Luzia-Homem/XXII

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Para se arrancar à comoção forte daquela cena que o amolecia, e apertava o seu tão chupado organismo, Alexandre deixou o salão das audiências, seguindo-o, de perto, Teresinha, muito zangada pelo ato de generosidade que ele praticara em favor de Gabrina.

— Com aquela carinha de enfinta, - murmurava ela – de alfenim, que com qualquer coisa se derrete, não me engano. É muito mazinha de bofes. Com aquela parte de gostar de você, não se lhe dava de ser causa do muito que penou na cadeia. O amor deu-lhe pra maldade. Era bem-feito que ela fosse gemer e chorar no xadrez para saber se é bom levantar falso testemunho aos outros. Não há nada melhor que a gente ser fingida: faz quanta perversidade há e no fim de contas, basta se derreter em choro e ter um vágado para ser perdoada. Eu, não me importa de dizerem que tenho más entranhas. Quem me fizer paga, tão certo como dois e dois serem quatro. E então a Chica Seridó? Como ficou piedosa e inocente, ela que é a alma danada de tudo... Aquilo tem mais artes e ronhas que diabos nas profundas do inferno... Fosse comigo, ficavam as duas ensinadas para toda a vida.

Alexandre não se justificou. Continuaram a caminhar: ele silencioso, ela resmoneando a censura. Quase ao pé do armazém da Comissão, ele perguntou, inesperadamente:

— E Luzia?

— Foi trabalhar – respondeu Teresinha, amuada.

— Por que não veio com você?

— Porque teve vergonha de se expor diante de tanta gente. Disse-me que estava alcançado o que desejava: a sua liberdade; nada mais tinha que fazer. Não pregou olhos a noite inteira, esperando que amanhecesse o dia de hoje. A tia Zefinha não cessava de agradecer a Deus. Se visse como a pobre alminha estava contente... Nem parecia a enferma que conhecemos, engelhada, encolhida, cortada de dores...

— Coitadinha! E... Luzia? Ainda está zangada comigo?

— Que zangada!... Aquilo foi um repiquete de ciúmes. Quis, à fina força, fingir de coração duro e forte, mas desenganou-se. Uma penca de corações não vale um grão de milho. Deu-lhe a paixão na fraqueza, e aquela criatura, forte como um boi, entrou a fazer coisas de criança: ficou logo meia lesa e capionga; deu-lhe para maginar, olhando para o tempo e querendo sustentar capricho, mesmo depois de haver sabido, pela Quinotinha, do aleive da Gabrina.

— E... depois?

— Depois?... Entrou a repetir que nada tinha feito em seu favor, que a mim, somente a mim, se devia tudo, quando foi ela que me deu o dinheiro para a Rosa Veado rezar o respônsio.

— Que pretende ela fazer agora?

— Diz que espera poder ir, em breve, para as praias, logo que a mãe possa viajar.

— Sempre essa idéia.

— Teimosa é ela. Isso é verdade.

— Sabe, Teresinha? Ainda estou meio encandeado e parece um sonho estar livre daquele inferno. Toda essa gente a andar aqui pela rua, a me olhar espantada, causa-me tonturas. Como que me falta o chão debaixo dos pés.

— Isso passará...

— Tenho, aqui no nariz, o fedor da cadeia, a inhaca dos presos. Que horror! Cem anos que eu viva, nunca esquecerei esses dias de martírio.

Alexandre falava lentamente, falava fatigado, com profunda impressão de mágoa no rosto macilento, que a barba crescida e inculta tornava ainda mais triste. Queixou-se de dores ao lado direito, debaixo da costela mindinha, de falta de ar e de uma tosse seca que o acometia quando respirava, mesmo a curto fólego.

— Aquela cadeia – dizia ele – matou-me. Nunca mais hei de ter saúde.

A Comissão de socorros o recebeu com demonstração de compassivo afeto, lamentando os vexames sofridos pela infame imputação. Foi-lhe pago o ordenado integral: e, como reparação, teve acesso para o posto de administrador dos depósitos de víveres, percebendo, além da ração, sessenta mil-réis em dinheiro, uma riqueza naqueles apertados tempos.

Teresinha comentava o fato, os males que vêm para bem, e, logo, achou muito justo esse procedimento da Comissão; e, todavia, observava que o dinheiro lhe não pagaria as ruínas da saúde, os incômodos e, mais que tudo, a vergonha de ser apontado como ladrão, como um infame que havia roubado o de-comer dos pobres famintos, para saciar vícios abjetos, tudo por causa de suspeitas que ela, mulher ignorante, mal sabendo ler por cima e assinar o nome, repelira desde o primeiro momento, porque o coração lhe dizia que ele não tinha cara de se sujar com o alheio. Admirava como os homens da justiça, que sabiam ler em grandes livros de letras embaraçadas, homens de óculos, que sabem tudo, não tinham logo percebido que o criminoso não era outro senão Crapiúna. Quantos inocentes não estariam pagando culpas alheias por causa da cegueira da justiça! Quantos não ficam livres de pena e culpa, apesar de autores de crimes escandalosos, perpetrados perante Deus e o mundo, à luz do dia, como aquele nefasto Bentinho que matara Berto, como quem mata um cão, e apenas ficou recolhido alguns dias à sala livre, por ser capitão e filho do maioral da terra!

E suspirou entristecida, sucumbida à dolorosa recordação do bárbaro amante, arrastado pelo cavalo desembestado, deixando nos tocos, pedras e cardos, farrapos sangrentos do corpo esfacelado.

Aglomeravam-se retirantes à porta do armazém para verem Alexandre, cujo prestígio de mártir aumentava com as novas atribuições de administrador. Uns, sinceramente, lamentavam o fato; outros o adulavam com fingidas lamúrias, para serem preferidos na distribuição de rações bem medidas, com lavagem, como eles diziam, porque outros empregados de coração duro mediam farinha e feijão sem caculo, rapando a boca do litro, poupando, como usurários, os dinheiros do Governo e o de-comer que a Rainhal mandara dar de esmola aos pobres.

Alexandre procurou fugir à curiosidade da multidão, recolhendo-se ao fundo do armazém, onde ficou, apesar dos insistentes rogos de Teresinha para irem juntos à casa de Luzia, que estaria ansiosa por vê-lo; e, como ele recusasse obstinadamente, ela se despediu, enfadada, dizendo-lhe:

— Vou embora. Já que teima em não me acompanhar, irei sozinha. Direi a Luzia que você está doente e aparecerá amanhã. Não falte, não negue essa consolação àquela pobre criatura que, abaixo de Deus, só pensa em você, seu ingrato. Capricho não se fez só para mulheres.

— Pobre de mim.

— Pobre, não. Bata na boca. Diga rico, bem rico, porque uma prenda igual a ela só encontram os afortunados. Você fala de farto. Os homens todos são assim, cheios de luxos e desdéns quando são queridos. A demora é saberem que a gente gosta deles: começam logo a botar cafangas.

— Diga o que quiser, Teresinha. Está no seu direito. Não me zango com isso, nem exijo nada; basta o muito que tem feito por mim. Mas, não posso acreditar que Luzia me queira, como você diz. Que faria no lugar dela?

— Cada um sabe de si e Deus de todos. Eu faria o que sempre fiz, e por isso apanhei muito na minha ruim cabeça. Hoje, torço as orelhas, que não botam sangue. Ah! quem ama não tem tico de vergonha. É verdade que você, agora, está melhorado de sorte, quase rico...

— Prefiro o trabalho na Ladeira da Meruoca, às vantagens que tenho aqui.

— Deixe-se de luxos. Veja se é ou não como eu digo: este quer se meter no cafundó da serra, a outra só pensa em sumir-se para o lado das praias.

Histórias!... O que vocês querem sei eu... Deixa-me ir que é quase de noite... Até amanhã... Veja bem, seu Alexandre, o que me prometeu!... Até amanhã... Agora vá fazer feio comigo...