Mistério do Natal/VIII

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A estrada, a duas horas de Sichem, pelos montes, larga e suave, com aceitosas sombras de sicômoros e de amendoeiras, era toda orlada de anêmonas vermelhas e de margaridas brancas e amarelas.

Os khans sucediam-se sempre abrigados em hortos frondosos, com a cisterna ao lado ou perto de alguma fonte, com a alpendrada reverdecida pela vinha, debaixo da qual os mercadores, que desciam de Tiro ou do Líbano ou subiam de Jopé, comiam uma febra de anho regando-a com o vinho fresco de Engadi, enquanto os dromedários soltos iam e vinham vagarosamente ou deitados, ruminando, cerravam os olhos nostálgicos à vívida fulguração do sol.

Casas misérrimas, de muros de lodo, cobertas de palha, confundiam-se com a ramagem dos eloendros, perdiam-se nos olivais.

Caravanas desfilavam – os homens à cavalo, com as lanças altas, o albornoz ao vento; as mulheres em jumentos ou em carros, entre fardos e alcofas, agasalhando crianças sob as pontas dos mantos.

Por vezes um canto suave rompia da turba, rufavam tamboris, kinnareths vibravam, frutas desferiam e os cavalos alegres faziam caracolar os ginetes, as mulheres punham-se de pé nos carros olhando as muralhas que se aprumavam ao longe, fechando cidades, cujas casas, em cubos brancos, semelhavam túmulos.

José evitava os pousos, fugia aos rumorosos aduares, metendo por atalhos para evitar a chacota da gente nômade.

Justamente atravessavam uma trilha deserta quando ouviram um choro triste e deram de rosto com uma moça morena que trazia nos braços uma criança inerte.

Pós ela uma pequenita, já com abundância de flores, ainda varejava os matos procurando anêmonas.

Vendo-as, a mísera susteve o pranto e, fitando em José os olhos rasos d’água, perguntou:

“Se ainda distava muito Edor, onde vivia Burac, o nazir, que conhecia a virtude das ervas e realizava curas maravilhosas. Vendera as ovelhas e levava oito ciclos de prata e um colar de ouro comprado em Jerusalém e, se tanto não bastasse, dar-se-ia como escrava pela saúde do filho.”

José estendeu o braço na direção do levante:

- Era além, muito longe, através da montanha, num vale sombrio, a horas do Jordão.

Maria, comovida, quis ver o infante.

A mãe descobriu-lhe o rosto.

Era lindo!

Os cabelos rolavam-lhe em cachos louros, os olhos jaziam como dois mortos sob as cúpulas tumbais das pálpebras, com os longos cílios repontando como a erva que fica no abandono.

A boca, de lábios cerrados, lívida, era como o leito seco de uma torrente que o sol exauriu e estalou.

Não se movia e, tão rígido, tão frio estava que só a ilusão do amor podia ainda emprestar-lhe vida.

A pequenita continuava a rebuscar anêmonas cantando.

- Ides debalde a Endor com o vosso filho, disse comiserado o patriarca, acrescentando: Burac pode sarar enfermos, mas só Elias ressuscitava os mortos.

- Quereis dizer que ele está morto!? Exclamou a mulher tremendo. Se, ainda ontem, o embalei nos braços... Se ainda estou com peitos cheios de leite, manando copiosamente como as ribeiras das colinas.

Ai! de mim... Bem que eu não queira cantar a cantiga tristonha!! Foi o canto triste que o fez fugir dos meus braços. Ai de mim!

Adormeci-o para sempre.

E agora? Quem terá piedade da minha solidão? Era ele só...

Nasceu em noite de luar, finou-se em manhã de névoa. E hei de o deixar na terra justamente quando o inverno chega! Ai! de mim...a saudade mudará o leite dos meus peitos em lágrimas para os meus olhos. Pobre de mim! Coitada de mim!

E a moça deixou-se cair à beira do caminho apertando nos braços o corpo do filho morto.

A pequenita continuava a rebuscar anêmonas.

Maria inclinou-se compadecida sobre o cadáver e duas lágrimas da sua piedade rolaram na fronte gélida do defunto.

Logo abriram-se os olhos da criança. Eram azuis, cor do céu; renasceram-lhe as rosas das faces, os bracinhos inertes estenderam-se e, lindo, com o esplendor da vida, o pequeno sorria afogando a cabeça no colo materno.

O espanto emudecera, imobilizara a moça.

Súbito, ergueu-se com um grito d’alma, pôs-se a rasgar a túnica na pressa de amamentar o filho.

Os peitos saltaram túmidos. O pequeno abocou avidamente e a mãe, sentindo-o sugar, contente e com lágrimas, ajoelhou-se e, d’olhos no céu, ficou como petrificada.

Maria chorava por vê-la chorar venturosa e, com as suas lágrimas na terra, a pequenita não teve mãos para colher as flores que nasciam, brotando como acima d’água borbulham, às mil, as bolhas de ar.