Memórias de um pobre diabo/Terceira Parte - Capítulo 6

Wikisource, a biblioteca livre

Eram oito horas e meia da noite, subi e desci a rua do Ouvidor.

Nenhum ignotus Deus! nenhuma mulher com cara de entender a epistola!

Mas eu confiava na inspiração!

As transeuntes levavam todas a reboque um marido ou cousa com semelhança disso.

Eram nove e meia. Ainda nada.

Mas o frade não me sahia da mente!

—Dar-se-ha o caso, reflecti, que hoje seja a noite tão sómente dos casados?

Entendamo-nos. Queria dizer, a noite de sómente passeiarem os casados; nós sabemos que todas as noites são delles, quand-même...

Puz-me a olhar através dos vidros os livros expostos á venda na casa Garnier.

D'ahi a pouco, chega e pára a outra vidraça uma mulher ... Só digo eu, não contando o cãosinho felpudo, que a-seguia.

Era um animalsinho com ar inoffensivo e prasenteiro e cara de quem não aceitaria, se lhe mandassem, um cartel. Começa a mão do frade!

Olhou... olhou... (ella e não o cão), e entrou na livraria. Ouvi-a dizer em francez de Racine:

Les Femmes, par Alphonse Karr?

—É justamente a mulher, que eu sonhava, disse a mim mesmo; mulher que lêsse o autor de La pêche.... en eau douce... et en eau salée.... Abeirei-me á porta.

Deram-lhe o livro; folheou-o, pagou-o sem questionar o preço, deu boa-noite e sahio.

Fóra da loja, tomei-lhe a frente, comprimentei-a com acatamento, rogando-lhe aceitasse a carta.

—Quem é o senhor? e donde vem essa carta? perguntou meio desdenhosa.

—E' tudo um mysterio, respondi. Lendo a carta saberá.

—Ah! cheira a mysterio? pois sim, dê-m'a, eu gosto dos mysterios.

Tomou-a e partio com ar senhoril. E viva o frade!

Ao desapparecer na turbamulta, aproximou-se-me um permanente pedindo-me o charuto para acender um cigarro.

—Camarada, lhe disse, eu não inventei a polvora, porque nasci depois della inventada.

Elle concordou, rosnando:

—Polvora! polvora! que diabo é polvora?