesma vereda para o pouso. Gregório acompanhou-os, servindo-lhes eles, sem o suspeitarem, de guias no intricado labirinto dos matos, e nas trevas da medonha noite de inverno.

A segunda desgraça foi colocar-se perto da árvore donde pendia a matalotagem que Francisco buscava.

Se isto não o fora, ou ele, cansado de esperar em vão, deixaria o mato sem coisa de maior, desenganado de achar o refúgio dos pernambucanos; ou não seria descoberto por Francisco, e teria sido o herói de uma alta façanha no conceito dos mascates, ocasionando a prisão de quinhentos nobres, entre os quais o chefe da liga, que por si só valia mais para o governador do que todos os outros quatrocentos e noventa e nove.

Notas do autor

[editar]