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Mattos, Malta ou Matta?/I

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De um cavalheiro cujo nome ocultamos, não só a seu pedido, como porque seria imprudente e talvez mesmo perigoso revelá-lo, recebemos uma importantíssima carta, a que damos publicidade porque o seu assunto se prende intimamente à gravíssima questão — Castro Malta.

É possível, provável mesmo, que das obsequiosas informações desse cavalheiro resultem novos elementos de convicção que auxiliem o desfecho dessa questão, concorrendo para descobrir esse tenebroso mistério, que tanto se empenha a Polícia em ocultar.

Ao nosso amável informante pedimos desculpa de havermos publicado integralmente a sua carta e que nos remeta sem detença quaisquer informações novas, que porventura venha a colher.

Eis a carta:

Sr. Redator dA Semana.

Posto que apenas ligeiros laços de cortesia liguem as nossas relações, tomo a liberdade de dirigir-me a V. S.ª porque entendo ser esse o melhor caminho para chegar aos fins a que desejo chegar.
Trata-se de merecer de V. S.ª um obséquio, cuja realização, que não lhe custara grande sacrifício, trará no entanto para este seu criado vantagens incalculáveis, e mais ainda como que o gozo do cumprimento de um dever.
O meu desejo é que V. S.ª dê na sua esperançosa Folha uma notícia, uma simples notícia, a respeito de certo fato, insignificante na aparência, mas em verdade de um grande alcance social e político. E, para que V. S.ª possa dar tal noticia com toda a segurança, preciso é que eu fale de outros fatos, sobre os quais não daria palavra, se imprevistas circunstâncias não me obrigassem a semelhante cousa.
Em primeiro lugar, Sr. Redator; convém lembrar-lhe que eu sou casado; que, se não tenho filhos é porque morreu o único que me chegou a nascer; e que até hoje tenho desempenhado com toda a retidão e todo o zelo o modesto emprego que conquistei a concurso na Secretaria em que ainda ontem tive o prazer de encontrar V. S.ª pedindo informações a respeito de certa autoridade, envolvida na grande questão que neste momento preocupa a população inteira desta vastíssima cidade — a questão Malta.
Além do que fica dito, é público e notário que não sou homem de escândalos, que não me embriago, nem ando com francesas e que, em todo o princípio do mês, logo ao receber o meu ordenado, pago pontualmente aos meus fornecedores, e guardo o resto do dinheiro para as despesas de bondes e de outras cousas que não admitem crédito.
Vê, pois, V. S.ª que sou homem de bons costumes, que vivo às claras, como se costuma dizer, e que. por conseguinte, se me acho metido numa questão suspeita e de todo o ponto transcendental, é simplesmente porque assim o quiseram outros, sem que eu, dou-lhe a minha palavra de honra, tenha de modo algum contribuído para isso.
Sr. Redator, disse-lhe já que sou casado, mas ainda não acrescentei que, há cousa de ano a esta parte, sou o mais desgraçado dos maridos. Há um ano que me entrou pela primeira vez no cérebro o demônio da desconfiança a respeito das virtudes de minha mulher, e desde então a esta data não consigo um momento de repouso.
Imagine V. S.ª que eu, uma tarde, por sinal que era sábado, entrando em casa um pouco mais cedo do que de costume, encontrei minha mulher escondida debaixo da escada, entre uma barrica vazia e um colchão que servia às vezes para algum amigo que porventura pernoitasse conosco.
Perguntei-lhe que fazia ali; ela, em vez de responder, abriu a chorar; e escondeu o rosto.
Já bastante intrigado com a brincadeira, puxo-a pelo braço e observo o lugar deixado por ela, a ver se descobria a explicação daquele fato estranho.
A princípio nada encontrei, além da barrica vazia e do colchão; mas empurrando este com o pé, dei com um número da Gazeta de Noticias, para o qual não teria atentado, se minha mulher não soltara um grito, justamente na ocasião em que eu o tomara com avidez.
Eu, porém, sem lhe dar tempo a arrancar-me das mãos a folha, ganho o meu quarto de carreira, fecho-me por dentro, dando duas voltas à fechadura.
Era isso mesmo todavia o que desejava e o que conseguira a espertalhona, porque, segundo fui mais tarde informado, ela, em bem não me viu fugir com a Gazeta, tornou logo ao ponto em que a encontrei e, rebuscando com a mão por detrás da barrica, daí sacou um objeto e com ele fugiu para o porão da casa.
Esse objeto, vim depois a descobrir; era um pequeno cofre de madeira preta com embutidos de metal amarelo, contendo o quê ainda não sei.
Minha mulher; em seguida a esse fato, principiou a não me querer encarar de frente e a evitar comigo a menor troca de palavras. Enterrava-se no quarto das seis às seis, e, se eu a outra qualquer hora tentava chamá-la a mim, escondia a cabeça nos travesseiros e punha-se a soluçar; que era uma cousa por demais.
Aborrecido, triste, completamente desarticulado dos meus hábitos, deixava-me então ficar pelos cantos, a cismar; a enfiar cachimbadas, sempre em busca de descobrir a ponta daquele mistério, que já me tirava regularmente o sono e o apetite.
E minha mulher — nada de desembuchar. A princípio lancei mão da violência: ameacei-a com os punhos cerrados, falei no meu revólver de seis tiros; depois — empreguei meios brandos: fiz-me terno, pedi; choraminguei; em seguida — recorri à astúcia: armei ciladas, fiz planos, espiei pelas fechaduras, andei na ponta dos pés, apalpei as trevas e procurei agarrar um gesto dos seus, um sorriso, ou uma dessas palavras indiscretas que às vezes nos escapam na inconsciência do sonho. Mas tudo isso foi inútil; tudo isso foi trabalho perdido. Cresciam as dúvidas e com elas o meu padecer e as minhas tristezas.
Então, meu consolo único era um papagaio que ela trouxera quando nos casamos. Mas, ai!, esse mesmo, desde que a dona se enterrara no quarto, estava quase tão triste como eu e não queria dar à língua, nem à mão de Deus Padre.
Afinal, um dia, quando, de furioso que estava, até me dispunha a torcer-lhe o pescoço, o pobre bicho encrespou as penas da nuca, fechou voluptuosamente os olhos, abriu de leve as asas e disse, como quem suspira.'
— "João Alves!''
Eu voltei— me para ele o mais ligeiro que é possível:
— Hein?! Como?! Fala, fala, minha rosa! Peço-te por amor de Deus que fales! Vamos! Quem passa, meu loiro?...
Mas o maldito abaixou a cabeça, e calou o bico por uma vez.
Entretanto, aquelas duas palavras que lhe escaparam, aquele nome, eram um indicio, uma descoberta, um ponto de partida. Se o papagaio as pronunciara tão bem, era sem dúvida porque de muito se havia familiarizado com elas.
Ora, eu nunca levara a casa nenhum João Alves; pela vizinhança também não me constava que houvesse gente com esse nome... de quem pois o ouvira o papagaio?...
Esta era a minha questão, este era o meu ponto de partida.
Mas, que noites, Sr. Redator! que noites passei eu a pensar naquelas duas palavras!... Quantas e quantas suspeitas não me passaram pela mente. Ah! Só pode compreender o peso de uma dúvida dessa ordem quem como eu a carregou nos ombros por tantos dias.
"João Alves! João Alves!" Estas duas palavrinhas cosiam-me os miolos, como se uma fosse a agulha e a outra o fio!
Uma noite surpreendi-me defronte de minha mulher, a berrar-lhe contra o rosto.
— Tu me hás de dizer quem é o João Alves! ou eu te beberei até a última gota de sangue!
Minha mulher soltou um grito e caiu de costas na cama, sem sentidos. Corri à despensa em busca do vinagre, mas, de atrapalhado que estava, demoro-me um pouco a encontrar o galheteiro e, quando volto ao quarto, já não achei ninguém.
Percorro toda a casa, revisto os móveis, os cantos, o quintal, o porão — nada! A pérfida havia-se escapado pela porta da cozinha.
Saí, fui à venda pedir informações, indago pela vizinhança, e só no dia seguinte descubro que a miserável fugira com um tal, João Alves que há muito a convidava para isso.
Ah! O papagaio tinha razão!''
''Armei-me, passeia noite a fariscar-lhes a pista. Pela manhã, depois de quebrar a cabeça em procurá-los, vim a saber que os infames estavam refugiados a dous passos de minha casa, numa hospedaria que ficava ao canto da rua.
Corri para lá espumando de raiva, meti ombros à porta, entrei; mas os fugitivos já lá não estavam e deles só havia um vestígio importante. Foi um cartão de visita que o amante de minha mulher deixara ficar por esquecimento.
Pois bem, Sr. Redator, nesse cartão estava escrito "Castro Matta". E estes dous novos nomes, ligados aos que pronunciara o papagaio. aproximam-se muito singularmente do nome por extenso daquele célebre homem que hoje os jornais com tanto afinco procuram descobrir. E agora, custe o que custar hei de desencavá-lo; não porque me interessem as questões públicas, mas porque esse João Alves de Castro Matta há de sofrer pelo que me fez.
É isso. Sr. Redator. o que por ora lhe tenho a comunicar e do que, peço, laça uma pequena noticia, escondendo os pontos mais privados desta carta. E. se V. S.ª quiser ligar o seu esforço ao meu, havemos de dizer ao público o que foi feito do Malta ou Matta. porque, segundo as últimas informações que colhi e que amanhã lhe enviarei, cada vez mais se justificam as minhas suspeitas sobre a identidade do grande patife.
Pelo que eu lhe for dizendo, verá V. S.ª que estou a par de tudo e que os mau culpados nesta questão não são os que mereceram as maiores acusações da imprensa.
Consola-me a idéia de que, vingando a minha honra ultrajada, vou igualmente prestar um grande serviço à Justiça e ao Direito.

Rio de Janeiro. 28 de dezembro de 1884.

Sou de V.S.ª
At.º cr.º obr.or