Luzia-Homem/XIV

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Uma surpresa auspiciosa assinalara o amanhecer: a velha enferma erguera-se, sozinha, da rede; e, escorada a um pequeno cacete de cocão, envernizado pelo uso, apareceu à porta do quarto.

— Deus seja louvado – exclamou Luzia, em gárrula expansão alvoroçada.

— Seja bem-vinda, tia Zefinha!... – disse Teresinha, com largos ademanes maneirosos - Abanque-se aqui, no alpendre, que está mais fresco. Ora, até que enfim... Não há mal que sempre dure...

— É a minha promessa a São Francisco das Chagas, de Canindê – observou a enferma – que me restituiu a saúde... Eu tinha uma fé...

E o seu rosto de pergaminho, retalhado de rugas e dobras, se dilatava em meigo sorriso.

— Olhem – continuou, caqueando no seio do cabeção, bordado de cacundês, onde imergiam confundidos, entrelaçados, os rosários, bentinhos e medidas de santos, que lhe pendiam do pescoço; e mostrando uma caçoila com a imagem do milagroso padroeiro em péssima gravura, cujos milagres admiráveis atraíam os fiéis, vindos de longínquas paragens, em contínua romaria à sua bela igreja cheia de ex-voto, pernas, braços, mãos e cabeças, modelados em cera, ou toscamente esculpidos em madeira, viscosamente coloridos e marcados de chagas hediondas, muito sarapintados de sangue e arrouxeados de equimoses e alguns verdadeiros aleijões, monstruosidades repugnantes; muletas e ligaduras de pano velho, duras de sânie embebida; todas essas relíquias de piedade, penduradas, em simetria, às paredes da nave, rememorando curas, obtidas pela intercessão do santo, a quem Jesus Cristo concedera a graça de marcar com o estigma das cinco chagas.

Também fizera uma promessa a São Gonçalo da Serra dos Cocos e a outros patronos celestiais, não menos afamados pelo prestígio de sarar enfermos, desesperados da saúde. Estava em verdadeiro apuro para dar conta de todas elas; mas, o padre Antônio Fialho, ouvindo-a em confissão, lhas comutara em leve penitência, impondo-lhe a obrigação de rezar algumas coroas, terços e o ofício de Nossa Senhora, hino mirífico, que, quando é cantado na terra, os anjos se ajoelham no céu. Nas horas de alívio, ela se penitenciava debulhando, entre vagos fulgores de esperança, as contas luzidias de um rosário bento pelo santo missionário frei Vidal.

— Não sinto quase o puxado, minhas filhas, e aquele entalo, que me sufocava, também desapareceu. Dormi, que nem um passarinho, louvado Deus.

— Eu bem lhe dizia, tia Zefinha, que o remédio, abaixo de Deus, havia de ser a sua salvação.

— Agora – observou Luzia – é continuar com ele: estamos de viagem.

— E tu a dar-lhe, filha. Espera mais um pouco. Estou tão afeita a sofrer que, se não fosse falta de fé, desconfiava ser isso visita da saúde...

— Qual, vosmecê vai arribar mesmo – afirmou Teresinha, com muita convicção.

A velha sentou-se, acariciada pela filha, que lhe endireitou as dobras da saia e o lenço da cabeça, enquanto Teresinha preparava o chá de erva-cidreira, que ela tomava todas as manhãs.

— Agora, disse a velha, com um suspiro de alívio – vocês podem cuidar do trabalho, que ficarei tomando conta da casa. Se não fosse esta pobreza, tomaria uma menina para fazer-me companhia, varrer o terreiro, dar-me um caneco d'água, enquanto estivessem fora labutando... Já passei, aqui, dias e dias sem ver vivalma, até que a Luzia voltasse da obra... Que dias compridos!...

— Dias que não voltarão, tia Zefa, porque aqui estou eu, que a não largo mais...

— Se houvesse por aí – continuou a velha – uma pasta de algodão, fiaria um novelo para não estar banzando sem fazer nada... e só pensando na moléstia...

Às nove horas Luzia, ansiosa por saber o que lhe começara a contar Alexandre, a revelação interrompida pela sobrevinda insolente de Crapiúna, partia com o almoço para o desconsolado preso, que, mal terminada a refeição, lhe perguntou se sabia alguma coisa de novo; e, pois lhe a rapariga respondesse com simples gesto negativo, disse, à puridade, suspeitar da interferência maligna de algum interessado em desgraçá-lo.

— Sabe o que me fizeram – continuou, amargurado - Levantaram-me uma calúnia... Você conhece a Gabrina, aquela moça morena, que perdeu a mãe, há pouco tempo?... Pois não inventaram que eu lhe havia dado dinheiro e dois cortes de vestido?...

— O quê?!... – exclamou Luzia, franzindo os sobrolhos, e encarando no moço.

— Eu que nunca alevantei meus olhos para semelhante criatura senão para salvá-la, quando nos encontrávamos no trabalho.

— Quem disse isso?

— Há gente para tudo, até para levantar falsos contra os seus semelhantes.

— Mas... quem inventou esse aleive?... Ela?!... É possível que uma rapariga tão moça tenha maldade para tanto?...

— Disse que eu andava há muito tempo atrás dela, seduzindo-a com promessas de casamento e que, sozinha no mundo, sem ter quem se doesse dela, não se lhe dera de consentir... Veja que mulherzinha mais desalmada... E eu, disse ela, lhe dera os mimos para que ela saísse logo de casa comigo...

— E você jura que isso é mentira?...

— Eu?... Eu não preciso jurar; basta, Luzia, que lhe afirme...

— Por certo... Demais, que tenho eu com os seus particulares?... Você não tem necessidade de negar... Mentira ou verdade, é livre, desimpedido, senhor da sua vontade para empregar o bem-querer em quem for do seu agrado. Isto não é da minha conta...

— Mas... queria explicar...

— Para quê? São desnecessárias para mim essas explicações. Deve dá-las ao Delegado...

— Luzia – continuou Alexandre, fitando-lhe uns olhos pisados de mágoa – Você tem sido, abaixo de Deus, minha protetora, meu anjo da guarda nesta desgraça, que me apanhou. Não tenho outra pessoa que puna por mim... se me abandonar...

— Abandonar!... Não penso em semelhante ingratidão. Além disso, é obrigação fazer o que tenho feito pelo senhor e ainda mais, se necessário for, muito embora, depois de solto, satisfaça o capricho do seu coração. Serei sempre a mesma, somente não estou para levar fama sem proveito, como já me tem acontecido...

— Sei quanto tem sofrido por minha causa...

— Não vale a pena. Fui eu quem lhe truxe caiporismo. Mas, só peço a Deus que me ajude a tirá-lo desta cadeia. Depois, o senhor toma o seu rumo e eu o meu. Será melhor assim para ambos...

Houve prolongada pausa. Alexandre, conturbado àquelas palavras secas e cruéis, contemplava, num misto de espanto e mágoa, a figura da moça, enteada, e de olhos cerrados, quase absorta em torturantes pensamentos. Rompeu ele, a custo, o oprimente silêncio.

— Que rumo tomarei, Luzia, senão o seu? Para onde for, hei de acompanhá-la como a minha estrela, a minha guia, segui-la como o cachorro vai atrás do dono que o abandonou e o despreza. Se eu entulho o seu caminho, se quer ver-se livre de mim, não me tire daqui; não empregue mal os seus passos... Deixe-me entregue à minha sorte, apodrecendo nesta sepultura de vivos, infamado... esquecido como um malfazejo, que nem compaixão merece. Só lhe peço a esmola de não desconfiar da minha inocência... Caiu-me em cima uma infelicidade que não sei explicar, uma vingança de mulher, de inimigos miseráveis; mas não sou ladrão... Nunca!...

— Vingança de mulher!... – murmurou Luzia, num grande entono de cólera indomável.

— Atenda-me. Essa, Gabrina, além de má, é ingrata. Quando a mãe caiu doente e foi desenganada, foi comigo que se achou para arranjar remédios e um caldo chilro para a infeliz. Eu sabia que a filha era uma doida, que apressara a morte da mãe com desgostos, arrebates e más respostas, por isso tive somente em mira fazer obra de caridade para não a deixar morrer à míngua. Você sabe que morreu mesmo; e, então, a filha foi para a companhia da Chica Seridó; e nunca mais me ocupei com a vida de semelhante desmiolada... É verdade que não faltou quem atribuísse os meus atos a embelezamento pela moça, que dava cabo ao machado, inculcando-se...

— Já lhe disse que nada tenho com isso, nem desconfio do senhor...

— Então por que me ameaça com a separação?...

— Quem, sou eu?... Quero evitar as más línguas, que não me poupam. Em homem nada pega, mas, em moça, tudo tisna. Eu confio em Deus acabar os meus dias, limpa como nasci do ventre da minha mãe... A pobreza não me afronta, porque tenho forças para trabalhar e ainda não cansei de sofrer. Sabe o que temo? Que façam pouco de mim, que me frechem com dictérios e caçoadas. Às vezes, tenho ímpetos de estraçalhar uma dessas criaturas perversas que me olham pelo rabo do olho, rindo pelo canto da boca, como se eu fora uma ridícula... Quando o senhor for para a sua banda e eu para a minha, tudo acabará...

— Como acabaria, se nos casássemos.

— É impossível... Nasci, com má sina...

— Bem, Luzia... Vejo que me suspeita, embora não o diga francamente... Paciência... Será como for do seu agrado.

— Luzia amarrou, lentamente, a toalha com os pratos da refeição, que Alexandre mal encetara. Havia nos seus gestos, aparências de calma fria, resoluta. Toda ela, entretanto, vibrava com o abalo estranho, indefinido, que a invadira como um frio pérfido de moléstia.

— Até amanhã - disse ela, secamente.

— Não venha mais, Luzia... – murmurou o preso – Não vale a pena fazer mais sacrifícios por mim... Arranjarei aqui mesmo o de-comer. Basta. Não mereço tamanha dedicação... Deixe-me de mão, já que não quer ser ridícula...

Ela não lhe respondeu. Retirou-se, de manso, com o andar lento e fatigado de quem vai a contragosto. Alexandre acompanhou-a, com os olhos desvairados, até que ela dobrou a esquina do João Padeiro, e desapareceu no beco do Coronel Braga. Pungia-lhe o coração imensa saudade, o pressentimento de nunca mais tornar a vê-lo, remorso de haver provocado a separação com o excesso de brio, ressumante nas palavras cruéis com as quais se desonerara da piedosa tarefa de visitá-lo todos os dias, para levar-lhe, talvez, o melhor quinhão da magra despensa de pobre, o precioso quinhão do pobre, que se priva do apenas suficiente para não morrer à fome. Súbito, ele estremeceu de pasmo, de dolorosa surpresa, ao fitar a parede, onde se fincavam os vergalhões de ferro da dupla grade... Estavam ali, entre migalhas da comida, murchos e ressequidos, os cravos rubros que ele havia dado a Luzia...