Mattos, Malta ou Matta?/II
Aspeto
- Sr. Redator dA Semana.
- Não sei se lhe agradeça o seu procedimento com a minha carta ou se lho censure; o que afianço é que ele me surpreendeu deveras e, se não me magoou, também não me produziu grandes impressões de gosto.
- Esperava que V. S.ª, atendendo ao meu justo pedido, se limitasse a extrair; de tudo que lhe enviei, uma pequena noticia e, quando vi a minha carta publicada na sua íntegra e, quando tive ocasião de ver a sensação que ela produziu sobre o público desta Capital, confesso-lhe, Sr. Redator, tive sérios receios de haver cometido uma leviandade.
- Porque, cumpre declarar; eu não tenho o hábito de me articular diretamente com as massas populares, e sempre que me vejo alvo de atenções gerais, apodera-se de mim um tal constrangimento e uma tal ansiedade, que chego a ficar doente.
- Entretanto, V. S.ª, teve a prudência de ocultar o meu nome e o de outras pessoas que citei, e isso já é para mim não pequena animação.
- Nem sei qual seria a minha conduta, se V. S.ª, não tomasse tão delicada resolução. E, já que as cousas seguiram esse caminho, estou disposto a não retroceder; e declarar pra frente tudo que me constar a respeito do assunto.
- Como lhe disse na minha primeira correspondência, apenas o que me ficou da investigação da hospedaria foi um cartão de visita onde se lia o nome de Castro Matta.
- Pois bem, Sr. Redator; armado desse documento, saí a tomar informações no quarteirão inteiro e vim a saber por um homem do ganho que este próprio levara para a ponte das Barcas Ferri um baú de folha com as iniciais J.A.C.M.
- Peço-lhe informações sobre o dono ou dona dessa bagagem, e ele me respondeu que a pessoa que lha entregara era um homem alto, magro, de cabelos pretos e barba à inglesa, vestido com certa elegância, de polainas e chapéu alto, mas que não podia afiançar se ele era ou não o verdadeiro dono da bagagem ou simplesmente um encarregado dela, visto que o sujeito, a cada passo que dava, dizia com um gesto de impaciência. — "Que maçada! Que maçada!"
- E o carregador declarou mais que, indo a tomar uma caixa de chapéu de senhora que o sujeito tinha sobre a mala, ele a defendeu com certo interesse e disse que não se incomodasse com a caixa, que ele mesmo a levaria e que, ao metê-la debaixo do braço, acrescentara:
- — Não! desta não me separo por cousa alguma!
- — E ele não te disse como se chamava? perguntei ao homem do ganho.
- — Saiba vossemecê que não senhor; mas quando cheguei à estação, encontrei-o de braço com uma senhora, que lhe dava o tratamento de "Seu Joãozinho".
- Estas duas palavras fizeram-me pulsar o coração com maior força.
- — E essa senhora, que estava com ele — interroguei de novo —, essa senhora que espécie de gente mostrava ser? Qual era o seu tipo? Era baixa, gorda, ou magra e alta?
- — Nem muito baixa, nem muito gorda, assim pelo feitio daquela madama que ali vem.
- E o ganhador apontou com o seu velho chapéu de lebre para uma Francesa que se encaminhava para o nosso lado e que era justamente da estatura de minha mulher.
- — E era morena? — perguntei em crescente sobressalto.
- — Nem por isso, mas era... era moreninha e com umas faces rosadas que faziam gosto. Lembra-me ainda que, numa ocasião em que o sujeito lhe disse alguma cousa ao ouvido, ela soltou uma risada muito gostosa e eu vi então uns dentes mais alvos que esse peito de sua camisa.
- Corri instintivamente os olhos pela minha camisa e lembrei-me da brancura sedutora dos dentes de minha mulher.
- — E como estava vestida? — inquiritei de novo.
- — Homem! Disso não me lembro!...
- — Diabo! — praguejei.
- — Ah! agora me recordo! Estava toda de preto e tinha um chapéu de palha escura que lhe escondia os olhos.
- — Os olhos? E de que cor eram eles?
- — Não lhe posso dizer; patrão, porque o chapéu não deixava...
- ''É a mesma, não tem que ver!" — pensei, lembrando-me de um chapéu que dous meses antes eu havia comprado para minha mulher na Notre Dame.
- E, metendo uma nota de dez tostões na mão do homem, acrescentei:
- — Ora diga-me cá! não reparou se a sujeita tinha algum sestro?
- — Sestro?
- — Sim! Pergunto se ela não tinha o costume de fazer alguma cousa particular com as feições ou com alguma parte do corpo.
- — Parte do corpo?
- — Quer dizer; se ela não tinha algum cacoete.
- — Que diabo vem a ser isso?
- — Mau! Agora é você que me interroga! Pergunto-lhe, homem de Deus, se a sujeita não piscava com os olhos, não mexia com a boca ou não sacudia os ombros.
- — Mexia, patrão, sacudia e piscava.
- — Tudo a um tempo?!
- — A um tempo, como?
- — Bem, já vejo que não arranjamos mais nada. Adeus, obrigado.
- — Ah! É verdade — disse o homem, voltando a ter comigo —, ela, patrão, todas as vezes que falava, lambia os cantos da boca...
- — Lambia os cantos da boca?! Ah!
- Já não podia haver dúvida! Era ela! Era minha mulher! Era Margarida.
- Quando voltei a mim da última revelação do carregador; este já não estava em minha presença, ao passo que a Francesa, que lhe servira de comparação para me dar idéia do tamanho da sujeita, permanecia ao meu lado e observava-me de um modo estranho.
- Eu, porém, não me sentia disposto a prestar-lhe atenção e corri a tomar o bonde das Barcas Ferri.
- Eram cinco e meia, ainda tinha tempo talvez de encontrá-los nas ruas de Niterói. Entrei na estação como um louco, procurando descobrir em todas as pessoas, em todas as cousas um indício que me pudesse elucidar naquela conjuntura.
- Nada! nada!
- Fui para bordo, assentei-me ao canto de um banco no tombadilho, e confesso que nunca achei que as Barcas Fervi caminhavam tão devagar. Sentia ímpetos de atirar-me ao mar; uma vontade dolorosa de chorar estrangulava-me a garganta. Não podia estar quieto, ergui-me, dei algumas voltas pelo tombadilho e afinal desci.
- Imagine, Sr. Redator; qual não foi a minha surpresa quando, na primeira fisionomia que meus olhos descobriram, reconheci a mesma Francesa que servira de comparação ao homem do ganho.
- "Será talvez uma coincidência..." — pensei, e resolvi não mais cuidar disso.
- Mas a Francesa se havia levantado e, vindo ter comigo, disse em meia-língua:
- — Se quiser saber o que foi feito deles, acompanhe-me, quando chegarmos.
- Quis pedir mais algumas explicações, mas a Francesa, como se a cousa não fosse com ela, afastou-se e retomou na barca o lugar que havia abandonado e a leitura de um livro que tinha interrompido.
Sou de V. S.ª
- At.º cr.º e ven.or