Mattos, Malta ou Matta?/XI
Eis a carta:
- João Alves. — Acabo de obter as informações que te prometi no momento em que te recolheram à Casa de Correção, em companhia da tal Margarida. Essa mulher fatal, por quem te apaixonaste e que ainda te dará muitas ocasiões de desgosto.
- Logo que foste seguro pela Polícia, corri à casa da Jeannite e vim a saber que não era esta a promotora da tua prisão, como supunhas. mas sim o Dr. Campello da Fonseca, autoridade que conheces muito melhor do que eu.
- Esse procedimento do Dr. Campello é sem dúvida conseqüência do ciúme. O homem está cada vez mais apaixonado pela Jeannite e, quando descobriu as tuas relações com ela, não trepidou, para se vingar; de prevalecer-se da sua posição de autoridade policial.
- É triste, mas é assim.
- Por outro lado, a Jeannite, que estava a ferro e fogo contigo por causa da Margarida, tratou de atiçar as cóleras do Campello e, com tanto afinco trabalhou, que foste afinal dar com os ossos na Casa de Correção.
- Em todo caso não desanimei e, auxiliado pelo nosso amigo comum, o Tobias, que bem sabes é empregado na polícia, espero provar que o Castro Malta, de que se trata, não és tu, e sim um vagabundo que mora ultimamente com a mãe de Margarida.
- Este plano não tem nada de mau, porque, graças as circunstâncias auspiciosas que o cercam, ele promete um resultado magnífico.
- O vagabundo chama-se João A. Castro Matta, nome que se confunde com o teu e a mulher que vive em companhia dele tem o mesmo nome da filha e dizem que se parece com ela.
- Ora, nestas condições, é muito fácil obrigar os teus perseguidores a um formidável engano; tanto mais se atendermos a que a Jeannite e o Campello, aproveitando a tua prisão, acham-se refugiados em Paquetá. Ele para escapar das vistas da sociedade e principalmente das vistas da própria família; ela para se esquecer de ti, que afinal és o único homem verdadeiramente amado por semelhante demônio.
- Demônio, sim, que outro nome não merece aquela mulher, demônio, porque a maldita jura e afiança que te há de fazer todo o mal possível. Demônio, porque a sua cólera e o seu despeito não se saciam com o simples fato da tua prisão e querem a tua morte.
- Tu, porém, não hás de morrer enquanto eu existir no mundo. Sou teu amigo, prometo defender-te e será mais fácil reduzirem-me a postas do que levarem a efeito os seus diabólico projetos.
- Logo que te soltem, o que espero sucederá amanhã ou depois, corre à Rua da Misericórdia n.º ***, sobe ao segundo andar dessa casa, bate três vezes na porta que hás de encontrar no tope da escada e, quando te aparecer um sujeito calvo, de barbas loiras, dize-lhe apenas.' "Ué, ué, catu." Esse sujeito te responderá.' "To be at the threshold of the door." E levar-te-á imediatamente a um quarto, onde poderás esconder a tua amante e onde encontrarás tudo de que precisares durante um mês, sem sair de casa.
- Se não nos virmos antes de te encerrares aí e, se porventura der-te na veneta sair à rua, não tenhas o menor escrúpulo em confiar Margarida ao sujeito das barbas loiras, e, quando voltares a casa, repete a frase que te ensinei para a primeira vez.
Aqui terminava a carta, isto é: até aqui chegava o que dela se podia ler, porque o resto tinha sido intencionalmente obliterado com qualquer substância corrosiva.
Quando terminei a leitura, volvi os olhos para o quarto: João Alberto continuava a dormir a sono solto. Consultei o relógio, eram quatro horas da tarde, guardei no bolso alguns dos objetos encontrados nas algibeiras do Malta, outros escondi nas gavetas da minha secretária, pus o chapéu na cabeça e saí, deixando a porta cuidadosamente fechada por fora.
Na rua principiei a notar que me doía o estômago; era falta de alimentação; desde a véspera que eu nada havia comido.
Entrei num restaurante, pedi um jantar e deliberei metodizar os meus raciocínios, enquanto mo servissem.
Achava-me ainda entre a sopa e o segundo prato, quando ouvi por detrás de mim a voz de minha sogra, que conversava com alguém.
Ela não dera comigo e, graças a um aparador que havia entre as nossas mesas, podia eu escutá-la à vontade, sem ser descoberto.
— Pois é como lhe digo — rosnava minha sogra. — Pois é como lhe digo. Meu compadre Quintino afiançou-me que isto não ficará no pé em que se acha! Ele já anda tratando da questão e, ou eu muito me engano ou a cousa dará pano para mangas! Pois onde já se viu semelhante embrulhada? Agora, só o que eu desejo é ver minha filha para lhe perguntar o que foi feito do homem com quem ela fugiu do lorpa do marido, porque, segundo me consta, esse homem também desapareceu, assim sem mais nem menos!
— Também desapareceu?
— Pois não! Desapareceu no mesmo dia em que foi solto.
— E ninguém dá notícias dele?
— Ninguém. Uns entendem que ele fugiu, outros que foi assassinado por meu genro; eu, porém, não aceito nenhuma dessas explicações; a primeira porque João Alves não fugiria sem me participar; e a segunda porque conheço o gênio do marido de minha filha e sei que ele é incapaz de matar quem quer que seja.
— A senhora se dava com ele?
— Com quem? com o João Alves?
— Sim.
— Dava-me. Conheço-o da casa da Jeannite, de quem fui engomadeira durante dous anos.
— Essa Jeannite não é aquela do Dr. Campello?
— É.
— E que foi feito dela?
— Sei cá! Dizem que está ainda metida com o homem em Paquetá.
Nisto o diálogo foi interrompido por um terceiro personagem, e minha sogra passou a boquejar sobre novos assuntos. Eu, que já tinha completado o jantar, sai do hotel e tratei de seguir a indicação da carta.
Tomei para a Rua da Misericórdia e, durante toda a viagem, ia repetindo mentalmente a frase simbólica:
Ué, ué, catu!"
Quanto mais me aproximava do misterioso ponto indicado pelo singular protetor de Castro Malta, mais acelerado me batia o coração.
Que me esperaria ainda? Que terríveis surpresas me aguardariam naquela casa, a cuja porta tinha eu de bater três pancadas, como se batesse à porta de um templo maçônico?
Fiz-me forte e resolvi submeter-me ao que desse e viesse.
Afinal cheguei ao ponto.
Era um sobrado alto, já velho, de dous andares.
Atravessei a porta da rua, subi o primeiro lance de escadas, olhando para todos os lados. Não encontrei sinal de vida; aquilo parecia uma casa habitada por espectros; um silêncio de igreja deserta enchia os corredores; meus passos ecoavam ali, como se eu caminhasse dentro de uma catacumba e à proporção que me adiantava e subia, mais e mais avultavam as sombras e o silêncio.
Era quase noite quando cheguei finalmente à porta indicada pelo misterioso confidente de Malta.
Bati a primeira e a segunda vez; à terceira abriu-se a porta e vi defronte de mim um homem enorme, todo calvo e de longas barbas ruivas.
"É agora!" — pensei num arrepio.
E levei instintivamente a mão ao peito.