Meu Captiveiro entre os Selvagens do Brasil (2ª edição)/Capítulo 51

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CAPITULO LI
De como chegou de França um novo
navio, e do que aconteceu

Estava eu já de quatorze dias na taba de Itaquaquecetuba, na ocára do morubichaba Abati-poçanga, quando uns selvagens se dirigiram a mim e disseram ter ouvido tiros de peça para os lados de Iteron,, que tambem dizem Rio de Janeiro. Era signal de barco entrado; pedi-lhes que me levassem a elle, pois havia de ser o navio de meu irmão.

Era de facto um navio de França e aconteceu que logo souberam a bordo do meu caso. O commandante mandou á minha procura dois dos seus homens em companhia de meia duzia de selvagens. Vieram ter com o morubichaba Coouara-açú (grande comedor de caça), que possuia a sua cabana perto da minha.

Avisado disso pelos selvagens, fiquei muito contente e fui dar-lhes as boas vindas na lingua da terra.

Esses francezes eram boas almas; vendo-me tão desgraçado, apiedaram-se e repartiram commigo as suas roupas. Explicaram-me que tinham vindo por mim, com ordem de me levarem para o navio de qualquer modo que fosse.

Meu coração encheu-se de jubilo, reconhecendo nisso a clemencia divina.

Pedi então a um delles, de nome Perot, que declarasse aos selvagens que era meu irmão e me trouxera muitas caixas de mercadorias, devendo os indios irem a bordo recebel-as; e que accrescentasse que eu desejava permanecer na taba para colher pimenta e fazer mais coisas até que o navio regressasse no anno seguinte.

Os selvagens concordaram com a resposta. Levaram-me para Iteron, com Abati-poçanga, meu dono, á frente. Lá chegados, subimos todos ao navio.

Contei aos francezes a minha grande desgraça e elles muito se compadeceram do meu tragico destino, tratando-me muito bem.

Após cinco dias de de hospedagem no navio Abati-poçanga perguntou-me pelas caixas de mercadorias mandadas pelo meu irmão. Transmitti ao commandante a pergunta, e o commandante ordenou-me que fosse entretendo os indios até que o navio se apparelhasse, mas de modo que não se zangassem, nem suspeitassem de alguma trahição.

Abati-poçanga, entretanto, insistiu em levar-me para a terra.

Respondi-lhe que não tivesse tanta pressa, pois bem sabia que quando bons amigos se encontram não podem separar-se depressa; que quando o navio partisse então regressariamos todos á taba. E assim consegui retel-o.

Finalmente, completada a carga do navio, embarcaram-se todos os francezes.

O commandante reuniu os indios, fez vir um interprete e falou-lhes de como estava satisfeito por me não terem morto apesar de colhido entre inimigos; disse que mandara chamar a bordo para os presentear em agradecimento do bom trato havido para com o prisioneiro; declarou ainda que era sua intenção persuadir-me a permanecer com elles, já que lhes era tão familiar; ficaria eu empregado no commercio da pimenta, que o navio voltaria a buscar no anno seguinte.

Antes dessa fala tinhamos combinados um plano. Uns dez homens da tripulação, dos que mais se parecessem commigo, se reuniriam, declarando-se meus irmãos e insistindo em levar-me.

Terminada a fala do commandante, adeantaram-se esses suppostos meus irmãos e o interprete declarou aos indios quem elles eram e o que pretendiam. Allegou ainda que meu pai insitia pelo meu regresso, pois não desejava morrer sem ver-me.

O commandante falou de novo, por meio do interprete, e disse ser da sua vontade que eu voltasse para a taba; mas que elle commandante era um só e meus irmãos muitos, pelo que tinha de ceder deante do numero. Tudo isso com o fim de evitar indispoções com os selvagens, amigos dos francezes.

Adeantei-me tambem eu, depois, e disse a Abati-poçanga, meu dono, que muito desejava voltar para a taba, mas me via impedido pela attitude de meus irmãos.

Abati-poçanga declarou, então, que me deixava partir; mas que voltasse pelo primeiro barco, pois me considerava seu filho e estava zangado com os de Ubatuba por me terem querido devorar.

Uma de suas mulheres, que viera com elle a bordo, foi obrigada a gritar sobre mim, como é costume delles, e eu tive de gritar em resposta, na forma do estylo.

Em seguida o commandante distribui-lhes alguns objectos, facas, espelhos, machados e pentes, ahi no valor de cinco ducados.

Com isso desceram para a terra e vi-me livre do martyrio, graças ao Senhor todo poderoso!

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.