Luzia-Homem/XI

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Contra a expectativa de Luzia, Teresinha regressou desanimada e lânguida, sem a natural vivacidade e rapidez de movimentos, que lhe assinalavam a índole instável, a indiferença, quase inconsciente, da torpeza a que a fatalidade a arrastara. Tinha amortecidos e sombrios os olhos faceiros, e a comissura dos lábios, sempre arqueada pelo hábito do sorriso desdenhoso e irônico, se dilatava, desgraciosa, em torvo traço de sofrimento.

— Então?... – inquiriu Luzia, com ânsia.

— Quase morro... – respondeu ela, comprimindo os quadris magoados – Nunca mais... me meto em outra... Credo!... Quem de uma escapa...

— Que houve?... Que te aconteceu?...

— Um horror!...

— E o respônsio?...

— A Rosa rezou...

— O ladrão não é Alexandre...

— Não sei...

— Fala, mulher, pelo amor de Deus. É preciso que a gente esteja a te espremer...

— Ainda tenho a cabeça meia atordoada e as pernas lassas... Sinto ainda uma dor aqui nas cadeiras...

Teresinha gemia as palavras e contorcia-se em requebros lascivos e dolentes. Depois, fixando, com esforço, as idéias, que lhe giravam dispersas no cérebro, como reminiscências de fatos remotos, fez a narrativa dos episódios da bruxaria, com minúcias exageradas, tocadas do forte colorido de fetichismo e alucinação.

— Quando vi, minha negra, as horrendas figuras crescerem dançarem como demônios do inferno, são os ladrões – disse comigo – mas não lhes pude divisar bem as feições, tantas e tão feias era as caretas que me faziam. Parecia um bando de papangus.

— E não os reconheceu?...

— Qual!... Aquilo foi, por força, arte do cão... Que horror!.. Disse-me a Rosa que esperasse com fé... Vamos ver...

— Descansa... É possível que, depois de assentares o juízo, te lembres melhor...

— Ninguém me tira da cabeça que aquela esconjurada, meu Deus perdoai-me, botou-me coisa ruim no corpo...

— Não pensa nisso, criatura... Você está nervosa.

— Isto é doença de moça rica...

— Doença não quer saber de branco nem de preto, não respeita fortuna nem pobreza... Venha cá – acrescentou, empolgante, com o olhar áspero e desconfiado – Você viu alguma coisa, mas não que ser franca...

Teresinha fez com a cabeça um gesto negativo, e sentou-se acabrunhada. Luzia continuava a contemplá-la ansiosa. Seus olhos reluzentes de aflição, exprimiam a esperança no milagre e a revelação anelada para restaurar a honra de Alexandre, e restituí-lo à liberdade...

Quanto tempo teria ainda de esperar? Quantos dias e quantas noites seria ainda o mísero obrigado a passar entre aquelas quatro paredes infectas?... E se não fosse possível salvá-lo; se a justiça descobrisse provas contra ele; se, na verdade, fosse o culpado de tão feio crime?!...

Tais dúvidas empanavam, como nuvens fugaces, o atribulado espírito de Luzia.

Alexandre teria energia para suportar a prisão, o vilipêndio da pena infamante; ela, porém, não se podia conformar com a idéia de reconhecê-lo criminoso, acusado de ladrão e maculado para sempre. Preferiria vê-lo morto, estirado no chão, fulminado por um corisco.

— Ninguém me tira da cabeça – acentuou Teresinha, emergindo da prostração que a subjugara – que aquilo é obra de soldado...

— Também eu – ajuntou Luzia – já pensei nisso... Um homem, como Alexandre, não teria astúcia para tanto... Além disso haviam de, por força, desconfiar dele...

— Com efeito... Era preciso ser muito besta para furtar coisas do armazém, fazendas, mantimentos, dinheiro...

— Sim, coisas que davam logo na vista... Quem só vive do trabalho, que mal dá para o de-comer e arranjar um molambo para cobrir, não poderia esconder semelhante furto... Quando aparecesse com roupa nova ou fizesse gastos...

— É mesmo. Perguntava-se: onde foi o fogo, onde arranjou isso?... Quem cabras não tem e cabrito vende... Eu, por mim, não se me dava de jurar que não foi Alexandre... Gente que tem furto na consciência não olha direito para os outros... Cara de ladrão não me engana...

— Ah! Teresinha!... É Santo Antônio quem está falando pela tua boca... Os anjos digam amém...

— Tanto hei de teimar que descobrirei tudo... Não é a primeira nem será a última vez que eles fazem das suas e botam a culpa nos outros...

Ocorreu, então, a Luzia o que lhe havia dito Alexandre, aludindo em termos vagos, a uma intriga que não queria revelar diante do outros presos. O Promotor também lhe falara, com meias palavras de uma pequena complicação, naturalmente alguma coisa desfavorável, algum indício de culpa... Que seria?... Que intervenção diabólica frustara o milagre, perturbando a visão de Teresinha, lhe ofuscando a memória? Quem sabe se ela não vira o ladrão e, por natural delicadeza, se esquivava de lhe patentear a dolorosa realidade para não a magoar, privando-a do inefável conforto da esperança com a desilusão e a tristeza esmagadora de deparar a verdade fria e implacável?!

A razão é a luz; a dúvida é a treva, congeminação de contrastes engendrados pela mesma causa. Felizes os irracionais, porque não duvidam.

Apesar da sua energia máscula, ela se sentia aniquilada, num colapso de nervos enrijados à contínua tensão de tantas amarguras e cuidados, vexames, a pobreza, duras privações de haveres, a moléstia da mãe, o pressentimento de perdê-la a qualquer momento e a obsessão do soldado, além da orfandade, o desamparo pela prisão de Alexandre, a única pessoa que a poderia ajudar a viver.

Não lhe bastavam para tormento constante, as próprias aflições? Para que se mortificar com a sorte dele? Não era seu parente; nada os ligava, a não ser recíproca troca de favores, a gratidão, orvalhando o gérmen da simpatia instintiva e um projeto vago, a proposta de se aliarem pelo matrimônio.

Quem sabe – pensava ela – se, em vez de partir de impulso do coração, não fora feita por generosidade, compaixão, ou desejo sensual de possuí-la, onerá-la com a responsabilidade da família, filhos, que aumentariam os vexames já oprimentes, para depois, como tantos outros, abandoná-la, inflingir-lhe a abjeção de ser preterida por outra mulher, crime que os homens cometem como um direito do sexo, ou divertimento cruel, igual ao de matar rolas e desmanchar ninhos?!

Culpado e punido, ficaria livre de penar por ele, do compromisso de gratidão e das conseqüências funestas do triste consórcio de dois pobres. Sozinha no mundo, poderia, com a graça de Deus, e os seus músculos, trabalhar para viver, ou emigrar para a praia em busca da proteção e amparo do padrinho José Frederico.

Tais pensamentos, bons e maus, perversos ou generosos, acudiam, em tumulto, disparatados e contraditórios, ao seu cérebro perturbado pela dúvida. Acariciava-os ou lutava para expungi-los; e vinha-lhe, por fim, o remorso de haver pecado por soberba, por falta de caridade, julgando mal Alexandre, quando, em verdade, os sofrimentos dele repercutiam no seu coração com dobrada intensidade, como se ele fora parte de seu ser, porção de sua alma.

Seria isso bem-querer, como imaginava; duas criaturas confundidas de corpo e alma em harmonia ininterrupta de afetos e idéias, vivendo da mesma nutrição moral, dos mesmos anelos, eternamente ligados no prazer e na dor, na vida e na morte?!

Sentia-se incapaz de amar; carecia-lhe a fraqueza sublime, essa languidez atributiva da função da mulher no amor, a passividade pudica, ou aviltante da fêmea submissa ao macho, forte e dominador, irresistível, como aprendera na intuitiva lição da natureza; essa comovente timidez de novilha ante a investida brutal do touro lascivo, sem prévios afagos sedutores, sem carícias de beijos correspendidos, como nos idílios das rolas mimosas. Não; não fora destinada à submissão. Dera-lhe Deus músculos possantes para resistir, fechara-lhe o coração para dominar, amando como os animais fortes: procurar o amor e conquistá-lo; saciar-se sem implorar, como onça faminta caindo sobre a presa, estrangulando-a, devorando-a. Não era mulher como as outras, como Teresinha, para abandonar a família, o lar, a honra, por um momento de ventura efêmera, escravizando-se ao homem amado, contente do sacrifício, orgulhosa do crime, insensível ao vilipêndio, sem olhar para trás onde ficaram os tranquilos afetos, para sempre perdidos; e, por fim, consolada à torpeza do repúdio infame, à margem da estrada da vida, como um resíduo inútil, condenado a vis serventias, trapo que foi adorno cobiçado, molambo que vestiu damas formosas, casca de fruto saboroso e aromático.

Não; não fora feita para amar. Seu destino era penar no trabalho; por isso, fora marcada com estigma varonil: por isso, a voz do povo, que é o eco da de Deus, lhe chamava Luzia-Homem.