Meu Captiveiro entre os Selvagens do Brasil (2ª edição)/Capítulo 35
pedi que me levasse
Karvatuvare, como chamavam os indigenas ao tal francez que os aconselhara a me comerem, voltou á nossa taba em busca de pimenta e pennas. Veio de Manguape ou Nitheroy, que era onde aportavam os navios francezes para os quaes elle agenciava.
Chegando, admirou-se de ver-me e disse:
— Pois ainda estás vivo, homem?
Respondi agastado:
— Sim, graças a Deus, pois só a elle devo ter conservado a vida tanto tempo.
Creio que o francez já ouvira dos selvagens a historia dos acontecimentos occorridos, pois que o vi mudado. Chamei-o á parte, de modo que os indios não nos ouvissem conversar, e lhe fiz ver como era patente que Deus velava por mim; que eu não era portuguez, mas allemão e estava naquella terra graças ao naufragio do navio espanhol que me trouxera. Pedi-lhe que explicasse isto aos indios e que me apresentasse como um parente e amigo a quem vinha buscar.
Eu receiava que se o francez não procedesse assim os selvagens me suspeitassem de charlatanismo e se vingassem. Porisso fiz-lhe ainda uma admoestação em lingua da terra, perguntando se não lhe batia no peito um coração de christão e se tanto esquecera que além desta vida ha uma outra a ponto de recommendar aos selvagens que me comessem.
O francez mostrou-se arrependido e explicou-me que de facto me julgara portuguez, gente ruim a quem os selvagens não poupavam, e, como francez que era, via-se forçado a fazer causa commum com os indigenas contra esse inimigo hereditario.
Tudo mudou depois da conferencia e o francez foi falar a meu favor com os indios. Disse-lhes que da primeira vez não me reconhecera, mas agora via que eu era da Allemanha e amigo dos francezes, pelo que desejava levar-me comsigo.
Os indios, entretanto, declararam que não me deixariam ir com ninguem, a não ser com meu pae ou algum meu irmão que viesse resgatar-me com um navio cheio de machados, facas, tesouras, pentes e espelhos; tinham-me apanhado em terra de inimigos e de direito eu lhes pertencia.
Depois da conferencia o francez veio dizer-me que os indios de forma nenhuma me largariam. Pedi-lhe então, pelo amor de Deus, que me mandasse buscar pelo primeiro navio chegado, o que me foi promettido. Em seguida Karvatuvare observou aos indios que não me matassem, e me guardassem cuidadosamente até que meus amigos me viessem resgatar.
Após a partida do francez Alkindar-miri veio saber se Karvatuvare era meu patricio e o que me havia dado.
— E' meu patricio, sim, respondi.
— Então, retrucou elle, porque não te deu ao menos uma faca para me presenteares com ella? e mostrou-se zangado.
Passados uns dias os indios doentes recobraram a saude e entraram de novo a murmurar de mim, allegando que os francezes, afinal de contas, não valiam mais que os peros, o que muito me atemorizou.
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.