Memorias de um Negro/15
CAPITULO XV
O EXITO NA ARTE ORATORIA
Agora dou a palavra ao sr. John Creelman. Esse correspondente militar bastante conhecido assistiu á sessão e mandou ao New York World uma noticia que, melhor que as minhas palavras, dirá como foi recebido o discurso.
“Atlanta, 18 de Setembro.
Emquanto o presidente Cleveland esperava em Gray Gables o momento de lançar a faisca electrica que poria em movimento as machinas da Exposição de Atlanta, um Moysés negro se levantava perante um auditorio de brancos e fazia um discurso que ficará na historia do Sul. Ao mesmo tempo tropas negras marchavam em cortejo com as milicias da Georgia e da Luisiana. Desde o immortal discurso de Henry Grady na Sociedade da Nova Inglaterra, em Nova York, nada se fez que melhor puzesse em evidencia o espirito que hoje anima o Sul.
Quando o professor Booker T. Washington, director duma escola profissional negra Tuskegee, no Alabama, se levantou para falar, meio cego pelo sol, que lhe punha no rosto um brilho de prophecia, Clark Howell, successor de Henry Grady. me disse:
— O discurso deste homem vai ser o começo duma revolução moral nos Estados Unidos.
Pela primeira vez um negro se manifestou no Sul, em momento de alguma importancia, na presença de brancos dos dois sexos. E electrizou o publico: um enorme clamor, um ruido de tormenta abafou as suas ultimas palavras.
Quando a sra. Thompson se sentou, todos os olhos se pregaram num grande negro côr de bronze que occupava lugar na primeira fila do palco. Era o professor Booker T. Washington, director da escola normal e profissional de Tuskegee, de agora em diante uma personagem notavel entre os da sua raça. A orchestra de Gilmore tocou a aria da Star-Spangled Banner, e todos applaudiram. Em seguida veio a aria de Dixie, e houve gritos freneticos. Com Yankee Doodle o enthusiasmo diminuiu.
Toda a gente se preoccupava com o orador negro. Extranho acontecimento: um negro ia falar em nome do seu povo, sem ser interrompido. O professor Booker Washington levantou-se, deu uns passos, tentou defender-se do sol, que entrava pelas janellas e lhe batia no rosto. Emquanto uma grande acclamação o acolhia, procurou lugar commodo no palco. Depois, resolutamente, affrontou a luz e, sem bater as palpebras, começou a falar.
Era uma figura imponente. Grande, magro, conservava-se direito como um chefe selvagem. Cabeça erguida, fronte altiva, nariz recto, queixo forte, boca firme e voluntariosa, dentes brancos e olhos vivos, era realmente um typo soberbo. O pescoço bronzeado aprumava-se, um braço musculoso movia-se, a mão direita segurava fortemente um lapis. Os grandes pés se firmavam solidamente, os calcanhares juntos e os dedos para fóra. A voz clara e sonora arrastava-se nas passagens que era necessario sublinhar. Em menos de dez minutos a multidão agitou-se num enthusiasmo delirante, os chapéos voaram. Senhoras da Georgia applaudiam ruidosamente.
E quando, erguendo a mão, os dedos separados, falou aos brancos do Sul: “Podemos, nas relações sociaes, estar afastados como os dedos da mão e nos juntarmos não obstante para o progresso geral”, sua voz poderosa quebrou-se como uma vaga contra os muros da sala e acclamações furiosas arrebataram o publico. Nesse momento parecia surgir a imagem de Henry Grady envolto numa nuvem de fumo, no banquete de Delmonico, a exclamar: “Sou um Cavalleiro entre Cabeças-redondas”.
Ouvi grandes oradores em muitos paizes, mas o proprio Gladstone não venceria aquelle negro anguloso que ali se erguia illuminado por um nimbo de sol, diante dos que outr’ora haviam pegado em armas para conservar a sua raça na escravidão. Os clamores augmentavam, e o rosto do homem permanecia impassivel.
Um grande negro retinto, esfarrapado, encoIhido num canto, pregava no orador um olhar ardente e tremia, até que a salva final de applausos lhe arrancou uma torrente de lagrimas. Muitos outros choravam tambem, provavelmente sem saber porque.
Findo o discurso, o governador Bullock atravessou rapido o palco e apoderou-se da mão do orador. Uma segunda ovação rebentou, e os dois homens ficaram juntos alguns instantes, de mãos dadas.”
Depois do discurso de Atlanta, acceitei alguns convites para falar em publico, sobretudo quando me apparecia ensejo de visitar regiões onde minha palavra podia ser util á raça negra. Referi-me largamente ás necessidades do meu povo e aos trabalhos de Tuskegee. Como não sou conferencista profissional, puz de lado a idéa de ganho.
Sempre me espantou, desde que falo em publico, notar que muitas pessoas abandonam os seus negocios por minha causa. Vendo a multidão invadir uma sala de conferencias para escutar-me, sinto-me confuso, lamento que ella se disponha a perder uma hora. Convidaram-me, ha alguns annos, para falar numa sociedade literaria de Madison, no Wisconsin. No meio duma tempestade de neve que durou muitas horas, dirigi-me ao local da reunião, só por descargo de consciencia, certo de que lá não estava ninguem. Pois achei a sala repleta, o que me causou verdadeiro assombro.
Já me perguntaram se me commovo ao fazer um discurso. Como arengo com frequencia, julgam que não estou sujeito a perturbações. Confesso que tenho momentos horriveis, e algumas vezes a excitação é tão forte que prometto a mim mesmo não voltar á tribuna. E não é só antes de falar que essa angustia me atormenta: quando me calo, vem-me de repente uma enorme tristeza por haver esquecido coisas essenciaes que tencionava dizer.
Existem, porém, compensações. De ordinario ao cabo de alguns minutos livro-me dessa agitação e experimento um grande prazer, convenço-me de que influenciei o auditorio, estabeleci uma corrente de sympathia com o publico. Não ha satisfação igual á do orador que domina os seus ouvintes. Um fio parece ligal-os, um fio resistente, quasi visivel. Se entre mil homens estiver um que tenha opiniões contrarias ás minhas ou me ouça com frieza, sinto-lhe promptamente a hostilidade. Percebendo-o, dirijo-me exclusivamente a elle, e não ha nada melhor que ver o gelo derreter-se. Conto-lhe ás vezes uma historia, se bem que não conte anecdotas pelo prazer de contal-as. Essa parolagem é prejudicial e não illude ninguem. Não devemos falar se não temos qualquer coisa para dizer. Se tivermos, podemos mandar ao diabo a rhetorica, os preceitos de elocução. Ha pausas, sem duvida, maneira de respirar, tom de voz, mas nada disso substitue a alma num discurso. Nas minhas licções em Tuskegee gosto de esquecer as regras de syntaxe ingleza e de rhetorica e acho bom que os alumnos tambem as esqueçam.
O que mais me transtorna quando falo é ver alguem levantar-se. Tento evitar isso tornando o discurso interessante, accumulando factos, de modo que ninguem tenha o desejo de retirar-se. Convenci-me de que devemos citar factos, em vez de nos determos em generalidades e em coisas de moral. Dêem aos homens, sob fórma attrahente, muitos factos: elles tirarão as conclusões necessarias.
Os ouvintes que mais me agradam são os homens de negocio, intelligentes e vivos, como os de Boston, Nova York, Chicago e Buffalo. Nestes ultimos annos falei muito a esses commerciantes das cidades grandes. A hora conveniente de nos dirigir-mos a elles é o fim dum bom jantar, embora não haja tortura peor que tomarmos parte numa refeição de quatorze pratos, esperando o momento de fazer um discurso e receando fiasco.
Sempre que me sento a essas mesas, lembro-me do meu tempo de criança, da casa de madeira onde vivi, pequeno escravo, e parece-me voltar a ella, sentir a delicia de provar uma vez por semana o melado que nos vinha da casa grande. A nossa comida habitual era pão de milho e carne de porco, mas aos domingos minha mãe tinha o direito de trazer da casa grande um pouco de melado para nós. Eu desejava que todos os dias fossem domingos, ia buscar o meu prato de folha, extendia-o para receber a gulodice promettida e fechava os olhos, esperando que, ao abril-os, me appareceria uma quantidade grande. De posse daquella preciosidade, espalhava-a até cobrir a superficie do prato, na ingenua illusão de que ella crescia. A impressão deixada por essas festas dominicaes é forte, e ainda hoje me convenceriam difficilmente de que o melado que se espalha num prato não vale mais que o que se junta num canto, se podemos falar em canto, referindo-nos a um prato. Davam-me commummente duas colheres do melado, mais agradaveis que os banquetes de hoje.
Depois da gente de negocio, os melhores ouvintes que tenho achado são os homens do Sul, das duas raças. Sabem ouvir com attenção. Os negros dizem "Amen, é verdade", e isto é um incentivo para o orador.
Tambem me agradam os estudantes. Tive a sorte de fazer conferencias em estabelecimentos notaveis, em Harvard, Williams, Amherst, nas universidades de Fisk, Pensylvania, Wellesley, Michigan, no collegio da Trindade na Carolina do Norte, e em muitos outros.
Frequentemente, no fim dum discurso muitas pessoas vieram cumprimentar-me, affirmando que pela primeira vez tratavam um negro por senhor.
Quando me afasto de Tuskegee com o fim de obter recursos para a escola, preparo algumas conferencias, umas quatro, que são pronunciadas nos centros importantes de cada região, nas igrejas, nas escolas, nas sociedades christãs, em clubs.
Ha tres annos, por proposta do sr. Morris K. Jesup, de Nova York, e do dr. J. L. M. Curry, agente geral da fundação John Slater, os administradores desta sociedade destinaram uma verba ás despesas das viagens que eu e a sra. Washington fazemos nos Estados mais feridos pela escravidão. Todos os annos consagramos algumas semanas a esse trabalho. Pela manhã dirijo-me aos professores, aos ministros, aos commerciantes; á tarde minha companheira fala ás mulheres; á noite appareço em grandes reuniões publicas. Ordinariamente ha brancos no auditorio. Em Chattanooga, no Tennessee, tive cerca de oitocentos brancos em tres mil pessoas.
Essas viagens produzem excellente resultado. Conseguimos penetrar a vida dos negros, observal-os em casa, na igreja, na escola, na fabrica, na prisão, na piolheira da cidade. E augmenta a confiança que tenho no futuro da minha raça. Sei que as apparencias, os enthusiasmos rapidos, nos enganam, mas habituei-me a desprezar signaes exteriores, esforço-me por examinar as coisas, colher informações com methodo e sangue frio.
Um entendedor barato affirmava ultimamente que na raça negra fervilham as mulheres deshonestas. Está ahi uma odiosa mentira. Como se provaria semelhante coisa? E’ preciso não ter estado vinte annos em contacto com os pretos, como estive, no coração do Sul, para ignorar que elles, a despeito do que se possa dizer, progridem, talvez devagar, mas com segurança, material, moral e intellectualmente.
Poderiamos escolher certos individuos das classes baixas de Nova York e julgar por elles a moral do branco, mas isto seria um procedimento desleal.
No começo de 1897 convidaram-me para fazer o discurso de honra quando se erigiu o monumento a Robert Gould Shaw, em Boston. Acceitei o convite. Não preciso dizer quem foi Robert Shaw. O monumento erguido á sua memoria está num jardim publico de Boston, em frente ao palacio do governo, e é considerado uma obra prima de estatuaria, a mais bella dos Estados Unidos. As cerimonias da festa realizaram-se na sala dos concertos, que se encheu da gente mais distincta da cidade. Reuniram-se ahi velhos abolicionistas em grande numero. O general Roger Wolcott, então governador do Massachusetts, presidiu a solennidade, e junto a elle sentaram-se altos funccionarios e centenas de homens consideraveis. Copio uma noticia publicada na Transcripção de Boston:
“O acontecimento mais importante da cerimonia effectuada hontem, em honra da fraternidade humana, foi o magnifico discurso do director do instituto de Tuskegee, Booker Washington, que em Junho ultimo a universidade Harvard distinguiu com um titulo honorario. Pela primeira vez a universidade mais antiga dos Estados Unidos concedeu essa distincção a um negro, por julga-lo “digno conductor do seu povo”, conforme disse o general Wolcott, apresentando-o.
Quando o sr. Washington se levantou na sala aquecida pelo enthusiasmo patriotico, onde voavam bandeiras, a multidão sentiu-se na presença da justificação viva do espirito abolicionista do Massachusetts. Essa personagem encarnava a antiga fé indomavel, e na sua eloquencia, rica de pensamento e brilho, os velhos dias de lucta e soffrimento acharam recompensa.
A decoração era de grande belleza. Boston, que imaginam tão fria, animava-se com o fogo de verdade e justiça que arde no seu coração. A sala regorgitava de pessoas alheias a acontecimentos publicos, de familias que, em dias de festa, ordinariamente se retiram para o campo. Boston celebrava o anniversario da maioridade exhibindo os seus melhores cidadãos, homens e mulheres, de nomes illustres e vidas cheias de virtudes.
Uma vigorosa musica marcial tinha resoado, ovações succediam-se ás ovações, applausos calorosos e prolongados saudavam os amigos e os officiaes do coronel Shaw, o esculptor Saint-Gaudens, a commissão do Memorial, o governador e o seu estado-maior, os soldados negros do 54.° regimento do Massachusetts. O coronel Henry Lee, numa allocução nobre e simples, inaugurara a festa rendendo homenagem ao sr. John M. Forbes, que elle substituia. O general Wolcott fizera um memoravel pequeno discurso, affirmara “que o forte Wagner figurava na historia duma raça e marcava o principio da sua maioridade”. O sr. Quincy tinha recebido o monumento em nome da cidade. Emfim a historia do coronel Shaw e do seu regimento negro fôra reproduzida em termos eloquentes e o cantico “Os meus olhos viram a tua gloria, Senhor” havia terminado quando Booker Washington se levantou. O momento era propicio. A multidão, que sahia da calma habitual aos auditorios dos concertos, vibrava. Dez vezes tinha-se levantado para applaudir, lançar vivas, agitar lenços. Quando aquelle homem intelligente, de pelle escura e voz poderosa, começou a falar, a citar os nomes de Stearns e Andrew, a commoção espalhou-se. Os olhos dos militares e dos civis molharam-se.
O orador, voltando-se para os soldados negros e para o porta-bandeira do forte Wagner que, sorrindo, levantava o pavilhão nunca abandonado, exclamou:
— Para vós, restos mutilados e dispersos do 54.º, que honraes esta cerimonia apresentando-vos aqui, o vosso commandante não morreu. Ainda que a cidade de Boston não tivesse erguido este monumento, ainda que a historia esquecesse tão altos feitos, em vós e na raça leal que representaes Robert Gould Shaw teria um monumento indestructivel.
E Roger Wolcott, governador do Massachusetts, interpretando a sympathia do povo, levantou-se e gritou:
— Tres acclamações a Booker Washington!”
Entre os que se achavam no palco figurava o sargento William H. Carney, de New-Bedford, o valente negro que, no forte Wagner, tinha conservado a bandeira americana erguida no meio da refrega. Se bem que o regimento fosse dizimado, elle conseguira escapar e exclamara depois da batalha: “A velha bandeira nunca foi ao chão”.
Vinha com ella naquelle dia de festa, e poz-se em pé, agitou-a no ar quando falei no sargento Carney e me voltei para os sobreviventes do regimento negro. Tenho recebido manifestações calorosas proprias para lisonjear-me, nenhuma, porém, como a que essa scena provocou.
Nas demonstrações de regozijo que succederam á guerra hispano-americana, fizeram-se reuniões em varias cidades. A commissão de Chicago, dirigida pelo sr. W. Harper, presidente da universidade, pediu-me que falasse na semana do jubileu. Fiz em Chicago dois discursos, o mais importante a 16 de Outubro, quando tive o publico mais abundante da minha carreira de orador. Avaliaram em dezeseis mil o numero de pessoas que me ouviram nessa noite, e tive a impressão de que fóra da sala apinhada outro tanto desejava entrar nella á força. Para alguem atravessar as portas necessitava a intervenção da policia. Estiveram presentes á sessão o presidente William Mac Kinley, todos os membros do gabinete, diversos ministros extrangeiros, numerosos officiaes do exercito e da marinha, entre os quaes alguns se haviam distinguido na recente guerra. Quatro oradores: o rabbino E. G. Hirsch, o padre Thomas P. Hodnett, o dr. John H. Barrows e eu. Do Times-Herald de Chicago reproduzo este pedaço de noticia:
“Fez-nos ver o negro preferindo o captiveiro á morte e evocou a figura de Crispus Attucks, que se bateu no começo da revolução americana para libertar a raça branca, emquanto a sua continuava opprimida; narrou o procedimento dos negros em Nova Orleans; pintou os escravos do Sul a sustentar e proteger as familias dos seus senhores, que luctavam defendendo a escravidão; falou na bravura das tropas negras em Port-Hudson, nos fortes Wagner e Pillow; elogiou o heroismo dos regimentos negros que bombardearam El Caney e Santiago para dar liberdade aos cubanos, esquecendo a injustiça de que eram victimas na sua propria terra. Dirigiu este eloquente appello á consciencia americana: “Se ouvistes a historia completa da acção do negro na guerra hispano-americana, se a ouvistes contada pelo homem do Norte e pelo homem do Sul, pelo ex-abolicionista e pelo ex-senhor, reconhecereis que essa gente prompta a offerecer a vida ao seu paiz merece que lhe permittam viver no seu paiz”.
Houve na platéa um enorme enthusiasmo quando manifestei os agradecimentos do negro por lhe haverem dado um lugar na guerra. O presidente Mac Kinley se achava num camarote, á direita do palco. No momento em que, ao terminar a phrase, me voltei para elle, uma ovação tumultuosa rebentou. Agitaram-se lenços, bengalas e chapéos. O presidente ergueu-se, inclinou-se. E surgiram novas acclamações, de violencia incrivel.
Alguns pontos do meu discurso de Chicago não foram bem comprehendidos pela imprensa do Sul, que me atacou fortemente varias semanas, até que o director do Age-Herald de Birmingham, no Alabama, me escreveu pedindo esclarecimentos. Mandei-lhe uma carta que apaziguou os criticos. Affirmei que tinha por costume não dizer no Norte coisa que não pudesse dizer no Sul e que dezesete annos de trabalho em Tuskegee deviam bastar aos sulistas mais difficeis de contentar. Repeti parte do meu discurso de Atlanta a respeito de preconceitos de raça.
Apparecem nas reuniões publicas individuos temerosos. São os malucos. Ha tempo que os vejo e habituei-me a conhecel-os de longe. Têm de ordinario uma barba longa e mal tratada, rosto macilento, paletot escuro, roupa branca suja e calças com joelheiras. Depois dum dos meus discursos em Chicago, surgiu-me um desses typos, da especie que descobre remedios para todos os males do universo. Tinha concebido um meio de conservar o milho tres annos, e, segundo affirmava, se os negros lhe comprassem a invenção, liquidariam as divergencias de raças. Em vão me esforcei por explicar-lhe que desejavamos produzir cereaes para um anno. Outra personagem desse genero tinha formado o projecto de fechar todos os bancos nacionaes do paiz. Queria o meu concurso — estava certa de que isso regularia para sempre os negocios do negro.
O numero de sujeitos que pretendem roubar-nos o tempo é incalculavel. Falei uma noite em Boston. Accordaram-me cedo no dia seguinte e apresentaram-me um cartão de visita. Suppondo que se tratasse de coisa importante, vesti-me depressa, desci e encontrei no salão do hotel um homem de rosto innocente, que me disse, calmo:
— Tive a satisfação de ouvil-o hontem á noite. Por isso tomei a liberdade de procural-o agora de manhã, para renovar o prazer que senti.
Já me disseram que deve ser difficil, viajando como viajo, occupar-me com a direcção de Tuskegee. Respondo, contrariando o proverbio “Quem quer vai, que não quer manda”, que não devemos fazer o que os outros fazem sem nós. A escola funcciona admiravelmente, ainda que um dos administradores se afaste. O pessoal conta oitenta e seis individuos, e o trabalho de cada um é feito de maneira que tudo roda bem, tal qual o machinismo dum relogio. Os professores, na maioria, aqui vivem ha muitos annos e têm o interesse que eu tenho. Na minha ausencia, o sr. Warren Logan, thesoureiro do instituto, preenche as funcções de director. Secundam-no a sra. Washington e o sr. Emmett J. Scott, meu fiel secretario, que se encarrega de parte da correspondencia e me communica, não só o que diz respeito á escola, mas tudo quanto se refere á raça negra. Ser-me-ia difficil mencionar os serviços que o sr. Scott nos tem prestado. Quer me ache em Tuskegee quer não, o trabalho é dirigido pelo conselho executivo, que se reune duas vezes por semana e é composto de nove pessoas, a cada uma das quaes se confiaram attribuições particulares. A sra. B. K. Bruce, por exemplo, viuva do senador Bruce, é directora do internato das moças. Alem do conselho executivo, temos a commissão de finanças, que determina as despesas que se devem fazer cada semana. Pelo menos uma vez por mez os professores discutem. Ha tambem reuniões de importancia menor, as das classes biblicas, as das sociedades agricolas. Adoptámos um systema de relatorios que me annunciam os mais insignificantes pormenores do serviço, em qualquer ponto do paiz onde me encontre. Dizem-me quaes os alumnos dispensados dos cursos, a renda do estabelecimento, o numero de litros de leite e de libras de manteiga que a fazenda produz. Sei como os professores e os alumnos se alimentam, se a carne num dia determinado foi cozida ou assada, se os legumes foram comprados na venda ou colhidos no campo.
Perguntaram-me como, abarbado com trabalhos, cheio de obrigações na vida publica, posso achar repouso e distracção. Chegaram a interrogar-me a respeito dos divertimentos que me agradam. Difficil responder, confesso. Acho que devemos robustecer-nos, adquirir nervos capazes de resistir a situações difficeis e decepções. Emprego o meu tempo de fórma que os deveres da rotina se desempenham nas primeiras horas da manhã. Desembaraço-me da correspondencia, da contabilidade, e no dia seguinte disponho de todas as horas. Sentimos um prazer physico, intellectual e moral quando somos inteiramente senhores do nosso trabalho, não nos subordinamos a elle. O espirito se alegra, o corpo se revigora, emfim temos saude. Amamos a tarefa e achamo-nos fortes.
Accordo sempre bem disposto, mas não esqueço que podem surgir acontecimentos desagradaveis e estou preparado contra elles: o edificio pega fogo e arde completamente, o artigo de jornal me aggride por eu ter feito ou deixado de fazer qualquer coisa, por ter dito uma phrase que não tive a intenção de dizer.
Ha dois annos, ao cabo dum trabalho continuo de dezenove annos, tomei uns mezes de ferias, quasi obrigado por alguns amigos que me puzeram nas mãos a quantia necessaria a uma viagem á Europa.
Como já disse, acho que devemos tratar da saude, curar os pequenos males, meio de afastar os grandes. Se tenho insomnias, sei que ha um desarranjo cá por dentro, e quando um orgam se atrapalha, consulto o medico. É uma felicidade podermos dormir quando queremos. Hoje, em qualquer parte onde me ache, encosto-me para uma somneca de vinte minutos e levanto-me repousado.
Escrevi que não gosto de deixar occupações de um dia para outro. Exceptuo os casos de importancia, as questões de sentimento: julgo então razoavel delongar, ouvir minha mulher ou os amigos.
Chego ás leituras. Infelizmente não me sobra para ellas muito tempo. Aproveito as horas de viagens, leio os jornaes, que me dão prazer. Não tolero as obras de ficção, é com difficuldade que vou ao fim dum romance famoso. A literatura que me agrada é a biographia: gosto dos heroes de carne e osso. Não exaggero dizendo que li tudo quanto se escreveu a respeito de Abrahão Lincoln, livros e artigos. É o meu santo, Lincoln.
Passo meio anno longe de Tuskegee. Os prejuizos que esse afastamento acarreta são compensados por algumas vantagens. A mudança de occupações é para mim um repouso. Sinto-me realmente bem numa viagem longa em estrada de ferro, comtanto que não me importune o individuo que se multiplica nos trens e usa este invariavel introito:
— Não é a Booker Washington que tenho a honra... Tomo a liberdade de me apresentar.
A ausencia faz-me esquecer minucias e abranger o conjuncto da escola melhor que se me conservasse perto della. Observo methodos novos de educação e avisto-me com bons professores do paiz.
Fóra isso, devo confessar que os momentos mais agradaveis da minha vida são os que passo junto da mulher e dos filhos. A noite, depois da ceia, lemos um pouco, ou então cada um de nós conta uma historia. E ha os passeios no bosque, domingo á tarde: livres dos maçadores, respiramos ar puro, no meio das arvores, das flores, de milhões de plantas perfumadas, ouvindo grillos e passaros.
Gosto de tratar do meu jardim, chegar-me á natureza, esquivar-me ao artificio e á imitação. Quando posso fugir do escriptorio e jardinar meia hora, sinto uma renovação de forças que me ajuda a supportar os aborrecimentos successivos nesta carreira difficil.
Sem falar na capoeira e nos animais domesticos pertencentes á escola, possuo alguns porcos e aves de estimação. O porco é o meu bicho favorito, especialmente o Berkshire e o Poland-China.
Não sou dado a jogos. Nunca vi o foot-ball. E a minha ignorancia é absoluta em materia de cartas, nem sequer distingo os naipes. As vezes me divirto jogando a bola com os meninos. Gostaria talvez dos jogos se tivesse aprendido alguns na infancia. Mas nesse tempo nem me era permittido pensar em semelhante coisa.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.