Meu Captiveiro entre os Selvagens do Brasil (2ª edição)/Capítulo 37

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CAPITULO XXXVII
Do que succedeu depois de comido
o prisioneiro

Acabada a festa voltamos para a taba de Ubatuba, e meus donos trouxeram comsigo, assada, um pouco da carne do maracajá. Gastamos tres dias na volta, viagem de ordinario feita em um; mas ventava e chovia muito. No primeiro pouso, quando erguiamos ranchos no matto para o pernoite, intimaram-me a fazer passar a chuva.

Comnosco ia um menino que trouxera uma cannela do prisioneiro na qual ainda havia uma pouca de carne que elle roia.

Não pude ver aquillo e disse ao pequeno que deitasse fóra o osso.

Os selvagens zangaram-se commigo e disseram que a carne humana era a sua verdadeira comida.

A um quarto de milha de Ubatuba as canôas não mais puderam avançar, devido ao furor das ondas. Varamol-as então em terra, esperando que no dia seguinte fizesse bom tempo. Mas a tempestade continuou, e foi resolvido seguirmos viagem por terra, voltando elles a buscar as canôas quando o mar o permittisse.

Antes de partirmos o menino acabou de roer a carne, deitando fóra o osso, e como logo depois o tempo concertasse, disse-lhes eu:

— Vêem? Meu Deus mostrava-se zangado por estar o menino a comer aquella carne.

— Sim, concordaram os indios. Se o menino tivesse comido a carne de modo que tu não visses, o tempo não teria arruinado.

Ao chegar á taba Alkindar me disse:

— Viu como costumamos tratar os nossos inimigos?

— Que os matem, vá, respondi; mas acho horroroso que os devorem.

— Sim, retrucou elle; é nosso costume e do mesmo modo tambem procedemos com os portuguezes.

Este Alkindar me era muito adverso, e apesar de ter cedido a seu tio a parte que tinha em mim, só não me matava porque Nhaepepô o impedia, receioso de alguma desgraça.

Mas succedeu que logo depois de voltarmos Alkindar foi atacado de uma doença dos olhos, que o deixou cégo por alguns dias. Isso o fez vir a mim e pedir que rogasse ao meu Deus pela volta da sua vista.

Respondi que o faria caso promettesse tornar-se bom para commigo. Alkindar o prometteu, e dentro em breve sarou.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.