Mattos, Malta ou Matta?/VII
Aspeto
- Sr. Redator:
- Vou tentar reproduzir aqui, com a maior fidelidade que me for possível, o significativo diálogo que se travou entre mim e o extraordinário ressuscitado, depois que deixamos o cemitério e nos metemos dentro do carro.
- — Em primeiro lugar — disse-me ele — vou contar-lhe com toda a franqueza a minha história, sem o que não poderia o senhor capacitar-se de que não sou precisamente um doudo: Nasci na cidade de Campinas, e, segundo me consta, meu pai, a quem não tive o gosto de conhecer; era um sujeito honrado e de bons costumes, o que aliás não lhe impediu de sucumbir a uma indigestão de lagostas, justamente quando minha mãe estava em vésperas de dar-me ao mundo. A morte de meu pobre pai precipitou um pouco este vulgaríssimo fenômeno fisiológico, obrigando minha desgraçada mãe a pagar com a própria existência o meu direito de fazer parte dessa cousa que se chama humanidade e a um lugar neste mesquinho inferno que se chama o mundo. Por conseguinte, apenas com um dia de vida já recebia eu os primeiros coices da fortuna, achando-me completamente desamparado e sem ter ao menos uma teta que me garantisse a subsistência. Foi então que um pobre cocheiro se compadeceu de mim e carregou-me para casa. O cocheiro era casado e sua mulher entregava-se ao modesto e honrado mister de criar bodes e cabras. Foi uma cabra a única ama-de-leite que eu conheci, e tal amor tomei desde então a esse benfazejo animal, que ainda hoje, quando por acaso o encontro na rua ou em qualquer parte, a vontade que tenho é de ferrar-lhe um abraço.
- — Nada mais justo... — considerei eu.
- — Mas — continuou o narrador — a desdita não quis que o meu protetor levasse ao cabo a obra de caridade que me estava reservada e fê-lo sucumbir; pouco depois da mulher e quando eu ainda não tinha mais do que cinco anos de idade.
- "Passei então para as mãos de um tipo, o melhor dos que tenho conhecido no mundo, e que foi ao mesmo tempo o meu salvador e a minha perdição."
- — A sua perdição?
- "— Sim. Eu me explico.' Pedro Melindroso, o homem que substituiu ao meu lado o cocheiro, era um filósofo, cujas teorias abstratas e metafísicas entraram muito profundamente pelo vasto terreno da loucura.
- ''Foi justamente por isso que ele me recolheu. Um dia viu-me chorando abraçado à cabra que me amamentara e escondeu-se para me espreitar.
- "Eu, que me supunha a sós com a minha doce companheira de infância, exclamava deveras comovido à orelha do bicho: Bebé! Bebé! (era este o tratamento que eu lhe dava) minha querida Bebé, não imaginas quanto te quero bem e quanto gosto mais de ti do que de todo o mundo!
- "O filósofo, saindo do seu esconderijo, veio ter comigo e perguntou-me se era verdade o que ouvira de minha boca.
- "Eu, meio perturbado com a presença dele, respondi que sim e que não trocaria a minha querida Bebé por ninguém.
- "— Quem é seu pai? perguntou-me ele depois.
- "— Não cheguei a conhecê-lo — respondi.
- "— E sua mãe?
- "— Morreu quando me pôs no mundo.
- "— E com quem você vive agora?
- "— Com ninguém.
- "— Você não tem casa?
- "— Não.
- "— Onde dorme?
- "— Quase sempre no curral do Zé Coxo.
- "— Onde come?
- "— Onde encontro o que comer. E quando não encontro, peço.
- "— E quando não lhe dão?
- "— Roubo.
- "— E não se vexa de roubar?
- "— Não, porque não faço por maldade semelhante cousa, mas sim por não haver outro remédio.
- "— E por que você não se mata?
- "— Porque não quero.
- ''— E que espera você da vida?
- "— Nada, não sei.
- "— Quer vir comigo. para minha casa?
- "— Vou, se me deixar levar Bebé.
- "— Pois então acompanhe-me com ela.
- "Desde esse dia principiei a ter de novo uma cama, um talher certo à mesa do filósofo e roupa lavada e engomada.
- "— Você quer ser uma besta ou um homem instruído? — perguntou-me o Melindroso, meses depois de me haver tomado à sua conta. — Mas, desde já o previno de uma cousa acrescentou ele. Eu não admito meio-termo em questões de ilustração. Você no caso que não queira ser uma besta, há de ser um sábio. Escolha.
- "— Quero ser um sábio.
- "— Mas, veja bem, rapaz. Para ser um sábio é necessário que você tenha talento, paciência e coragem. Consulte o seu espírito e veja se pode contar com essas três qualidades.
- "— Posso, sim senhor.
- "— Tu tens talento? — volveu o filósofo, passando a tratar-me por tu, o que nele significava bom humor.
- "— Tenho.
- "— Pois então responde ao que te vou perguntar.
- "— Pronto.
- "— Que farias tu a um cão que te mordesse?
- "— Dava-lhe com uma pedra.
- "— E a um que te lambesse os pés?
- "— Nada.
- "— Bem. Vejam os agora se tens coragem. Dá-me um soco.
- "Eu não esperei segunda ordem e ferrei-lhe um murro na barriga
- "— Bom — disse o filósofo. Estou satisfeito e, quanto às provas de paciência reservo-as para mais tarde. Amanhã principiarás a estudar comigo. E daqui a alguns anos saberás tudo que é dado alcançar ao conhecimento humano.
- "No dia seguinte o meu protetor começou a ensinar-me simultaneamente as seguintes matérias: Gramática Portuguesa, Francesa, Latina e Grega; Aritmética, Geografia Física e Astronômica, Música, Desenho e Ginástica.
- "É inútil dizer que de tudo isso só me ficara na cabeça uma confusão diabólica, o que aliás não desanimara o meu singularíssimo professor; nem o fazia retirar de mim a progressiva confiança que eu lhe inspirava.
- "E todos os dias apresentava-me um novo livro e dizia-me:
- "— Lê isto! É bastante que leias; não procures compreender; procura decorar. A cabeça é como a terra, não tem necessidade de conhecer a semente que recebe no seio; a natureza se encarregará de cumprir com os seus deveres. A tua inteligência é a natureza e os livros que te dou são a semente. Decora-os e mais tarde a planta brotará, sem que tu próprio descubras a razão porque.
- "Eu obedecia. Dos meus seis anos até aos vinte e um, li nada menos do que dez mil volumes de diversos assuntos.
- "Meu professor nada me ensinava a fundo. nem consentia que eu me inclinasse para nenhuma especialidade.
- "— Não — dizia-me ele —, um verdadeiro sábio não deve ter especialidade. Tu deves saber um pouco de tudo e quase nada de todas as cousas. É preciso que entendas tanto de Teologia como de Botânica, como de Arquitetura, como da Arte Culinária, como de Economia Política, como de Literatura e do resto. Quero que a tua inteligência se derrame em torno de ti; pelo universo e não que ela se encanalize pelo tubo de uma especialidade.
- "Prefiro a extensão à profundeza, prefiro o estudo da humanidade ao estudo do homem; prefiro o estudo do homem ao estudo de um órgão ou de um osso; prefiro o estudo de um osso ao estudo particular de uma molécula, e prefiro o estudo de uma molécula ao de um átomo ou à especialidade de não estudar cousa nenhuma.
- "— Vês? — prosseguiu ele — é a isto que nos conduz a especialidade — a zero. A especialidade é o meio de ir apertando as cousas até reduzi-las a nada. Ser especialista e não ser cousa alguma vem a dar na mesma, porque nada adianta conhecer um elo de uma cadeia, quando a gente não conhece a cadeia inteira. Nada adianta conhecer a folha de uma árvore, quando não se conhece a árvore. Depois que saibas tudo sinteticamente, dar-te-ei licença para os teus estudos concretos; antes não, não admito que te demores defronte de nenhuma ciência particular.
- "Este sistema educativo do meu singular protetor; que nesse tempo eu supunha um sábio e que depois verifiquei não passar de um louco, esse sistema fez com que eu aos vinte e dous anos, quando me achei de novo abandonado no mundo, não encontrasse meios de ganhara vida.
- ''Entendia de tudo e nada sabia ao certo. Tentei todas as profissões. experimentei-me em todas as carreiras— nada. Sabia Medicina e não podia curar; sabia Direito e não podia advogar; Engenharia e não era engenheiro; Pintura e não era pintor; Arquitetura e não era construtor; enfim entendia de tudo e não era nada.
- "Então fiz-me boêmio e filósofo; principiei a aceitar a vida como esta se apresentasse. sem me preocupar com o dia seguinte."
- — Foi nessas condições acrescentou ele — que conheci uma velhusca, viúva de um farmacêutico, chamada Leonarda.
- — Aquela que estava presa? — perguntei.
- — Justamente.
- "Minha sogra" — disse eu comigo; e dispus-me a continuar a ouvir o ressuscitado. cujas revelações foram-se-me tornando cada vez mais interessantes, como verá V. S.ª pela outra carta que lhe hei de mandar para a futurA Semana.
Sou de V.S.ª
- At.º cr.º e ven.or