Luís Soares/IV
Um dia de manhã o major Villela recebeu a seguinte carta:
« Meu valente major. — Cheguei da Bahia hoje mesmo, e lá irei de tarde para ver-te e abraçar-te. Prepara um jantar. Creio que me não hás de receber como qualquer individuo. Não esqueças o vatapá. — Teu amigo, Anselmo. »
— Bravo! disse o major. Temos cá o Anselmo; prima Antonia, mande fazer um bom vatapá.
O Anselmo que chegára da Bahia chamava-se Anselmo Barroso de Vasconcellos. Era um fazendeiro rico, e veterano da independencia. Com os seus setenta e oito annos ainda se mostrava rijo e capaz de grandes feitos. Tinha sido intimo amigo do pai de Adelaide, que o apresentou ao major, vindo a ficar amigo d’este depois que o outro morrêra. Anselmo acompanhou o amigo até os seus ultimos instantes; e chorou a perda como se fôra seu proprio irmão. As lágrimas cimentárão a amizade entre elle e o major.
De tarde appareceu Anselmo galhofeiro e vivo como se começasse para elle uma nova mocidade. Abraçou a todos; deu um beijo em Adelaide, a quem felicitou pelo desenvolvimento das suas graças.
— Não se ria de mim, disse-lhe elle, eu fui o maior amigo de seu pai. Pobre amigo! morreu nos meus braços.
Soares, que soffria com a monotonia da vida que levava em casa do tio, alegrou-se com a presença do galhofeiro ancião, que era um verdadeiro fogo de artifício. Anselmo é que pareceu não sympathisar com o sobrinho do major. Quando o major ouvio isto, disse:
— Sinto muito, porque Soares é um rapaz serio.
— Creio que é serio de mais. Rapaz que não ri...
Não sei que incidente interrompeu a phrase do fazendeiro.
Depois do jantar Anselmo disse ao major:
— Quantos são amanhã?
— 15.
— De que mez?
— É boa! de Dezembro.
— Bem; amanhã 15 de Dezembro preciso ter uma conferencia contigo e os teus parentes. Se o vapor se demora um dia em caminho pregava-me uma boa peça.
No dia seguinte verificou-se a conferencia pedida por Anselmo. Estavão presentes o major, Soares, Adelaide e D. Antonia, unicos parentes do finado.
— Faz hoje dez annos que falleceu o pai d’esta menina, disse Anselmo apontando para Adelaide. Como sabem, o Dr. Bento Varella foi o meu melhor amigo, e eu tenho consciencia de haver correspondido á sua affeição até aos ultimos instantes. Sabem que elle era um genio excentrico; toda a sua vida foi uma grande originalidade. Ideava vinte projectos, qual mais grandioso, qual mais impossivel, sem chegar ao cabo de nenhum, porque o seu espirito creador tão depressa compunha uma cousa como entrava a planear outra.
— É verdade, interrompeu o major.
— O Bento morreu nos meus braços, e como derradeira prova da sua amizade confiou-me um papel com a declaração de que eu só o abrisse em presença dos seus parentes dez annos depois de sua morte. No caso de eu morrer os meus herdeiros assumirião essa obrigação; em falta d’elles, o major, a Sra. D. Adelaide, emfim qualquer pessoa que por laço de sangue estivesse ligada a elle. Emfim, se ninguem houvesse na classe mencionada, ficava incumbido um tabellião. Tudo isto havia eu declarado em testamento, que vou reformar. O papel a que me refiro, tenho aqui no bolso.
Houve um movimento de curiosidade.
Anselmo tirou do bolso uma carta fechada com lacre preto.
— É este, disse elle. Está intacto. Não conheço o texto; mas posso mais ou menos saber o que está dentro por circumstancias que vou referir.
Redobrou a attenção geral.
— Antes de morrer, continuou Anselmo, o meu querido amigo entregou-me uma parte da sua fortuna, quero dizer a maior parte, porque a menina recebeu apenas trinta contos. Eu recebi d’elle trezentos contos, que guardei até hoje intactos, e que devo restituir segundo as indicações d’esta carta.
A um movimento de espanto em todos seguio-se um movimento de anxiedade. Qual seria a vontade mysteriosa do pai de Adelaide? D. Antonia lembrou-se que em rapariga fôra namorada do defunto, e por um momento lisongeou-se com a idéa de que o velho maniaco se houvesse lembrado d’ella ás portas da morte.
— N’isto reconheço eu o mano Bento, disse o major tomando uma pitada; era o homem dos mysterios, das sorpresas e das idéas extravagantes, seja dito sem aggravo aos seus pecados, se é que os teve...
Anselmo tinha aberto a carta. Todos prestárão ouvidos. O veterano leu o seguinte:
« Meu bom e estimadissimo Anselmo. — Quero que me prestes o ultimo favor. Tens contigo a maior parte da minha fortuna, e eu diria a melhor se tivesse de alludir á minha querida filha Adelaide. Guarda esses trezentos contos até d’aqui a dez annos, e ao terminar o prazo, lê esta carta diante dos meus parentes.
« Se n’essa época a minha filha Adelaide fôr viva e casada entrega-lhe a fortuna. Se não estiver casada, entrega-lh’a também, mas com uma condição: é que se case com o sobrinho Luiz Soares, filho de minha irmã Luiza; quero-lhe muito, e apesar de ser rico, desejo que entre na posse da fortuna com minha filha. No caso em que esta se recuse a esta condição, fica tu com a fortuna toda. »
Quando Anselmo acabou de ler esta carta seguio-se um silencio de sorpresa geral, de que partilhava o proprio veterano, alheio até então ao conteúdo da carta.
Soares tinha os olhos em Adelaide; esta tinha-os no chão.
Como o silencio se prolongasse, Anselmo resolveu rompêl-o.
— Ignorava, como todos, disse elle, o que esta carta contém; felizmente chega ella a tempo de se realisar a ultima vontade do meu finado amigo.
— Sem duvida nenhuma, disse o major.
Ouvindo isto, a moça levantou insensivelmente os olhos para o primo, e os d’ella encontrárão-se com os d’elle. Os d’elle transbordavão de contentamento e ternura; a moça fitou-os durante alguns instantes. Um sorriso, já não zombeteiro, passou pelos labios do rapaz. A moça sorrio tambem; mas que sorriso! Jámais uma rainha sorrio com tamanho desdem ás zumbaias de um cortezão.
Anselmo levantou-se.
— Agora que estão scientes d’isto, disse elle aos dous primos, espero que resolvão, e como o resultado não póde ser duvidoso, desde já os felicito. Entretanto, hão de dar-me licença, que tenho de ir a outras partes.
Com a sahida de Anselmo dispersára-se a reunião. Adelaide foi para o seu quarto com a velha parenta. O tio e o sobrinho ficárão na sala.
— Luiz, disse o primeiro, és o homem mais feliz do mundo.
— Parece-lhe, meu tio? disse o moço procurando disfarçar a sua alegria.
— És. Tens uma moça que te ama loucamente. De repente cahe-lhe nas mãos uma fortuna inesperada; e essa fortuna só póde havêl-a com a condição de se casar comtigo. Até os mortos trabalhão a teu favor.
— Affirmo-lhe, meu tio, que a fortuna não pesa nada n’estes casos, e se eu assentar em casar com a prima será por outro motivo.
— Bem sei que a riqueza não é essencial; não é. Mas emfim vale alguma cousa. É melhor ter trezentos contos que trinta; sempre é mais uma cifra. Contudo não te aconselho que te cases com ella se não tiveres alguma affeição. Nota que eu não me refiro a essas paixões de que me fallaste. Casar mal, apezar da riqueza, é sempre casar mal.
— Estou convencido d’isto, meu tio. Por isso ainda não dei a minha resposta, nem dou por ora. Se eu vier a affeiçoar-me á prima estou prompto a entrar na posse d’essa inesperada riqueza.
Como o leitor terá adivinhado, a resolução do casamento estava assentada no espirito de Soares. Em vez de esperar a morte do tio, parecia-lhe melhor entrar desde logo na posse de um excellente peculio, o que se lhe afigurava tanto mais facil, quanto que era a voz do tumulo que o impunha.
Soares contava tambem com a profunda veneração de Adelaide por seu pai. Isto, ligado ao amor que a rapariga sentia por elle, devia produzir o desejado effeito.
N’essa noite o rapaz dormio pouco. Sonhou com o Oriente. Pintou-lhe a imaginação um harem rescendente das melhores essencias da Arabia, forrado o chão com tapetes da Persia; sobre molles divans ostentavão-se as mais parfeitas bellezas do mundo. Uma Circassiana dansava no meio do salão ao som de um pandeiro de marfim. Mas um furioso eunucho, precipitando-se na sala com o yatagan desembainhado, enterrou-o todo no peito de Soares, que acordou com o pesadelo, e não pôde mais conciliar o somno.
Levantou-se mais cedo e foi passear até chegar a hora do almoço e da repartição.