Mulheres e creanças/Capítulo XIV

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CAPITULO XIV

I

 

 

Fallemos dos nossos criados.

É um assumpto este de importancia summa.

Tem relações estreitas com a administração da casa, com o seu aceio, arranjo, conforto e bom governo; com a moralidade que n’ella existe, com a figura que ella representa em relação ás outras casas.

Parece uma questão ridicula e comesinha; tem sido estragada por todas as matronas de mau humor que desafogam n’ella a superabundancia da sua bilis; é o assumpto obrigado das conversações das mães burguezas, em quanto nas pequenas soirées dos quartos andares as meninas estafam um desgraçado piano asthmatico, os litteratos da familia recitam versos a Ella, e tres commendadores gordos e vermelhos disputam acalorada e ferozmente a uma banca de voltarete.

Ninguem todavia ainda encarou esta questão debaixo do seu verdadeiro aspecto.

Declama-se contra a decadencia e desmoralisação dos criados de hoje, mas ninguem pensou que esta decadencia, que esta desmoralisação, provém forçosamente de alguma causa que é necessario conhecer e destruir.

Á primeira vista, observando na familia, esse elemento que se tem tornado tão indispensavel quanto perigoso, nota-se o seguinte:

— Que os criados de hoje não se podem comparar aos criados antigos, nem na fidelidade, nem na lealdade, nem no desinteresse, nem na moralidade.

Já se vê que esta regra tem excepções numerosas, de que não tractaremos, mas que reconhecemos e admittimos.

— Que dia a dia se nota n’esta classe um desapego mais profundo pelas familias a quem serve, e em cujo seio penetra.

— Que elles são sempre ou quasi sempre os auxiliares da traição, do vicio, da desobediencia, e que portanto é profundamente corruptora a influencia que exercem na familia.

— Que o seu interesse consiste em especularem com as fraquezas ou as maldades d’aquelles de quem dependem, e que vivem e medram na immoralidade dos seus superiores.

— Que pelo seu comportamento se revelam inimigos natos de todos que estão acima d’elles, e que presentindo a vantagem que lhes póde provir do rebaixamento dos entes de quem receiam a severidade ou que são forçados, muito contra sua vontade, a respeitar, o fim que elles teem, e que procuram por todos os modos attingir, é o seguinte: penetrar vagarosa e cautelosamente na confiança dos amos, extorquir-lhes os seus segredos, e divulgal-os por sêde instinctiva de vingança, ou exploral-os, por desejo immoderado de ganho.

Posto isto, provado está que os criados são os nossos inimigos necessarios, e que é preciso que para com elles a nossa attitude seja por em quanto inteiramente defensiva.

E dizemos por em quanto, por uma razão muito simples.

Porque entendemos que, quando n’uma classe inteira se manifestam symptomas de corrupção e de gangrena, a culpa vem por força de longe, e de cima, e que devemos applicar-nos com todas as nossas forças e todos os nossos desejos, a modificar essa culpa, e a redimil-a por fim.

A que póde attribuir-se o contraste notavel que se reconhece entre os criados antigos e os criados de hoje?

A muitas causas independentes da nossa vontade, e sobretudo da vontade d’elles; as causas que teem o seu quê de politicas, e seu quê de economicas, o seu quê de sociaes, o seu quê de philosophicas.

Vejam em quantas questões nebulosas e importantes entesta esta humilde questão de criados.

Transformação completa do viver social e do viver domestico.

D’antes a familia era fundada n’um principio de muito menos justiça, mas n’uma base de muita mais solidez.

Havia o chefe que acolhia á sua vasta sombra, os irmãos, os parentes pobres, os filhos, os servos que eram tambem uma tradição e tambem uma herança.

Quando o chefe morria succedia o filho ou o irmão mais velho, que herdava os irmãos, os tios, os parentes pobres, os servos, todos os haveres, e tambem todas os encargos da numerosa communidade.

Os criados entravam ao collo de sua mãe que vinha ser aia, ou varredora, ou engommadeira, ou outra cousa qualquer e sahiam de 60 ou 80 annos no caixão para o cemiterio, deixando na familia nova geração de servos que eram seus filhos.

D’este modo havia estabilidade nos seus empregos. Só eram demittidos por erro de officio.

Não receiavam o dia de ámanhã, não sentiam a esmagadora indifferença dos superiores a revelar-lhes que na familia eram párias, eram estranhos, eram inimigos.

Não precisavam de se apossar de um segredo, de ameaçar tacitamente com uma denuncia, de lisongear vilmente um vicio ou mesmo uma mania, para darem solidez e garantia de duração á sua posição dependente e precaria!

Em quanto que na vasta sala de jantar, de tectos apainelados, e custosos pannos de Arras, em torno da pesada meza de carvalho, primorosamente entalhada, se reunia alegre a numerosa familia, em que umas poucas de gerações se enlaçavam, na cosinha do palacio, ao lume crepitante das fornalhas enormes, reunia-se tambem a familia ainda mais numerosa dos antigos servos.

Eram paes, mães, filhos, ás vezes netos.

Não estavam privados de todas as condições humanas, tinham as suas festas intimas, as suas alegrias, os seus affectos.

O seu maior empenho consistia em que a familia de que dependiam, florescesse e prosperasse; a sorte d’elles e dos seus, estava por assim dizer, identificada com a sorte dos amos.

Affeiçoavam-se áquellas paredes, ou áquelles moveis, á senhora que era branda e protectora para elles, ás creanças que tinham ajudado a crear, e que um dia viriam a conceder-lhes a mesma protecção que hoje recebiam dos paes.

Eram maus, interesseiros, crueis ás vezes! Embora! É porque eram homens, e não porque eram servos.

Tinham as qualidades boas ou más da humanidade e não as de uma determinada classe.

D’aqui a sua superioridade sobre os criados de hoje.

 

 

No regimen moderno, a familia tem outra constituição e outros costumes.

As fortunas extremamente divididas já não consentem esse modo de viver opulento e patriarchal.

Os mesmos ricos, que são no fim de contas os grandes financeiros modernos, esses que juntaram a fortuna de que gosam á custa de privações e de trabalho, são egoistas para todos, e particularmente duros para os inferiores.

Na sua opinião os criados são machinas. Umas machinas que vestem casaca, e usam gravata branca.

Exigem d’elles um serviço irreprehensivel, uma obediencia passiva, uma disciplina exemplar.

De resto odeiam-nos porque lhes teem um certo mêdo.

Comprehendem perfeitamente que são rediculos, elles que andaram tanto tempo de tamancos, a varrer os armazens, a levarem empurrões e maus tractos dos caixeiros grandes da casa, a curvarem-se humildemente diante dos patrões, dando-se agora aquelles ares superiores e desdenhosos de potentados.

Emquanto comem em pratos de Sevres ou do Japão, uns manjares exquisitos que o cosinheiro, o seu cosinheiro de dez ou doze libras por mez, lhes impinge traiçoeiramente, sentem-se acanhados diante do olhar frio, do olhar metallico dos criados de meza, e imaginam que elles no mudo escarneo d’esse olhar, lhes dizem que estão percebendo o seu desastramento, os seus gestos grosseiros, e até a saudade com que recordam a assorda e o bacalhau salgado dos bons dias da mocidade.

D’esta hostilidade mutua nada bom póde resultar.

Os amos são orgulhosos, cheios de desdem, de indiferença, de duro egoismo; os criados são hypocritamente humildes, são invejosos, e malevolamente escarnecedores.

Só um laço póde ligar estes sêres; a cumplicidade.

De cima não haverá brandura em quanto de baixo não houver subserviencia criminosa.

Ambos o comprehendem de sobejo; comprehendem-no sobretudo os criados que andam á mira d’um segredo, d’uma indiscrição, d’uma descoberta qualquer que os faça levantar a cabeça.

No dia em que a aia recebe a primeira confidencia da senhora, no dia em que entrega o primeiro bilhete, no dia em que lhe é escutado o primeiro recado de que a encarregam, invertem-se os papeis, e só continua apparentemente aquella humildade que a suffocava de colera e de despeito.

Era escrava obediente e muda, hoje é cumplice, o que quer dizer tyranna.

Ao marido em caso identico succede o mesmo.

Moralidade d’esta situação: o criado de hoje triumpha quando seus amos se rebaixam.

 

 

Entremos nas casas burguezas, que constituem hoje a maioria.

Vive-se com pouco, ha uma ou duas criadas, a pobreza traz comsigo uma certa promiscuidade que abala o respeito.

Já aqui os criados não são automatos que se movem ao impulso d’uma vontade superior.

Não são mudos, não teem a fria apparencia aristocratica que revela a opulencia da casa em que servem.

Pelo contrario; as criadas estão iniciadas nos pequenos segredos da familia, mas como a vida de hoje, toda de expedientes, toda no ar, desiquilibrada, impostora, não tem aquella dignidade da vida antiga, as criadas com o seu malicioso instincto plebeu penetram esse viver, julgam-no e escarnecem-o.

Podia-se viver decentemente com o pouco que ha. Chega mesmo para uma alimentação sadia, para a satisfação das necessidades indispensaveis; se a dona da casa desenvolver os seus recursos de economia, conseguir-se-hia sem muito trabalho, no fim do anno, joindre les deux bouts como expressivamente dizem os francezes.

O pae é um funccionario bem collocado, o rendimento se não é grande pelo menos é sufficiente para uma vida mediocre e laboriosa.

Diante d’este quadro parece-nos que não ha brecha por onde possa penetrar a malicia interesseira da criadagem.

Pois ha, minhas senhoras!

O dono da casa tem um emprego bom, é verdade, mas aspira a subir de posto, quer de mais a mais a carta de conselho, leva isto em capricho por causa das picuinhas do seu collega da secretaria, o conselheiro Fulano; logo, para attingir este fim desejado é preciso antes de tudo figurar.

Tem de ir aos chás do seu amigo deputado, ás soirées do barão de tal que é muito influente, tem de dar de jantar de vez em quando ao seu amigo cicrano que é parente do primo da mulher do secretario particular do ministro, tem de gastar muito em apparato ridiculo, em luxo avariado, em pompa feita de remendinhos.

A mulher, já se entende, não lhe fica atraz!

Podéra!

E ella então que tem de se vingar d’uns chascos que as snr.as Silvas fizeram ha tres annos a um vestido de seda um tanto usado que ella trazia; e que tem de fazer rebentar de inveja a D. Leocadia que é mulher d’um commendador seu conhecido; e de quebrar os olhos á prima Ausenda que anda a dizer pelas casas do seu conhecimento «que não sabe onde ella vae buscar para tanto luxo!»

Filhas d’estes paes o que serão as meninas?

Querem vestidos de seda, embora os comprem em segunda mão, querem joias embora sejam falsas, querem botinas de tacão alto, porque as teem visto ás pequenas da viscondessa de M. e da baroneza de S. e da marqueza de V.; querem apparecer no theatro, querem ir ao Club, querem tomar banhos quando não seja em praia elegante, ao menos na Ericeira; querem reunir á noute uma vez por semana, umas visitas que nunca vão, querem fazer emfim o que por ahi faz toda a gente.

Resultado d’isto, resultado inevitavel.

Deve-se na tenda, deve-se no carvoeiro, deve-se na modista, deve-se no sapateiro, deve-se na loja de fazendas, deve-se ás criadas.

A falta de seriedade na vida, acarreta comsigo um milhar de pequeninas humilhações insupportaveis.

As criadas vão á porta receber os credores, e trazem dentro os recados com um sorriso maganão que escapa a todas as reprehensões e a todos os castigos.

Se estão de mau humor resmungam, fazem causa commum com o inimigo, que é no fim de contas o confrade; se estão bem dispostas dão alvitres, inventam e lembram desculpas, lamentam a senhora, etc., etc.

De qualquer dos modos amesquinham os amos, estabelece-se entre elles e ellas uma intimidade funesta.

Destroe-se assim o respeito, disciplina, a obediencia, aquella hierarchia que tem de existir n’uma familia para que essa familia esteja bem organisada.

Um dia, as meninas, que teem recebido a educação mais perniciosa e mais falsa, fartam-se d’aquella vida de privações intimas, de balofas apparencias e querem fugir d’ella.

Teem só uma porta: o casamento.

Nas familias pobres da burguezia, o casamento é julgado a porta por onde se sahe da miseria!

Quantas vezes não é elle a porta por onde se entra na desgraça!

Começam então a namorar.

A namorar seja quem fôr. O alferes que passa, o dandy pelintra que encontram nos seus passeios, o litterato pallido e fatal que olhou para ellas da plateia.

Quem é a confidente natural d’este namoro, a auxiliar forçada d’esta intriga ridicula?

A criada!

É ella quem espia a mãe, e quem ajuda a enganal-a; é ella quem entrega e recebe as cartas, é ella quem se farta de rir com a menina, ouvindo contar o que ella lhe disse, e o que elle lhe tornou!

Quantos perigos, quantas humilhações, quantas vergonhas n’este facto que é hoje trivial e repetidissimo!

A criada só tem a ganhar na execução d’estes misteres.

Ganha indulgencia para as suas proprias faltas, uma advogada que ou por medo ou por sympathia defende a sua causa, e até se tanto fôr preciso se revolta por amor d’ella contra a authoridade maternal. Ganha quem a ajude no trabalho!

Ganha a possibilidade de ser insolente e atrevida, de se vingar da sua posição inferior, de desafogar o mau genio, e isto sem perigo de qualidade alguma.

 

 

Quando se não dão estes casos que ahi deixamos apontados dão-se outros identicos ou outros similhantes.

Da parte dos superiores indifferença profunda, desejo de explorar de todos os modos e feitios os dependentes, rudeza, orgulho, egoismo, desapego.

Da parte dos inferiores, a mesma indifferença creada a pouco e pouco pela incerteza ácerca do dia de ámanhã; desaffeição pronunciada, despeito, inveja, e desejo de trabalhar o menos possivel, em troca do maior salario que poderem alcançar, separação de vida, de interesses, de alegrias, de affectos.

Se entra em casa a doença com todo o seu cortejo de lugubres tristezas, de vigilias e de lagrimas, nunca a criada saberá ser enfermeira. Fará o serviço, resmungando, furiosa, desattenta, fazendo esperar um caldo para ir á janella ver quem passa; deixando apagar o lume de noite porque adormecerá inteiramente esquecida dos que soffrem e velam.

E que lhe importa a ella no fim de contas que elles morram ou se salvem.

Hoje está aqui, ámanhã estará n’outra parte!

Se adoecer vem uma maca e leva-a para o hospital abandonada, sósinha como um cão!

Não dá porque não recebe.

Entre os criados e os amos os interesses são absolutamente oppostos.

A unica circumstancia que póde alterar esta situação reciproca: a cumplicidade.

Que admira, pois, que todos os dias se observe maior e mais profunda immoralidade nos criados das grandes cidades? que admira que as excepções se vão tornando dia a dia mais raras?

A culpa é de uns e d’outros, mas o mal tem ainda remedio.

Procuremos apontal-o.

No que respeita aos amos cumpre:

Que sejamos benevolos para que a humildade dos nossos inferiores nunca seja para elles uma humilhação.

Que tenhamos no interior das nossas casas a maxima dignidade e o maximo respeito de nós mesmos e dos outros, para que o nosso exemplo levante ainda os que estão mais baixo.

Que vivamos de modo que nunca receiemos o escarneo, ou a censura de alguem, para que sobre nós nunca possam exercer-se influencias funestas.

Que não exploremos a actividade dos pobres, para que os pobres não tenham interesse em explorar as nossas fraquezas, e já que é indispensavel crear-se e educar-se a classe dos criados, juntemos todos os recursos da nossa experiencia e do nosso bom senso, para dar prompto e efficaz remedio a todos os males que são por assim dizer o privilegio especial d’essa classe. acceitam este modo de vida, são ainda mais desgraçados do que os maus, porque são mais explorados.

Portanto ou fogem d’elle, ou se corrompem fatalmente.

Estamos, pois, em face d’este dilemma.

Ou havemos de não ter criados, ou havemos de os ter maus.

É verdade que fomos nós que voluntaria ou involuntariamente os corrompemos e estragámos.

Concedo.

Agora, porém, não se tracta d’isso.

Achamos o resultado das nossas proprias culpas e procuramos os meios de o modificar.

Primeira necessidade imprescindivel: é preciso educarmos os nossos futuros criados.

Mas como?

Creando para isso instituições especiaes, ou modificando a indole das que já existem.

Tractemos antes de tudo das mulheres.

Estão por todo o reino espalhadas, e ainda bem que assim é, as instituições de caridade, tanto de iniciativa dos particulares, como de iniciativa do Estado.

O que é que n’esses asylos se aprende, salvo excepções possiveis, mas que não chegaram ainda ao nosso conhecimento? Aprende-se em primeiro lugar o que hoje é indispensavel para toda e qualquer situação, por mais humilde que seja; aprende-se a ler, escrever, contar, coser e marcar.

Aprende-se em segundo lugar a bordar de branco, a bordar de missanga, a bordar com cabello, a fazer crochet, a tocar orgão ou harmonium; ha alguns onde se aprende grammatica, historia, geographia, etc., etc.

Muito bem.

Em cada cem raparigas, admittimos que haja dez, cuja intelligencia superior possa mais tarde aproveitar-se d’este genero de estudos.

Serão mestras regias, serão talvez caixeiras de alguma pequena loja, serão mesmo professoras particulares se houverem progredido no estudo e adquirido uma instituição mais solida e mais proficua.

Que fazemos das outras noventa?

Imaginemos que cincoenta casaram muito moças.

Acham um artista, um carpinteiro, um chapeleiro, um entalhador, um pedreiro, um operario de fabrica, que as rouba á desamparada solidão que estava á espera d’ellas e que as leva para o seu pobre albergue desguarnecido e miseravel.

Dos conhecimentos que adquiriram na educação dada pelo asylo quaes aproveitarão, quaes applicarão á sua felicidade, ao seu bem estar domestico? Com que trabalho poderão auxiliar o trabalho do marido, insufficiente para acudir a todas as necessidades do ménage?

Que officio aprenderam a exercer?

Dão as voltas de casa, varrem, limpam o pó, cosinham, mas fazem tudo isto mal.

Nunca ninguem as compenetrou bem da importancia altissima d’estes misteres tão humildes.

Ter a roupa do marido bem desencardida, bem engommada, com os seus remendos bem deitados, ter a casa acciada e fresca, ter uma comida pobre mas saborosa e bem temperada, ter a alegria, a abnegação, a boa vontade, e, em muitas das horas que ficam vagas, exercer qualquer pequena industria que ajude o marido, banir de casa a tagarellice das visinhas, viver só com o seu homem, com os seus filhos, no trabalho continuo, no trabalho fecundo, isso que é de certo o ideal, quem é que lh’o ensinou a praticar?

Deixemos, porém, essas cujo destino agora não precisamos de apreciar e voltemos para as que ficam.

Sahem do asylo, vão umas servir, outras vão ser costureiras, vendedeiras, etc., etc.

Umas são as pobres creaturas roucas e aguardentadas que ahi vemos atravessar as ruas, apregoando hortaliças, ou fructa, outras as pallidas e anemicas creanças, de cuia postiça, chapeu de aba revirada, polonaise phenomenal, bota de tacão alto e cambada, que encontramos á noutinha ou de manhã cedo, indo para casa das modistas, ou voltando de lá.

As outras quem as não conhece, ao menos por ter ouvido fallar d’ellas?

São as criadas de hoje, ou serão as criadas de ámanhã.

A educação que lhes deram está em contraposição perfeita com a tarefa que teem de cumprir.

Uma que foi apresentada para cosinheira, não tem as minimas noções culinarias, mas em compensação lê correctamente os jornaes que veem de manhã.

Outra, cuja obrigação é engommar, não tem geito senão para bordar de matiz.

Algumas, menos favorecidas da intelligencia, não sabem o que aprenderam, nem aprenderam aquillo que fazem.

São as mais vulgares!

 

 

Porque é pois que se não dá ás raparigas do povo, ao menos ás que são educadas nos asylos de beneficencia, uma educação em harmonia com o seu futuro papel?

Não reprovamos de certo a leitura, a ortographia, uns elementos de arithmetica, mas o que reprovamos é que haja uma uniformidade absoluta na educação que se ministra a tantas e tantas creanças de indoles diversas, de intelligencias diversissimas.

Aquellas que tivessem disposições para um genero de trabalhos mais levantados, deviam encontral-o n’uma casa especialmente destinada para as filhas do povo que até aos 12 annos tivessem dado manifestações inequivocas de claro e perspicaz entendimento.

Ali formar-se-hiam futuras professoras, ou futuras artistas.

Haveria n’esse estabelecimento mestras ou mestres que a cada uma conforme a sua vocação ensinassem as linguas, a musica, a pintura em porcellana, a grammatica, a geographia, a contabilidade, etc., etc.

A essa casa, que devia ser subsidiada pelo governo e auxiliada pela bolsa particular, iriam as mães de familia procurar professoras portuguezas para as suas filhas, professoras cuja educação fosse completa, e cuja moralidade podesse ser affiançada.

Mais tarde os chefes de casas de commercio, mais capazes de comprehenderem o grande alcance d’esta innovação, iriam tambem buscar a essa casa raparigas honestas, que elles podessem sentar á mesa ao lado de suas filhas, e a quem confiassem a contabilidade e os livros do seu estabelecimento.

Os fabricantes de louças e outros industriaes achariam na intelligencia e na prompta comprehensão feminina grande auxilio, e auxilio mais economico.

Abaixo logo d’essa cathegoria mais elevada de intelligencia, haveria, n’outra casa, as que tivessem especial tendencia para os trabalhos que requerem não só engenho, mas tambem habilidade manual.

Costureiras de vestidos, modistas de chapeus, raparigas que soubessem fazer rendas, fazer franjas, etc., etc., e que o asylo logo que lhes houvesse completado a aprendizagem, podia empregar convenientemente.

Seriam estas, preferidas de certo a raparigas avulsas que entram para qualquer officio completamente ignorantes do trabalho que teem a fazer.

A disciplina escolar, a instrucção elementar recebida, a aprendizagem methodica, affirmava-lhes a sua superioridade enorme sobre as outras.

 

 

Collocadas assim as mais destras e as mais intelligentes, ficariam aquellas cujo espirito menos desenvolvido se recusava a uma applicação difficil.

Estas seriam educadas expressamente para criadas de servir.

Mas que educação precisa uma criada? Ora essa!

Uma criada precisa uma educação tão cuidadosa como uma duqueza.

A differença consiste unicamente n’isto:

Uma tem de educar-se para criada, e outra tem de educar-se para duqueza.

No asylo destinado a formar criadas, haveria o mesmo escrupulo na escolha das mestras.

Antes de tudo uma moralidade austera.

Depois no que toca á parte technica da educação, officinas distinctas onde cada uma das discipulas fosse alternativamente aprender os serviços que mais tarde tivesse a cumprir.

Officinas onde se aprendesse a cosinhar segundo as regras da hygiene. Officinas onde se aprendesse a engommar segundo os processos mais adiantados. Outras onde se lavasse roupa de lã, e roupa de linho e algodão.

Outras onde se talhasse roupa branca, fatos de creança, e fatos de senhora.

Não se attenderia aqui como no atelier das modistas do asylo superior, aos caprichos da moda, mas unicamente á commodidade, ao bom gosto e á hygiene.

Outras ainda onde se cozesse á machina.

Haveria mulheres especialmente encarregadas de ensinarem as discipulas a varrer, a limpar o pó, a esfregar o sobrado, ou a enceral-o á moda franceza, a deitar bem rêdes, a fazer meias, a cerzir panno, etc., etc.

Haveria n’este estabelecimento um requinte de aceio hollandez.

As mestras escolhidas primeiro nos paizes estrangeiros, e depois educadas pelo mesmo asylo, ensinariam com o maior cuidado ás suas discipulas, que as criadas destinadas pelo seu trabalho a penetrarem no seio de familias inteiramente estranhas a viverem em contacto com gente de muita qualidade eram forçadas a ter, além da honestidade commum a todas as mulheres honestas, uma honestidade particular da sua classe, uma honestidade composta de elementos muito variados.

Dir-lhes-hiam que uma criada boa tem de ser leal, tem de ser digna, de resistir ás más tentações, de ser fiel, de ser boa companheira, de ser laboriosa e de ter o escrupulo mais exagerado no cumprimento das suas obrigações.

N’este asylo ainda haveria subdivisões necessarias.

As mais geitosas para um certo e determinado trabalho applicar-se-hiam a elle de preferencia, não desprezando porém os outros.

Aquella que fosse destra para tudo, aproveitaria egualmente todos os elementos que houvessem de constituir a sua educação.

Ser criada não é — entenda-se bem — nem uma vergonha nem um pis aller; ser criada é um officio, ás vezes mais complicado que os outros, porque comprehende muitos.

A unica differença é que se póde ser uma boa criada não sendo excessivamente intelligente, e que as qualidades aqui indispensaveis são robustez, destreza de mãos, fidelidade, amor de trabalho.

 

 

Não se diga que isto é uma utopia impossivel.

No estado de adiantamento a que chegou entre nós o principio de associação applicado á beneficencia, nada mais facil do que organisar por este modo os asylos do paiz, ou pelo menos de uma cidade do paiz.

Não augmentaria de modo algum a despeza, mas progrediria necessariamente a educação popular.

Reunidas debaixo de uma direcção geral, todas as casas de Beneficencia de uma cidade, passaria esta não a crear asylos novos, mas a modificar a indole dos que existem.

Estabelecer-se-hia uma especie de gradação natural.