Luzia-Homem/XVIII

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O relógio da Matriz dava oito horas, quando Teresinha despertou sobressaltada, tomando pela claridade da aurora, o luar que se coava pelas frestas do telhado. Seu primeiro movimento foi para erguer-se, ir ter com Luzia, dar-lhe, como costumava, notícias de Alexandre, e contar-lhe a excelente novidade. Mas, o corpo enlanguescido de tão violentas comoções, do torpor do sono, recusou obedecer. Ela permaneceu encastoada na rede, encadeando idéias dispersas, e fixando bem, na memória, o episódio que duvidava ainda fosse sonho, ou realidade. Por fim, assaltou-a o medo de estar só na penumbra do quarto, povoado de fantasmas, rumores suspeitos que se lhe figuravam passos de homem aproximando-se, hálitos ansiosos, como a sua própria respiração ofegante.

Com esforço voluntarioso ergueu-se, espreguiçou-se para distender as articulações entorpecidas, e abriu, de manso, a porta.

O beco estava deserto, banhado de luz intensa, suavemente argentina. Na casa fronteira, alumiada pela froixa luz de uma vela de carnaúba, chorava, em magoados vagidos, uma criança enferma, acalentada pela mãe, que murmurava monótonas cantigas, cortadas de suspiros. Era a angústia do coração a estoirar de pranto.

Teresinha espreitou todos os lados; fechou a porta sem estrépito, e partiu, dirigindo-se para a várzea, por uma estreita senda, cavada no solo, ladeado de cisqueiros, farejados, afocinhados de cães magros e murchos, que se esgueiravam desconfiados. Ela passou, depois, cosida aos altos muros do fundo dos quintais, até chegar à encruzilhada das ruas, cheias de escravos, retirantes, gente ,suja, gente esquálida, carregando potes d'água, colhida nas cacimbas abertas na areia do rio, a conversar, rezingando, em voz alta, com rasgadas desenvolturas de chufas, de arregaços obscenos, com risos estridentes de malícia.

Ao chegar à rua, suspirou libertada do pavor aflitivo; e, outra vez, gozando uma doce serenidade d'ânimo, seguiu na direção da igreja do Rosário, relembrando os incidentes daquela tarde, a cena do jogo, a cobardia no esconderijo, e o terror que lhe não permitia verificar se Crapiúna deixara a bolsa de coiro de onça debaixo do caixão. Em todo caso, estava satisfeita com o haver logrado a certeza do verdadeiro criminoso, indicado pelo infalível, pelo glorioso Santo Antôniol, e a convicção de concorrer para a libertação de Alexandre e a felicidade inteira de Luzia. E reputava-se engrandecida por essa boa ação, renovada do passado de culpas, de crimes talvez, dos quais fora responsável inconsciente, e, sobretudo, a principal vítima. Entidade diminuída e inútil, flutuando sobre uma suja torrente de vícios incontinentes, sentia-se valorizada, sentia-se forte e sentia-se prestante. Duas criaturas, pelo menos, neste mundo de ingratidão, de perfídia e de miséria, seriam reconhecidas à sua dedicação.

Enlevada no doce conforto do beco, Teresinha foi subindo a rua do Rosário até ao largo. Em redor do Cruzeiro, erguido defronte da igreja, sobre um sólido pedestal de alvenaria, crentes, ajoelhados, rezavam padre-nossos, ave-marias e o terço, murmurado, nuns tons soturnos de devota cadência.

Do piedoso burburinho, sobressaía a voz de Dona Inacinha, ao recitar, com solenidade de padre, o gloria-patris, respondido pelos fiéis, numa algaravia, um mistifório de latim e português: - Os que perderem em princípio, agora im sempre por todos os séculos, seculoro. Amém, Jesus.

A moça prostrou-se, comovida, abeirando-se do grupo, pouco e pouco engrossado pelos transeuntes, de uma reverência grave, na maioria mulheres, de alvos mantos, a espalharem ao luar, claro como o dia. Havia muito, seus lábios se não entreabriam à florescência da prece consoladora, nem despertava, aos eflúvios puríssimos da fé, sua alma agrilhoada ao pecado. Dos hábitos piedosos da infância, apenas conservava o de persignar-se antes de dormir, antes de tomar banho. Não se recordava da última vez que rezara, a não ser a oração sacrílega em casa da Rosa Veado.

Terminados os mistérios do terço, Dona Inacinha entoou, com pompa, numa voz fanhosa e áspera, o canto de contrição, - "Oh! Senhor Deus bem-amado...", acompanhado por todos os devotos, com uma dissonância aparatosa, irremediável. Aos derradeiros versículos, houve uma contrita, houve uma longa pausa. Recolheram-se todos com Deus, curvados e humildes, preparando-se para o solene epílogo do ato religioso, a súplica comovente de misericórdia. Quando, esta ecoou, entoada pela beata, em acentos plangentes, as pessoas, afastadas da igreja, reunidas em roda, na calçada, tanto que ouviam a súplica, ajoelhavam e batiam também nos peitos, repetindo, em leve, em sentido balbucio, a invocação à misericórdia divina. Teresinha curvou-se, compungida, e pediu a Deus, sinceramente, perdão dos seus pecados.

Ergueram-se os devotos, como um rebanho de ovelhas, espantado na malhada noturna, e debandaram em todas as direções, depois de beijarem o pedestal da grande cruz negra, que o luar destacava, com melancólicos fulgores.

Ao toque de nove horas, desmancharam-se as rodas de confabulação amistosa; trocaram-se saudações habituais e arrastaram-se as cadeiras para o interior das casas, cujas portas se fechavam com estrépito.

Naquele tempo, terminavam a tal hora, com exceção das raras casas da fidalguia da terra, as visitas, fossem de cerimônia, fossem íntimas. É considerável esta nota.

Luzia passeava, impaciente, sob a latada, cujas palhas, muito secas, farfalhavam ao violento embate das rajadas tépidas.

— Que horas são estas?! – exclamou, avistando Teresinha.

— Fui ao meu quarto – respondeu esta – mudar a roupa e peguei no sono...

— Pensei que te havia acontecido desgraça... Tardaste tanto... Estava num pé e noutro ansiosa... E... Alexandre?...

— Na mesma. Poucas palavras e muito sucumbido... Mete dó vé-lo, coitado!

— Perguntou por mim?

— Não. Eu é que falei de você. Disse-me que não lhe podia pagar o que tem feito por ele; entrou a repetir que já está desesperado... Sempre a mesma ladainha.

— Tem razão. Há quase um mês que padece...

— Deixe estar que, mais dias, menos dias, se descobre a verdade. Deus há de permitir que isso seja breve, talvez amanhã...

— Amanhã?!... Dessa esperança estou farta.

— Não desespere, Luzia. Quem espera sempre alcança. Você nem pode adivinhar o que vai acontecer.

— Sabe, então, alguma novidade?...

— Não. É um palpite.

— Um palpite à-toa?...

— Lembra-se, Luzia da minha alma, lembra-se do respônsio?

— Sim. E depois?...

— Não lhe dizia eu que tinha fé no milagre? Pois é por ter fé que prevejo a próxima libertação de Alexandre. Diz-me o coração que ele está ali e está na rua. Ainda há instantinho rezei o terço no cruzeiro do Rosário, e uma voz interior dizia-me, com segurança: Deus tarda, mas não falha...

— Então ele nem perguntou por mim!?

Luzia prescrutava, com olhares insistentes, o pensamento de Teresinha, suspeitando que ela lhe ocultasse a verdade, ou que soubesse algo que, por compaixão, lhe não queria revelar. Essa reserva mental devera influir naquele ar de mistério, velado de ironia, palavras vagas, em completa discordância do gênio expansivo e alegre da rapariga, uma deleitosa criatura sem aspirações, resignada ao seu quinhão minguado da partilha das coisas boas deste mundo, feita pela Providência. Entretanto, ela testemunhava, com funda mágoa, a ansiedade, o desconcerto de Luzia.

Esteve a pique de revelar-lhe o descobrimento do dinheiro; mas, por um justo egoísmo, desejava reservar para si, exclusivamente, a caridosa iniciativa da libertação do prisioneiro, se bem que não houvesse ainda atinado como tirar partido do que vira, ou tornar valioso o seu testemunho único, porque não ousara verificar se a bolsa ficara no lugar onde Crapiúna a escondera.

Era por medo, por cobardia indesculpável que se não houvera assegurado dessa circunstância importante, ela que tinha afrontado perigos e estava calejada de suportar as vicissitudes da vida? E se ele houvesse tirado o dinheiro? Tornar-se-iam inúteis o descobrimento, o tormento daqueles angustiados, daqueles inolvidáveis instantes, porque nada valeriam as suas afirmações.

Seria possível que assim se desvanecessem as esperanças da iminente vitória da verdade à calúnia, urdida contra o pobre moço!...

Luzia por sua vez, meditava, com os claros olhos fitos na clara lua, a librar-se no céu, de um fino e doce azul. Seu pensamento adejava em redor de Alexandre, que, indiferente, não perguntara por ela, merecedora do castigo desse desdém, e rendida à voz diabólica que, das entranhas, lhe bradava, com insistência lancinante: "és, culpada pelo teu excessivo amor-próprio, pela tua soberba!..."

Seguia-se a revolta, com assomos fanfarrões de defesa inconsistente, fútil.

— Não quer saber de mim? – pensava ela – Melhor. Fosse eu outra, faria o mesmo. Deixá-lo-ia entregue à sua sorte, desobrigando-me de tamanha canseira, pois muito tenho feito para demonstrar-lhe a minha gratidão. Talvez isso lhe conviesse para desembaraçar-se do compromisso de ligar à sua vida, uma mulher pobre com a mãe doente, duas bocas a reclamarem de comer, neste tempo de carestia, e maior soma de trabalho. Seria uma loucura pensar em casamento em semelhante crise. Ele, sozinho, poderia suportar privações, vencê-las ou sucumbir consolado de não fazer falta a ninguém, como defunto sem choro...

E Gabrina?... – Não iria esta ou outra igual ocupar, no coração vazio, o lugar que Luzia abandonara? Não procuraria ele, na triste conjunção do naufrágio das suas esperanças, uma afeição que o consolasse, um refúgio carinhoso, embora impuro de lascívia, onde se abrigasse para espairecer, como quem se intoxica de bebidas capitosas para curar dissabores, ou se afoga na vasa infecta de um pântano?

Seria horrível. E Luzia estremecia, sob um pavor, como se fora ameaçada do espólio de um bem inestimável, de coisa a que tinha direito sagrado, coisa que ela criara, e à qual transmitira parte da sua alma, planta que tratara com desvelado carinho, regada com o suor das suas aflições e o orvalho das suas lágrimas, ameaçada de ser desarraigado por mão criminosa, quando lhe desabrochavam, pujantes de viço, coloridas e perfumosas, as primeiras flores. Não tinha energias varonis, músculos poderosos para defender o seu bem querido, e esmagar o espoliador!?... Não tinha o indeclinável dever de lutar pelo que era seu, e constituía, já, elemento essencial da sua existência, como se defendesse a própria vida, o património inexaurível dos tesoiros do coração, o precioso quinhão da inefável ventura que, neste mundo, só no amor se encontra?

Como puas lancinantes, esse egoísmo, que é a suma de todos os instintos da espécie, tanto mais veementes e indomáveis quanto menos culto é o espírito da mulher, não contaminada de pecado, na exuberante razão do organismo sadio, assanhava-lhe as iras, a lhe morderem como cobras, o coração, que lhe projetava nas veias uma torrente abrasada de ódio a Gabrina, a todas as mulheres que lhe disputassem a presa adorada, contra si mesma, que o abandonara, contra as coisas que a cercavam, testemunhando o seu penar, contra aquele astro radiante a iluminar a luta travada no âmbito escuro da sua alma, como lâmpada tristonha a revelar o monstro de paixão acuado na caverna das entranhas, latejantes de desejos...

Passava-lhe, então, pela mente alucinada, a torva idéia de vingar-se, rebaixando-se, de poluir-se, de atolar-se no charco da lascívia, saciando-se até à embriaguez, ao primeiro encontro, fora embora cúmplice do imundo crime, o mais hediondo dos homens. Crapiúna, outro qualquer, ainda mais vil e detestável, contanto que a sua depravação, com requintes de despejo, fizesse sofrer Alexandre, o desalmado, o frio homem, que não perguntara por ela, a Teresinha.

E a voz diabólica, vibrando em místicas melodias, de um tom angélico, e dominando o tumulto da sua alma atribulada, repetia: "Por que te golpeias assim? por que te maceras nessa luta mortíficante e estéril, frágil criatura?...

Vai; curva-te, como escrava, aos pés do ente adorado, beija-lhe as mãos, unge-as com o bálsamo do teu pranto, porque o amas... Uma exortação de alto romantismo, a dessa voz de anjo e diabo...

Despertou-a do cismar torturante, a voz de Teresinha:

— Que bonito luar, Luzia. Dá vontade à gente de passar a noite em claro. Como está bem visível! São Jorge e o cavalo empinado. Dizia-me um tapuio velho da Serra Grande que a lua protege a quem quer bem. Quando uma tapuia gentia tinha saudades do marido ausente, olhava para ela, e lá lhe aparecia o retrato da criatura querida, ou nela casavam, conduzidos pelos olhares, as almas do par, separado por léguas de distância.

Luzia, maquinalmente, olhou para a lua a navegar serena no céu nítido, e pensou que, àquele momento, Alexandre também a contemplava, triste e só, por entre as grades do cárcere infecto.

— A lua – continuou Teresinha. com melancolia – leva recados e juras dos noivos, e amolece o corpo da gente. E o tapuio dizia que ela era mãe da terra, das coisas e das criaturas vivas; protegia as plantações, mandando chuva e orvalho, aquecia os ninhos chocos, dava cheiro às flores em botão e cio aos animais. Também tirava o juízo à gente, quando se zangava... Ah! que saudades me faz o luar! Foi por uma noite destas, que conheci o Cazuza pela primeira vez... Ai, ai... Deus... meu pai...

E ela se esticava, num grande bocejo de volúpia, deitada sobre a esteira, desalinhadas, pelo vento, as roupas leves, os olhos quase cerrados à imortal saudade do primeiro amor, sempre vivo no inquieto coração devastado.

— Tomara que já amanheça – continuou, bocejando – Como custa a passar a noite!... Em que está você tão embebida, Luzia?

— Eu!... Estou maginando na minha triste vida...

— Arre lá com tanto disfarce! Você, minha negra, não se abre comigo. Estava, mas era longe daqui, rezando à lua como as tapuias.

— Você tem coisas, Teresinha!?...

— Não chorei na barriga da minha mãe, mas adivinho. Por que não diz logo que está com o juízo em Alexandre?

— Como hei de pensar em quem não faz caso de mim!... Nem perguntou a você, por mim...

— Não perguntou por quê?... Porque você, por pique, não foi mais à cadeia. Você é caprichosa, ele também... Mas não se me dava de apostar como ambos e dois estão arrependidos...

— Acha, então, que depois do que houve, eu deveria entreter uma... coisa sem fundamento, sem esperança?

— Qual o quê! A gente faz de um argueiro um cavaleiro, fica amuada, jura por quantos santos, faz finca-pé... É o mesmo que nada. Quem quer bem não tem vergonha. Eu, ralada neste mundo, que o diga.

— E a história da Gabrina?

— Mentira, tudo mentira. Não duvido que ela levantasse, com aquela cara de santa, toda denguices e inocências, o falso testemunho. É uma rapariga bem-parecida, bem feita de corpo, mas tem a alma deste tamanhinho. A Chica Seridó tem comido candeias, desde que tomou conta dela. É capaz de tudo, meu Deus perdoai-me. Não duvido que tenha feito esse malefício por ciúme...

— Por ciúme?...

— Pensa que todos os homens se babam por ela, e, como Alexandre não lhe deu trela...

— Demais, que tenho eu com isso? Tanto se me dá que ela goste dele, como que não goste. Só me empenho para ele ser livre. O mais... está acabado...

— Que soberbia, Luzia! Você ainda é castigada.

— Por quê? Se não faço mal a ninguém...

— Deixe estar. Quem for vivo verá... Não há mal que sempre dure... Amanhã!... Ali! miserável; tenho aqui o fio da meada!

Teresinha, como se falasse a um ente miserável, estendeu, com ar triunfante, o punho cerrado.

— Bem dizia eu – exclamou Luzia – que você sabe alguma coisa...

— Ora se sei... Vai ver... Amanhã, se Deus quiser... Não; o melhor é não dar à língua... Espere...

E Teresinha, muito lenta, muito lânguida, entrou a murmurar, baixinho, com uma ternura tiritante, uma canção, da qual Luzia distinguiu bem esta quadra:

A traição, meu bem, ature:

Diga que é cega e não sabe,

Não há mal que sempre dure,

Nem bem que nunca se acabe...