Luzia-Homem/XVII

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O beco da Gangorra terminava na várzea, que o rio Acaracu inundava nas cheias, em um renque de casas velhas habitadas por michelas e soldados do destacamento. Belota ocupava uma delas, paredes-meias com o quarto de Teresinha, que só ali aparecia, raramente, para mudar de roupa, ou, consoante ela dizia, vigiar os seus teréns, um baú tauxiado de pregos doirados, uma pequena mesa desconjuntada, o pote d'água e alguns objetos de cozinha.

A porta de Belota, quase ao escurecer, Romana, Joana Cangati e Maria Caiçara conversavam acocoradas e cigarreando, muito desenvoltas e palradeiras. Romana, sempre roliça, com os cabelos duros de pomada cheirosa, aljofrada de empolas de suor adiposo, a ponta do nariz curto e arrebitado, e mostrando os dentes pontiagudos, contava casos escandalosos, que as outras contestavam, ou ampliavam e comentavam com insinuações picantes e grosseiras, ou se espraiavam em mexericos triviais sobre a crônica da ralé. Joana Cangati, a mais séria das três, metida a rezas e bruxarias, desde que por uma praga, irrogada pela mãe, ficara com o útero escangalhado de um aborto, obra do demônio, porque a consciência não a acusava de haver feito por onde, dava-se certo recato e modos de mulher séria, muito temente a Deus. Maria Caiçara, bem conformada, galante rapariga, a qualquer graçola de Romana, despejava o riso em gargalhadas estrídulas.

— Então – dizia Romana – o tal Alexandre está cada vez mais embrulhado.

— Não sei – observa a Cangati – Quem havera de dizer?! Eu, meu Deus perdoai-me, não vi ele furtar; por isso não digo nada; mas há coisas que só pintadas pelo cão...

— Qual o quê! – continuou Romana – a Gabrina que o diga. Quando soube que ele estava todo babado pela Luzia-Homem, desembuchou e contou tudo...

— O que ciúme não fizer...

— E fez muito bem, sa Joaninha. Você, comparando mal, quer bem a um homem, tem confiança nele, nas suas promessas, se ele não lhe corresponde e atraiçoa, não tem mais obrigação de guardar fidelidade. Não é?... Não faltava mais que estar empatando a rapariga com outra de olho e já de casamento tratado. Iam embora juntos e, muito que bem: a Gabrina que ficasse com os beijos com que mamou ou com cara de besta...

— Pois eu – atalhou a Caiçara – só quero quem me quer. Entojou de mim?... Melhor!... Homens não faltam.

— É porque você, mulher, nunca teve paixão de fazer a gente perder noites de sono...

— Paixão é bobage, sa Joana...

— Então você não sabe que a Gabrina queria bem ao Alexandre, calada, sem dar demonstração. Andava atrás dele bebendo ares; ficava horas esquecidas na porta do armazém da Comissão, olhando pra ele com olhos melados de piedade que parecia quererem engolir vivo o moço?...

— Histórias...

— É o que lhe digo, por esta luz. Deus dê muitos anos de vida a quem ela pediu uma oração forte, a do "Santo Amâncio te amanse", para amolgar coração de homem ingrato.

— E aquela bestalhona acredita na virtude dessas bruxarias?

— Bruxarias?!... Bata na boca, Romana, para não ser castigada. Com santo não se faz mangação.

E a Cangati entrou a contar casos assombrosos, que não conseguiram dominar o cepticismo de Romana.

— Mas – ponderou Caiçara – se ela estava mesmo caída pelo Alexandre, como é que foi contar a história do dinheiro e dos cortes de vestido dados por ele, e agora anda toda derrengada com o Crapiúna?

— Tudo por pique. Ciúme faz reinação do demônio, e torna uma pessoa boa malvada como uma cascavel. Depois ela e Crapiúna se entendem; sofrem do mesmo mal; andam os dois com o juízo entornado: ela pelo Alexandre, ele pela Luzía-Homem. Não sei como isso acabará. Talvez nalguma desgraça...

— Qual desgraça, qual nada. É uma coisa que se vê todos os dias. Desenganados, cada um vai para a sua banda cuidar em outra coisa... Amor desencontrado.

— É porque você não conhece o Crapiúna, nem a Gabrina. Ele é o que se sabe, capaz de tudo, até de mandar gente desta para melhor; ela, uma bichinha teimosa como uma mosca, e ruinzinha que faz dó. Não se me dava de jurar que ela inventou aquela história para desgraçar Alexandre... Ronha não lhe falta.

— O quê?!...

— Cala-te boca... Não está mais aqui quem falou... Façam de conta que não ouviram nada.

— Você que diz isso, sa Joana, é porque sabe alguma coisa.

— Não sei nada. É uma cisma que tenho.

— Ela não tinha astúcia para inventar uma história tão bem contada, tão cheia de circunstâncias. Se não foi do furto, quem lhe deu dinheiro para comprar um par de brincos de ouro?

— Sei lá! Não quero esmiuçar a vida dela, nem a de ninguém; mas vocês não a conhecem, repito: é capaz de dizer que Deus não é Deus e não há ninguém mais manhosa debaixo daquela sonsidão de menina!

— O quê, sa Joana; você parece que inticou com a rapariga!

— É muito arrebitada e mal-ensinada; mas eu até gosto dela...

— Olhem quem está ali – exclamou Maria Caiçara, apontando para Teresinha, que abria a porta do quarto.

— Bons olhos a vejam – disse a Cangati, com modos amáveis. – Por isso é que a tarde está tão bonita!...

— Boas tardes – respondeu Teresinha, secamente.

— Por onde tem andado, que mal pergunto?

— Por aí mesmo... – tornou Teresinha, entrando para evitar bisbilhotices, e dar trela às três vadias, muito do seu conhecimento como catanas, que nada poupavam.

Belota mantinha tavolagem, frequentada por parceiragem de ínfima condição e mal-afamada, Zé Zoião, Cândido da Bertolina, exímios artistas da vermelhinha, operosos contribuintes da estatistica criminal e heróis de todos os distúrbios que agitavam a paz da cidade. Eles se encarregavam de atrair as vítimas: comboieiros e matutos ingênuos; e, depois, como viciosos de raça, repartiam, ao jogo, as quotas das extorsões.

Crapiúna era freqüentador assíduo, principalmente quando se jogava o monte, partida de sua predileção.

Os outros parceiros não se davam bem com ele, por ser muito rezinguento. Por qualquer pretexto, armava barulho e, muita vez, estivera a pique de fazer água suja, inconveniente aos créditos da casa.

Desde que tomara a peito quebrar o encanto de Luzia-Homem, andava-lhe a sorte arrevesada. Perseguia-o um caiporismo incessante, que o tornava ainda mais irritadiço e trêfego, principalmente quando Belota, chasqueando, insinuava que ele estava contra o sentido do rifão, sendo infeliz no jogo e no amor, e atribuía as perdas consideráveis, que ele sofria, ao fato de andar com o juízo passeando, em vez de fixá-lo nas cartas ensebadas e sujas do baralho, recurvado em forma de telha pela pressão do partir, repetindo-lhe a cada pexotada, que jogador não guarda cabras.

Nessa tarde, o jogo fervia lá dentro, e as três mulheres continuavam a grasnar, aguardando as gorjetas dos afortunados, e fazendo de vigias para avisarem aos jogadores a aproximação do sargento Carneviva, que era um duende para os soldados. Em achando banca armada, podiam os viciosos contar com os mais severos castigos, o serviço dobrado com mochila às costas em ordem de marcha e sarilho, quando não eram esfregados com surra de espada de prancha, ou de cipó de raposa.

Crapiúna estava num dos seus piores dias. Perdera já quantia tão avultada, que os parceiros procuravam, surpreendidos, atinar onde arranjara ele tanto dinheiro. Os prejuízos montavam a vinte que haviam passado, suavemente, para os bolsos do Zoião e do Cândido, nos quais Crapiúna encarava desconfiado, atribuindo a batota, em que eram useiros e vezeires, tamanha fortuna.

— O Senhor – disse-lhe Zoião, cravando-lhe, de esguelha, os grandes olhos esbugalhados – parece que está maldando de nós!

— Não estou maldando – resmungou Crapiúna – mas tanta sorte junta é de fazer a gente desconfiar...

— Pois se desconfia – avançou o Vicente, em jeitos arrogantes – o remédio é não jogar mais nós. Veja o seu Belota se se queixa...

Cândido, velhaco e pouco expansivo, não falava, exasperando com um sorriso irônico, o soldado infeliz.

— Não me queixo – observou Belota – porque estou com o juízo no jogo. Você, Crapiúna, não tem razão. Estou com um olho no padre e outro na missa, e não admitiria trapaça... principalmente em minha casa.

— Nem nós seríamos capazes de abusar... – acrescentaram, quase ao mesmo tempo, os outros parceiros, com uma vasta exibição de escrúpulo.

— Vocês são capazes de tudo! – tornou Crapiúna, irritado.

— Veja como fala!

— Tenho visto o que fazem com os matutos. Comigo fia mais fino... Se eu perceber qualquer tramóia...

Foi-se azedando a discussão até falarem todos, em tumulto, trocando injúrias e doestos, apesar da intervenção conciliadora de Belota, para evitar um conflito.

Teresinha, que fechara a porta da rua para mudar de roupa, foi atraída pelo rumor e não resistiu à curiosidade de saber donde provinha. Dirigiu-se, cautelosamente, ao pequeno quintal; e, firmando os pés nas fendas dos tijolos carcomidos, guindou-se acima do muro que dava para a casa vizinha. Daí descortinou a tumultuosa cena, a fúria de Crapiúna, as ameaças dirigidos aos parceiros venturosos, às réplicas destes, cheias de malícia irônica, audaciosos, porque, aliados como estavam, não se arreceavam do insolente soldado, nem eram homens que morressem de caretas, mesmo das mais pintadas.

Chegou o momento em que esteve iminente a conflagração. Vicente, sempre calmo, sempre sorridente, considerava, que tanto direito tinha Crapiúna de desconfiar deles quanto estes; entretanto não o faziam, porque não queriam cascavilhar na vida alheia.

— Para saber – atalhou o Cândido – onde você desenterrou botija para ter tanto dinheiro para perder.

— Olhe – acrescentou Zoião – se eu quisesse falar era capaz de o desgraçar...

Crapiúna estremeceu, e levou, de repente, a destra ao cabo da faca, escondida debaixo da farda.

— Pois fale, seu miserável – bradou ele, ganindo de raiva que te hei de obrigar a morder a língua danada.

— Olha Zoião, meu amigo Crapiúna – implorava Belota, entre os dois. – Nós somos todos amigos velhos. Para que este baticum de boca... Daqui a nada ouvem lá fora... Pelo amor de Deus... Seu Candinho, você que é mais moderado tenha mão no Zoião, mais no Vicente...

— Pois então, seu Belota – ajuntou Zoião, com os olhos faiscantes - era o que faltava, um indivíduo...

— Depois digam que sou eu quem está intimando!...

— Que – continuou Zoião – não pode levantar a cabeça diante de homens de mãos limpas, querer ter voz altiva para insultar os outros!... Tenha mão nele, que é soldado como você e deve respeitar a farda...

Crapiúna rosnava, acovardado, como fera acuada, subjugado pela serenidade do adversário. Lívido, de olhar fulvo, ensangüentado, resmoneava surdas ameaças, e Zoião, com inquebrantável energia, continuava:

— Não pense que digo isto por estar em companhia e aqui na casa de Belota... Sou homem para o senhor em toda a parte, e como quiser. Se tem Pasmado, eu tenho Pajeú, ferro de qualidade que nunca me envergonhou... Se o seu já quebrou o preceito, o meu também não está em jejum...

— Pelo amor de Deus – suplicou o Belota, com lágrimas na voz – Basta!... Basta!... Está acabado por hoje, meus amiguinhos da minh'alma... Vocês parecem crianças...

— Olha, cabra, toma a bênção ao Belota...

Depois desta ameaça, Zoião deixou-se conduzir pelo Cândido, que chofrou esta pilhéria:

— Até mais ver, seu Crapiúna, quando quiser a desforra... Damos lambuje...

Teresinha, espiando ansiosa, por cima do muro, lamentava o desenlace pacífco da contenda.

— Você sempre arma cada rascada, seu Crapiúna – observou Belota, ainda agitado.

— Aquele homem é um precipício – murmurou o soldado – Se não fosse você... Deixe estar que os desaforos não caíram no chão...

— O melhor é você não fazer caso...

Belota, com maneiras manhosas de consumado velhaco, tinha enorme predomínio no camarada, que tanto era agressivo e rixoso, quanto cobarde, quando entestava um adversário considerável. Isto sucedera no caso da Quinotinha, a que o Alexandre defendera, com uma coragem evidente, bonita...

Depois de muitos conselhos e exortações, Belota pretextou necessidade de ir ao corpo da guarda, prometendo voltar sem demora.

Vendo que Crapiúna se dirigia para o quintal, Teresinha desceu, ligeiro, do posto de observação, e correu. Mal teve tempo de chegar à porta, atrás da qual se escondeu, trêmula de terror.

O soldado, destro como um gato, saltou por cima do muro, e dirigindo-se para o fundo, suspendeu um velho caixão, atulhado de coisas imprestáveis, tirou de sob o qual uma bolsa de coiro de onça, cheia de dinheiro.

Enquanto o soldado contava, umedecendo os dedos na língua, as notas miúdas, dilaceradas e sórdidas, Teresinha, no esconderijo, procurava, em vão, conter as pernas vacilantes, quase a vergarem. Pelos seus olhos espavoridos, passou a visão do responsório, em casa de Rosa Veado. Uma das sombras, aquela que, com esgares de louco, a arrebatava em volteios macabros pelo ar, em nuvens de fumaça sufocante, estava ali corporizada, bem nítida, contando o dinheiro furtada. O glorioso Santo Antônio operara o milagre. Por precaução criminosa, talvez para arriscá-la, Crapiúna escondera o furto, denunciá-la-ia mais tarde, e ela seria, como cúmplice de Alexandre, vítima de uma prova esmagadora.

Entre o terror de se achar a sós com o soldado em tão estreito espaço, ser por ele pressentida e descoberta, testemunhando o terrível segredo, e o prazer de haver colhido certeza da autoria do crime, Teresinha vacilava na resolução por tomar, sem se embaraçar nas malhas da rede, em que pretendia apanhar o criminoso. Teve ímpetos de gritar, de surpreendê-lo em flagrante, e arrastá-lo à presença do delegado. Isso, porém, seria perder-se, sacrificar-se, inutilmente, porque Crapiúna seria capaz de eliminá-la, estrangulá-la, sem piedade. Ela não poderia lutar, frágil como era e aberta dos peitos, contra um homem vigoroso e armado de uma faca hedionda, cujo cabo de chifre, incrustado de arabescos de oiro, surgia-lhe da ilharga. Ah! se tivesse os músculos de Luzia!

As pernas lhe tremiam, cada vez mais bambas; os dentes se chocavam com estalidos secos, toda ela tiritava inundada de suor gelado, que lhe empapava os cabelos na fronte, e lhe corria pelo dorso, como vermes pegajosos. A cabeça andava-lhe à roda; e, na visão perturbada, o soldado se afigurava desdobrado em outros iguais e pequeninos, que avançavam para ela com trejeitos de palhaços. A mísera debatia-se para fugir, implorar socorro, como na angústia de um pesadelo.

Os rápidos instantes que se ali demorara o soldado lhe pareceram infindáveis; e quando recobrou a posse de si mesma, saindo do esconderijo, pé ante pé, com meticulosas precauções, lívida, espavorida, viu que o quintal estava deserto. Nada denunciava a presença dele: o caixão estava no mesmo lugar, onde permanecia, havia muito tempo; não viu pegadas no chão, nem o mais leve vestígio.

E a bolsa?... Ela não ousava verificar se fora reposta onde a vira.

— Seria realidade ou sonho? – inquiria ela, procurando despertar a memória, fixar idéias e recompor o fato, em todas as suas minúcias – Teria, na verdade, visto Crapiúna transpor o muro, suspender o caixão e contar o dinheiro?...

Seria a revelação efeito da intervenção do Santo?...

Nessa dolorosa incerteza, esgotadas as forças, com os quadris doloridos, como se os houvesse traspassado a faca do soldado, marchou trôpega, para o interior do aposento, então quase escuro, e, subjugada de inelutável torpor, derreou-se na rede, armada a um canto.

Era quase noite. Não se ouvia mais o grazinar das três mulheres, que haviam partido para a delícia de um gozo, fariscando, numa insaciedade, a fortuna dos jogadores.