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Mattos, Malta ou Matta?/VI

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Sr. Redator.
Como lhe disse à semana passada, não era um sonho o que eu via na capela do Cemitério de São Francisco Xavier.
O corpo havia mexido com a cabeça e repetira pouco depois o movimento como quem se debate na agonia de um pesadelo.
Quis gritar e chamar por alguém, mas não pude, faltou-me a voz, e fiquei chumbado à grade da capela, sem conseguir fazer um movimento.
Entretanto, a noite avultava rapidamente e quase que se não podia distinguir nada para dentro das grades. A lua, que não costuma faltar às cenas desta ordem, já lá estava no céu num transbordamento de luzes prateadas, que melhor faziam destacar as casuarinas e as pedras brancas dos mausoléus.
Um rumor surdo, gemebundo, levantava-se tristemente do chão e de tal forma se casava às sombras da noite, que parecia sair de dentro delas, dir-se-ia que a treva sussurrava derramando-se pelo vale, como uma enorme legião de espectros.
Com o luar não há claro-escuro; e essa divisão rápida da luz e da treva sempre me produziu no espírito os mais imprevistos e pavorosos efeitos.
Não sei por quê, mas eu, que sou um homem de verdadeira coragem, quando estou ao sol, tremo e fujo de tudo debaixo da mefistofélica influência da lua.
E, de mais a mais, num cemitério. — Calcule-se.
Aos meus olhos as campas se transformavam todas em grandes fantasmas saídos das sepulturas, os ciprestes eram frenéticos gigantes que conspiravam, debruçando-se uns sobre os outros, para se falarem em segredo, e logo depois se apartarem horrorizados com o que ouviam.
Imagine-se!
Ah! Nem sei como ainda me podia ter nas pernas! O suor escorria-me por dentro do colarinho; o sangue espolinhava-se-me no coração, a cabeça andava-me à roda, a arder.
E, cousa esquisita, quanto mais me ardia a cabeça, tanto mais frios sentia eu os pés e as mãos.
Um frio incômodo, que parecia penetrar na carne em forma de agulhas em brasa.
E esse frio foi se estendendo pelas pernas e pelos braços, até se apoderar da minha região intestinal Então, como se me apertassem o ventre com um cinturão de aço, comecei a sentir cólicas e vontade de vomitar; faltava-me o ar nos pulmões e o peito parecia querer abrir-se para fora em duas folhas, como uma janela.
Entretanto, o corpo de Castro Matta acabava de erguer-se a meio sobre a mesa de mármore e circunvagava em torno de si os olhos espavoridos e cheios de inconsciência.
Com um supremo esforço fiz um movimento para fugir; ele deu por mim, levantou o braço descarnado e começou a chamar-me silenciosamente.
Depois ergueu-se de todo, lançou fora da mesa as pernas e saltou no chão, arrastando a mortalha que lhe haviam prendido ao pescoço.
E com o solene caminhar das figuras fantásticas de Goya, aproximou-se das grades em que eu estava.
O sangue agitou-se dentro de mim com mais força, o cinturão de aço parecia disposto a cortar-me de meio a meio pelo ventre, e os braços e as pernas principiavam-me a tremer convulsivamente.
Mais dous passos e estaria cara a cara com o maldito ressuscitado, nisto, porém, senti baterem-me de leve no ombro. Volto-me — defronte de meus olhos estava um vulto de homem.
Era alto, magro, de cabelos pretos e barba à inglesa.
— Eu sou Castro Malta! — disse-me ele, batendo no peito com energia.
Mas, nesse instante a porta da capela abriu-se e o outro apareceu terrivelmente embrulhado na sua mortalha.
— Ah! — disse o segundo Castro, recuando de braços abertos, e logo em seguida caiu para trás, sem sentidos.
No entanto, o da mortalha se aproximou de mim e pediu-me que não me assustasse, como o outro, e fizesse o obséquio de dizer se eu era o guarda do cemitério.
— Não senhor — respondi — sou um simples parente de um morto que se enterrou hoje.
— Ah! — exclamou o ressuscitado. — É parente de um colega meu, logo posso contar com o senhor!
E o ladrão dizendo isto nem parecia que tinha morrido na véspera e que por um triz estivera para ser metido dentro da terra.
"Muito forte deve ser o espírito deste sujeito pensei eu, a vê-lo sorrir defronte de mim, como se nada lhe houvesse acontecido de extraordinário.
Não me pude conter e perguntei-lhe se havia ficado impressionado com o que lhe sucedera.
— Não — disse-me ele muito naturalmente. — E até estimei a minha suposta morte. Daqui a pouco lhe direi a razão por quê. Se o senhor está resolvido a dar-me hospitalidade por esta noite, eu lhe contarei a minha história e verá o amigo que, nem só não devo estar triste em ter ressuscitado, como também não deveria ficar se tivesse morrido deveras.
— Bem — respondi — Levá-lo-ei comigo para casa, tenho interesse igualmente em conversar com o senhor.
Interrompemos, porém, a conversa. para cuidar do sujeito que perdera os sentidos. O da mortalha abaixou-se, apalpou-lhe a testa e os pulsos. e exclamou depois.'
— Ora esta!
— Que é? — interroguei.
— Pois você acredita? Este homem não se lembrou de morrer?...
— Morreu?
— Ora! Creio que até já fede! Este já não gustará mais farinha!
E voltando-se de todo para mim:
— Isto é o que se chama fortuna! A minha saída do cemitério, depois de estar inscrito nos livros dos mortos, iria talvez produzir grandes revoluções no outro mundo! Assim deixo alguém no meu lugar!
— Vai deixar esse homem no seu lugar?
— Certamente. e eu seria um asno se não aproveitasse a boa vontade com que o pobre rapaz morreu! Vou trocar o meu lugar com o dele. Eu era defunto e tinha uma mortalha, ele um vivo e tinha roupa, relógio e talvez dinheiro. Trocamos. Ele fica sobre a minha mesa de pedra e eu vou para a mesa do restaurant que o esperava. Já vê que não sou tão caipora, principalmente se atendermos para o fato de que o meu protetor tem a minha estatura e que o seu chapéu me serve.
Dizendo isto, o ressuscitado colocara na cabeça o chapéu do outro, que apanhara do chão e. agora, de cartola e amortalhado como estava, tinha alguma cousa de cômico e de horrível.
A graça é que eu. desde que me pus a confrontá-los, achava-os igualmente parecidos com a fotografia que me dera a Jeannise.
— Bem! tratemos de trocar as fatiotas — acrescentou o ressuscitado, despindo o outro.
E, daí a uma hora, o novo Castro Malta, competentemente amortalhado, ficava estendido sobre a mesa da capela; ao passo que o outro saía do cemitério pelo meu braço e dizia-me em ar de graça. consultando as algibeiras:
— Relógio, corrente de ouro, cinqüenta e tantos mil-réis em dinheiro e livre, livre como as asas. Mas de tudo isso o que eu herdei de melhor daquele santo morto, foi este objeto!
E mostrou-me um cartão que tirara da carteira.
— Um cartão de visita?
— Sim. De hoje em diante já não existo para os meus credores e para os meus inimigos. Morri! Este que aqui vai pelo seu braço, chama-se...
E lendo o cartão:
— João Alves Castro Malta.
E acrescentou, fazendo parar um carro que passava:
— Durante a viagem lhe contarei tudo.

Sou de V.S.ª

At.º cr.º e ven.or