Mattos, Malta ou Matta?/III
Aspeto
- Mal a barca abicou na ponte da estação de Niterói; saltei de um pulo, só cuidando seguira misteriosa Francesa que me havia prometido informações sobre o casal fugitivo.
- Mas, qual não foi a minha decepção, quando, volvendo em torno os olhos ávidos, não encontrei a estrela em que baseara as minhas melhores esperanças.
- Ela havia desaparecido, como por feitiço, visto que, apesar das pesquisas que empreguei, não lhe descobri sequer o rastro.
- — "Estaria se divertindo à minha custa? — perguntei aos meus botões, que, naturalmente para me serem agradáveis, não quiseram opinar comigo.
- — Bem! — deliberei'.' — Não pensemos nisto!
- E fui cuidar de obter novas informações. Dirigi-me logo para o buffet próximo à ponte e perguntei a um criado que servia a um canto da sala um grupo de rapazes, se ele tinha visto saltar um sujeito de suíças, polainas, chapéu branco, de braço dado a uma dama vestida de preto, com um chapéu de palha.
- O criado olhou para mim, coçou o queixo e resmungou:
- — Homem! Eu lhe digo... Saltar; saltaram, até mais de um par; o negócio porém é que não reparei se algum deles era esse de que fala o senhor...
- — E uma Francesa que chegou justamente nesta barca? — perguntei. — Uma Francesa de estatura regular, cabelos loiros e vestido de ramagens. Também não saberá dar-me noticias dela?...
- Mal acabei de proferir estas palavras, um dos rapazes do grupo ergueu-se de improviso e, estacando defronte de mim, e ferrando-me um olhar muito atrevido, interrogou-me:
- — Que deseja o senhor dessa Francesa?
- Confesso que não encontrei logo o que responder a semelhante tipo. Ele, porém, acrescentou:
- — Vamos! Estou às suas ordens! Os negócios dessa senhora tratam-se comigo.
- — O senhor é seu marido?
- — Não tenho que lhe dar explicações. Sou da Francesa o que bem entendo ou quero ser! Apenas não admito que nenhum sujeito, seja lá quem for; tenha com ela qualquer negócio particular!
- — Pois então, dê-lhe lembranças! — repliquei eu, voltando-me vivamente e muito disposto a dar às de vila-diogo.
- O tipo não me deixou tempo para isso e cortou-me o caminho, indo postar-se à saída do buffet. Os outros rapazes seus companheiros, que eram em número de quatro, haviam-se erguido já e estavam incorporados ao meu adversário.
- — O senhor não me sairá das unhas enquanto não explicar o que deseja da mulher que procura! E, voltando-se para um dos companheiros:
- — É uma questão a respeito da Jeannite! Sempre ela! Sempre as mesmas maçadas por causa daquela sirigaita!
- Os rapazes, que se haviam levantado por último, olharam-me então de alto a baixo e depois puseram-se todos a observar os pés, e a chuparem os competentes charutos, muito sérios e muito tranqüilos.
- A questão ia estoirar definitivamente por parte do meu provocador; quando este soltou um formidável "Ah!" e então vimos todos assomar à porta do buffet a causadora de todo aquele alvoroço.
- Fez-se um grande silêncio, no meio do qual a Jeannite atravessou a sala, foi ao encontro do meu formidável agressor e, depois de apontar para mim, lhe disse com a voz firme e resoluta:
- — Este senhor não me conhece ainda, encontrei-o na barca e prometi que lhe daria informações a respeito de um casal que fugiu aqui para Niterói.
- — A parte feminina desse casal é minha mulher! disse eu, corando levemente.
- — Já sei — respondeu a Francesa.
- — Seria um casal que saltou na barca das cinco? — interrogou o encarregado dos negócios da Jeannite. — Um casal muito unidinho, cujo homem trazia debaixo do braço uma caixa de chapéu de senhora?
- — É esse justamente! — exclamei com um vislumbre.
- — Cale-se! — volveu a Francesa em voz baixa ao meu ouvido. — Eu me encarrego de tudo, descanse!
- — Pois esse casal meu caro senhor — continuou o da agressão —, esse casal seguiu para os lados de São Gonçalo. É só o que lhe posso dizer a respeito.
- — Obrigado! — respondi; e fiz menção de sair.
- — Olhe! — acrescentou a Francesa — não seja precipitado. Tome o bonde do Barreto e...
- Neste ponto ela abaixou a voz disfarçando e concluiu com esta frase:
- — As oito horas na Rua do Imperador, n.º ***.
- — Para quê?
- — Aí encontrará todas as informações.
- O sujeito que se dizia encarregado de seus negócios, já então apresentando um ar inteiramente oposto ao que tomara no princípio da questão, encaminhou-se humildemente para a recém-chegada e, de chapéu na mão, balbuciou com um sorriso de caixeiro:
- — Eu não tive a menor intenção de contrariar-te, Lelé!
- — Cale-se! — exclamou ela com desprezo, e em seguida piscou para o meu lado o seu olho esquerdo, e saiu do buffet ainda mais senhora de si do que entrara.
- Saí também, mas, para não deixar alguma sombra de suspeita no espírito dos rapazes, tomei direção contrária à da Francesa e cheguei até a sair por uma outra porta.
- O tal encarregado dos negócios dela falara-me em São Gonçalo; tinha eu, pois, de meter-me no bonde de Sant'Ana.
- Quando ia a fazer isso, sou detido por um homem de meia-idade, gordo e de óculos, que me disse, falando-me à orelha:
- — Não vá a São Gonçalo, seria perder o seu tempo; se quiser ouvir um bom conselho, siga os rastros da Francesa que veio com o senhor na barca. Só ela, só a Jeannite lhe poderá dirigir os passos com segurança. Em todo o caso, se V. S.ª não quiser dar ouvidos às minhas palavras, acredite ao menos que não deve tomar o bonde de Sant'Ana e sim o do Barreto, porque este o aproximará mais facilmente daqueles que procura.
- Dizendo isto, o homem recuou dous passos e, escondendo o rosto numa capa rio-grandense que trazia, desapareceu nas sombras de uma casa em construção que nos ficava ao lado.
- Fiquei parado no meio da rua, sem saber que partido tomar. Cada informação das que lograra apanhar; longe de me elucidar o espírito, mais tenebroso mo havia deixado.
- Afinal, entre tudo isso, só a Francesa falara claro e decisivamente.
- Puxei do relógio, consultei as horas, eram sete.
- — Bem! — deliberei. — As oito estarei na Rua do Imperador n.º ***.
- Segui.
- Não gastei muito tempo a chegar ao ponto da entrevista e, a dous passos da casa indicada, o mesmo sujeito gordo de há pouco aproximou-se de mim e, levando o indicador aos lábios, fez-me sinal que o acompanhasse.
- Tive vontade de hesitar; mas, chegado como estava àquele ponto da intriga, deixei-me levar.
- Daí a poucos instantes era eu introduzido numa pequena alcova cor-de-rosa, iluminada por um único bico de gás.
- Mal entrei, senti correr um reposteiro que havia por detrás de uma cama e então vi surgir; como num sonho, a misteriosa Francesa.
- Ela caminhou para mim, sorrindo, e, logo que me teve ao alcance de suas mãos, passou-me os braços em volta do pescoço e exclamou entre beijos:
- — És meu!
- — Perdão! — disse eu. — Perdão! Agora, tenha paciência, mas não me pertenço a mim mesmo, quanto mais a V. Ex.ª. Não tenho um minuto a perder! Preciso encontrar o amante de minha mulher!
- — O Castro Matta? — perguntou a Francesa, sem me largar das unhas.
- — Sim! O Castro Matta!
- — Descansa! — volveu ela. — O amante de tua mulher está seguro e muito bem seguro! Dei já todas as providências para isso...
- — Como assim?
- — Lê.
- E eu li uma portaria da Policia, declarando que o meu homem fora recolhido ao xadrez na véspera, isto é— no dia 16 do mês de novembro.
- — Quê? Pois ele está no xadrez?
- — Juro-te que está, e não quero ser quem sou, se daqui a três dias o detrator de tua honra não estiver recolhido à Casa de Detenção.
- — Em todo o caso, é preciso que eu vá no seu encalço.
- — Não! — exclamou a mulher. — Não sairás daqui, senão amanhã, depois do meio-dia.
- — Ora esta! — gaguejei, atirando-me sobre um divã só me faltava mais isto!
Sou de V.S.ª
- At.º cr.º e vem.or.