Mattos, Malta ou Matta?/XII
— Ué, ué, catu! — gritei ao homem das barbas loiras.
Ele grogolejou imediatamente alguma cousa, que tanto podia ser a frase inglesa apontada pela carta do Malta, como podia ser um simples espirro.
Em seguida virou-me as costas e pôs-se a andar para o interior da casa.
Acompanhei-o.
Acompanhei-o, não sem o meu bocadinho de sobressalto, porque a cara do tal sujeito não era das que mais inspiram confiança.
Antes pelo contrário, na impassibilidade córnea do seu rosto havia alguma cousa de funambulesco e uma expressão dura de velha ironia cozida em genebra e calda de tabaco.
"Quem diabo seria aquele homem?" — ia eu a pensar. — "Quem diabo seria aquele silencioso monstro de seis pés de altura, que me surgia defronte dos olhos, como se eu estivesse num sonho?..."
E as mais estranhas considerações principiaram a dançar em volta de meu cérebro.
Afigurava-se-me que o sujeito era nada menos do que um gato, encantado, vivendo dos ratos que apanhasse naqueles quartos desertos, e, à noite, miando a sua tristeza pelos telhados da vizinhança.
Sim, que ele tinha olhos de gato. Bem o notei ao fitá-los.
Olhos verdes, redondos, com a pupila muito sensível e transformável à mais subtil alteração da luz.
À proporção que eu o contemplava pelas costas, mais me ia penetrando de tão extravagante convicção. Afinal já não era um gato o que eu supunha ver, mas sim um tigre, um verdadeiro tigre disfarçado em homem.
Tanto assim que, na ocasião em que ele se voltou para me dizer: "É aqui", recuei dous passos e estive a perder os sentidos.
Então o monstro pôs-se a rir.
— Pois ele ri? — interroguei, mais pasmado do que se o visse trepar de gatinhas pela parede. — Ele ri? O monstro!...
Este, como se adivinhasse o meu espanto, adiantou-se para mim e ferrou-me os seus dous olhos de onça.
— Ah! — gemi, sentindo faltarem-me as pernas. — Estou aqui, estou nas garras do bicho!
Mas o meu estado de ansiedade durou apenas alguns segundos, porque o sujeito; estendendo uma das mãos, segredou-me lamuriosamente:
— Deixe ver uns níqueis!
— Pois não! — respondi, correndo os dedos ao bolso. — Dou-lhe até cousa melhor. Mas, antes disso, preciso que o senhor me forneça algumas explicações.
— Explicações de quê?
— Em primeiro lugar, diga-me: onde estou eu?
— Aqui.
— Isso já sei, mas pergunto que casa é esta.
— É uma hospedaria.
— Hein?
— Hospedaria, sim senhor.
— E sem hóspedes?
— Os hóspedes dormem fora.
— E passam o dia aqui?
— Também não senhor.
— Ah! Compreendo... Vêm só para comer... É casa de pasto.
— Não! não há comida.
— Pior!
— Pois o senhor não compreende?...
— Não; e peço-lhe que me dê a explicação.
O tipo olhou duas ou três vezes em torno de si e, chegando a boca ao meu ouvido, soprou a seguinte frase:
— Isto é uma casa de jogo...
— Ah! Já devia ter adivinhado... E como se chama esta espelunca?...
— Hospedaria do Gato.
— Do Gato, hem? Bem me adivinhava o coração... E a que horas principia a jogatina?
— À meia-noite em ponto.
— E todos os jogadores dizem ao entrar a mesma frase que eu disse?
— Alguns; outros miam apenas. São os fregueses antigos.
— Bom! — respondi eu, entregando-lhe uma nota de dous mil-réis. — Aí tem pelo que já falou, e ganhará outro tanto se me der as informações de que ainda preciso.
— Vamos lá, mas espero que o senhor não nos comprometa. Bem sabe que estas casas...
— Descanse, as informações de que preciso só aproveitam a mim próprio; trata-se de interesses particulares.
— Então, estou às suas ordens.
— Por que razão me levou o senhor para aquela porta?
— Porque ali é a entrada para as salas de jogo.
— E onde está uma mulher que há dias foi confiada à sua guarda?
— Qual delas?
— Pois quê! O senhor tem muitas aqui?
— Tenho dez.
— Dez mulheres! Virgem Santíssima!
— E o senhor não poderá falar a nenhuma delas sem dar primeiro o sinal competente...
— O sinal?
— Sim, nós aqui chamamos sinal às palavras convencionadas entre duas ou mais pessoas para se encontrarem cá dentro em lugar seguro.
— Mas se eu lhe dissesse como é pouco mais ou menos a que eu procuro, o senhor não poderia?...
— Impossível! Nem mesmo se eu quisesse... não as conheço... Elas chegam em geral cobertas com um grande véu, e às vezes trazem máscara...
— E nunca dão o nome?
— Nunca.
— E os homens que as acompanham?
— Esses, esses têm todos uma alcunha, que só pode ser compreendida por mim, ou por meu patrão ou por algum velho freqüentador da casa.
— Diga algumas dessas alcunhas.
— Para quê? Isso não lhe serviria de nada. Imagine os nomes mais vulgares e os títulos mais comuns, junte-os e terá uma lista completa dos cinco mil homens que freqüentam esta casa.
— Cinco mil?
— Quando menos.
— E todos eles aparecem juntos?
— Não. São até bem poucos os fregueses de toda a noite. Muitos apresentam-se uma vez por semana; outros, duas; outros, três; outros vêm por fruta. As vezes a casa se enche; outras não. Depende muito do dia.
— E quais são os dias em que há mais gente?
— Nas vésperas de festa principalmente. E, quando não há festa, nos sábados e domingos.
— Paga-se entrada?
— Não, paga-se apenas o barato.
Nisto, fomos interrompidos por uma campainha elétrica.
— É uma das tais sujeitas que me está chamando... — explicou o homem. — Com sua licença...
— Vá, mas volte.
— Decerto. Venho já.
"Muito bem!..." — disse eu comigo, assim que me vi sozinho. — "Aqui está, onde veio parar minha mulher, se não mente aquela maldita carta."
Instintivamente levei a mão ao bolso e saquei a denunciadora folha de papel que me conduzira até ali.
A tal frase misteriosa, de que me falara o tipo de barbas loiras, devia estar na parte da carta corroída pelo ácido.
— "E não poder eu adivinhar o que está escrito debaixo desta mancha amarela!..." — pensei. — "Daria uma perna ao diabo para poder saber o que aqui está!...
Cheguei-me mais para junto de uma janela que havia a quatro passos e, levando o papel à altura dos olhos, soltei um grito de prazer.
E que, pondo-se a carta contra a luz, podia-se distinguir o que estava escrito debaixo da mancha do ácido.
Foi com grande dificuldade que li o seguinte no meio de outras cousas:
"Quando o homem das barbas loiras te perguntar a quem desejas falar, responde-lhe unicamente..."
Nesta ocasião, porém, o maldito cara de gato bateu-me uma palmada nas costas, e eu, com o susto que tive, deixei cair a carta pela janela.
— Maldição! — exclamei.
E, debruçando-me sobre o peitoril, olhei para baixo.
A janela dava para um cortiço e a preciosa carta caíra dentro de uma tina cheia d'água.