Luzia-Homem/XX

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Teresinha conversava com a tia Zefinha, numa rútila impaciência de olhos alegres, quando Luzia chegou a casa. Falava de Alexandre, amaldiçoando a justiça que o conservava na cadeia, havia mais de um mês, por causa de imputes feitos pelo hediondo soldado, de parceria com a Gabrina, doidivanas, positivamente, quase a despencar-se no mundo, arrastada pela falta de juízo e os péssimos exemplos, porque a morada da Chica Seridó era lugar de reunião de gente mal reputada, fregueses de suas mezinhas e feitiçarias.

O semblante claro e, claramente, expansivo de Luzia, denunciou-lhe a vontade que lhe alvoroçava o coração.

— Como vem mudada! – exclamou Teresinha – Você parece que viu passarinho verde?

— É porque tenho de quê, respondeu Luzia, beijando as mãos descarnadas da mãe.

— Vamos lá. Conte-nos isso, que também tenho boas novidades.

— Já sei quem é o ladrão...

— Ora! Isso é velho para mim, como a serra dos Cocos.

— Sabia então?...

— Olé! Não sabia, mas suspeitava.

— Pois eu sei. Foi mesmo uma coisa mandada por Deus.

E repetiu, sem reservas, a revelação de Quinotinha.

— Franqueza por franqueza – disse – Teresinha, resoluta – Eu também tenho muito que dizer, coisas que me andam embuchando há muitos dias. Primeiro que tudo, fiquem sabendo: Crapiúna está preso...

— Preso?!... – exclamaram, a um tempo, Luzia e a velha.

— A onça deste pasto está muito bem guardada no xilindró... E quem conseguiu isso?

— Esta sua criada - afirmou Teresinha, com ênfase, batendo no peito, com largo gesto de contentamento.

Contou, então, como descobrira o esconderijo do dinheiro, as aflições suportadas com heroísmos fanfarroneou a coragem, o sangue frio, apesar de fraca, não era mofina, e, mais não morrera de terror quando se viu a sós com o malfazejo soldado, e passear a narrar a entrevista com o sargento Carneviva.

— Que quer você? – disse ele, apurado, riscando com proficiência grave, mapas e tabelas.

— Vim aqui dar parte... – respondeu, perturbada pela severidade do homem de má cara, muito barbada e muito fechada.

— Anda depressa, que estou muito ocupado. Comando o destacamento na ausência do tenente, que foi fazer uma diligência, e não tenho tempo para trelas.

Teresinha, muito sobressaltada, denunciou-lhe a cena do jogo em casa de Belota e a briga de Crapiúna com os paisanos.

— Bem desconfiava eu que aqueles malandros tinham casa de jogo na Gangorra – rebentou o sargento, com cólera, cheio de censura disciplinar – Deixa estar essa corja que os arranjarei... É só isso?

Logo que a moça começou a narrar o episódio de ter descoberto o dinheiro no quintalzinho do seu quarto, o sargento, em crescente interesse, largou a régua, tirou cautelosamente o tira-linhas da boca, onde o sustinha atravessado, e pejado de tinta, e cravou indagadores olhos na delatora.

— Como é isso? – inquiriu, com surpresa – Então aquele homem que está preso?...

— Inocente, meu senhor; limpo como saiu da barriga da mãe...

— Dele – atalhou, rapidamente, Carneviva, que não queria dúvidas – Veja o que está dizendo mulher...

— Vossa senhoria, se quiser, pode ver com os seus próprios olhos... Depois, eu não tenho necessidade de mentir...

— Lá isso é história. De enredos de mulheres estou farto. Vocês, quando têm raiva dos soldados inventam e mentem como deslambidas. Enfim, vou indagar o caso da jogatina. Oh! Cabecinha!...

— Pronto, seu cadete.

— Que é do Crapiúna?

— Está na guarda da cadeia.

— E o Belota?

— Também.

— Mande rendê-los e que venham já à minha presença.

Cabecinha partiu, e Teresinha fez um movimento para retirar-se e evitar a acareação com os soldados.

— Não senhora – ordenou Carneviva – Fique para deslindarmos já esse negócio.

— Poucos minutos decorreram. Crapiúna entrou primeiro, e não pôde disfarçar a surpresa de encontrar, na sala do sargento, a moça, transida de susto pelo vexame. Belota chegou, depois, com ares humildes, tímidos.

— Que história foi essa – perguntou-lhe Carneviva – do jogo em sua casa? Já lhe não havia dito que, à primeira denúncia, você, seu Belota, ajustava comigo novos e velhos?

— Saberá vossa senhoria – balbuciou Belota – que é menas verdade... Até tenho andado doente...

— Qual doente!... Você quando faz maroteira, dá-lhe logo na fraqueza...

— Por Deus, seu cadete...

— Vamos lá. Quero saber tudo... E, se mentir, arranco-lhe com a chibata, o coiro do lombo...

— Vossa senhoria me perdoe... Foi, foi... uma brincadeira... a... a leite de pato...

— Bom. E o senhor? – perguntou o sargento, voltando-se para Crapiúna, que dardejava sobre Teresinha, olhos ferozes.

— Eu não sei nada respondeu ele, secamente, e sem hesitação.

— Ah!... Então você não esteve jogando em casa de Belo a com os vagabundos Zoião, Candinho e Vicente da Henriqueta?

— Vossa senhoria não ande atrás de histórias desta mulher, que mente como uma cadela vadia.

— Então o senhor – atalhou Teresinha, pulando, irritada pela injúria – não esteve quase se pegando com os outros? Não foi aqui o seu Belota, quem apartou a briga!?... Não é verdade que, quando eles foram embora, saltou para o meu quintal paredes-meias?...

O sargento impôs-lhe silêncio, com um gesto rápido e enérgico. Crapiúna empalideceu, e Belota, espantado, sem atinar com a significação da palavra da moça, interrogava o camarada com o olhar.

— Vamos seu Belota – ordenou o sargento – Bote para fora o que sabe. Vamos que temos panos para mangas...

Belota, sempre cheio da intransigência das ameaças do sargento, acobardou-se e contou o caso, amenizando-o com disparatadas justificativas. Fora uma brincadeira de amigo, uma coisa à-toa, que terminara num bate-boca.

— E aqui este mestre?

Crapiúna olhava, de soslaio, para Belota.

— Saberá vossa senhoria – respondeu este - que o seu Crapiúna não estava...

— Você está mentindo seu diabo...

— Quero dizer... sim senhor... Não estava não, senhor...

— Veja bem o que está dizendo.

— Não estava no... no... princípio: chegou; quase no fim... Mas, juro que não vi ele saltar o muro...

— Bom. Chegou no fim, hem!?

— É menas verdade – interrompeu Crapiúna, num ímpeto de audácia insolente – Este homem diz isto para se desenrascar.

— Não negue, seu Crapiúna - retorquiu Belota – O senhor estava. Eu, mesmo contra mim, falo a verdade como homem. Se porém, eu disser que vi você saltar o muro, minto porque deixei o senhor sozinho em minha casa, e fui ao quartel.

— E você, seu Crapiúna, o que foi fazer ao quintal vizinho?...

— Já disse a vossa senhoria que é mentira dessa língua danada.

— Também será mentira que tirou debaixo de um caixão, uma bolsa de coiro de onça?...

Crapiúna ficou lívido, e atirou, desesperadamente, um gesto de ameaça a Teresinha.

— A bolsa? – exclamou ele, maquinalmente, tomado de pasmo.

— Sim, senhor – afirmou o sargento, com ironia. – A bolsa onde guarda o seu dinheiro, a sua botija encantada.

Traído pela inesperada revelação e irritado pelos contínuos gestos afirmativos de Teresinha, Crapiúna, a custo, sofreava os estos da cólera, que lhe queimava o coração.

Eu sei lá dessa história de bolsas... – respondeu, aparentando serenidade – É verdade que cheguei no fim do divertimento; tive uma turra com o Zoião, uma bobage... Mas...

Carneviva levou o apito à boca, e tirou dele três trilos agudos e violentos. Apareceram imediatamente, quatro soldados.

— Bem. Vamos pôr isso em pratos limpos. Ah! Eu bem suspeitava que havia falcatrua... Todos os dias uma queixa. Furtinho para aqui, gatunagem para acolá... Cambada que é a vergonha da farda!... Corja de ordinários...

Depois, pondo à cinta uma garrucha, ordenou aos soldados:

— Vamos! Acompanhem-me com estes dois homens: desarmem a esses coisas ruins.

À aproximação dos camaradas, Crapiúna recuou, e levou imediatamente a mão ao sabre: mas, o sargento lho arrebatou com um movimento rápido, com um movimento enérgico.

— Olha lá!... Não se engrace comigo, seu Crapiúna... Observou ele – Vamos e muito direitinho... Comigo não se brinca, vocês sabem...

Partiram em escolta, acompanhados por magotes de pessoas, no trajeto pela rua. Chegando ao quarto de Teresinha, Carneviva ordenou que se afastassem, e entrou com os soldados ficando à porta uma sentinela. Nessa ocasião, chegou o subdelegado, atraído pelo ajuntamento e informado da ocorrência, passou a dar a busca.

A bolsa foi retirada debaixo do caixão e aberta. Havia nela dinheiro, jóias e alguns fragmentos de papel-escrito, versos de canções populares e o rascunho de uma carta a Luzia.

O subdelegado inquiriu, então, Crapiúna: - De quem é esta bolsa?

— Não sei – respondeu o soldado, impávido de furor. - Pergunte a essa mulher que é a dona da casa...

Os camaradas presentes afirmaram que a bolsa era muito conhecida; pertencia a Crapiúna.

— Bem – concluiu a autoridade – Vou levar o fato ao conhecimento do delegado, a quem está entregue o inquérito, para lavrar o auto. O senhor sargento terá a bondade de mandar recolher os homens incomunicáveis, e comparecer com as testemunhas na delegacia.

Luzia e a mãe ouviram a narrativa, num enlevo de alegria, num enlevo de pasmo, com as almas nos olhos, como se lhes revelassem casos fabulosos, casos sobre-humanos. Era possível que Teresinha houvesse realizado tão assombrosa façanha?

— Vocês não imaginam – continuou ela – como tinha povo na rua. Parecia procissão, quando levaram os soldados para o xadrez. E a cara do Crapiúna?... Ficou verde, amarelo, encarnado como lama pimenta; botava-me uns olhos ensanguentados que me varavam... Eu, que vi o bicho bem seguro, ferrei também os olhos nele como quem diz – arre diabo!... Quando passou por mim, resmungou: - "Deixa estar sua aquela, que me pagará... Diz à tua pareceira Luzia-Homem, que não hei de ficar toda a vida preso..." Senti um frio no coração, quando o malvado disse isto.

— E agora – perguntou Luzia – vão soltar já Alexandre?

— Sei lá... Disseram-me que comparecesse amanhã na delegacia para a trapalhada de depoimentos e não sei que mais.

— Ah! Teresinha – gritou Luzia, com um abraço veemente, radiante – Você é um anjo, um anjo!

— Que anjo, que nada!... Sabe o que sou? Mulher e bem mulher, de cabelo na venta. Ninguém mais faz, que não pague com língua de palmo. Chegou o meu dia... com dois proveitos num saco: Crapiúna preso e Alexandre limpo de pena e culpa... Foi uma sorte! Viva o glorioso Santo Antônio! Ah!... se eu tivesse foguetes! Xii... tô... tó!... Viva Santo Antônio!... Vivô... Vivô!...

E, lestes, escarnicando do celerado, saciada de vingança, fazendo piruetas que lhe agitavam os seios, contorciam os quadris e enrolavam, em espirais, as saias em torno do corpo esbelto, desnudando as pernas ágeis, toda ela palpitando, toda ela a se mexer em requebros sensuais de dança, com sapateados frenéticos, e vastas chibanças de triunfo, e rindo e cantando, numa alegria louca, a sua figurinha escanzelada de retorta providencial se destacava, evidente, no fundo iluminado pelo rubro disco da luz cheia, a surgir, lentamente, em magnífica ascensão.