No País dos Ianques/IX
O dia 14 de abril (deixem passar a precisão cronológica) estava destinado pelo comandante do Barroso para uma excursão fluvial, científica, à foz do Mississipi, onde iríamos observar de visu os importantes trabalhos hidráulicos, que aí se procediam sob a inteligente direção do notável engenheiro americano Mr. Jas. B. Eads, um velho respeitável, encanecido no serviço da engenharia, e cujo nome está ligado a muitas obras notáveis de seu país.
Às onze horas da noite a barca de passeio Keokuk largou de Nova Orleans, rio abaixo, conduzindo a turma de guardas-marinha, alguns oficiais e o comandante, com destino às Jetties.
Uma excelente embarcação a Keokuk, espécie de pequena cidade flutuante, muito larga e espaçosa, avantajando-se em dimensões aos vapores da Companhia Brasileira. Três pavimentos: o superior, coberto por um grande toldo, onde os passageiros podiam fumar à vontade; o do meio formando um salão-refeitório, ao lado do qual ficavam os camarotes e o porão, para mercadorias; rodas à popa, sistema de locomoção que não conhecíamos; duas chaminés, e máquina possante. Em semelhantes condições éramos capazes de fazer a volta do mundo em oitenta dias...
Passamos a noite sobre o rio, navegando à meia força, ao sabor da correnteza.
Lá íamos outra vez para a região dos mosquitos! Preparamo-nos para dar quixotesca batalha, apesar da falta impreenchível do nosso querido companheiro, o barbeiro de Sevilha, quero dizer o barbeiro de bordo, o impagável espanhol que tanto nos divertira na caça aos mosquitos.
Pela manhã, cedinho, estávamos em Port-Eads, defronte do escritório central do respeitável engenheiro.
Café, biscoitos..., e desembarcamos.
O bom velho já nos esperava com o seu belo ar de urso doméstico, barba muito branca, de barrete e óculos, entre os seus mapas coloridos e os seus prospectos representando steamers e as jetties.
– Folgo bastante em lhes poder mostrar o plano da empresa há tantos anos iniciada sob minha direção, disse ele com um amável sorriso de bonomia patriarcal.
E começou a desenrolar diante de nossos olhos uma série infindável de cartas hidrográficas, mapas, desenhos...
Vale a pena se admirar essa obra monumental.
Tratava-se de cavar o leito do rio, num dos braços de sua foz, por modo a efetuar-se a navegação livremente, na linha da correnteza, e terem entrada embarcações de grande calado, desenvolvendo-se assim o já notável comércio de Nova Orleans. Com esses trabalhos o porto irá melhorando consideravelmente, sendo para notar o grande movimento de navios que entram e saem durante o dia.
O rio tem pelo menos 16.000 milhas navegáveis que os americanos dia a dia tratam de aproveitar dando saída a inúmeros produtos do fertilíssimo vale do Mississipi, o qual abrange cerca de 768.000.000 jeiras das mais ricas terras do mundo, como eles lá dizem. Sua embocadura é, portanto, a passagem natural de todos aqueles produtos.
Desde 1726 têm sido empregados esforços inauditos a fim de se aprofundar essa parte do famoso rio; mas, foi em 1875 que o governo dos Estados Unidos contratou definitivamente esse serviço com Mr. Eads, e é bem provável que em futuro não muito remoto esteja o porto franqueado a todos os navios do mundo, graças à perseverança e aos esforços de hábeis engenheiros.
A visita foi curta, mas proveitosa.
Tomamos novamente a barca, e às cinco horas da tarde atracávamos no forte Jackson, velha fortaleza abandonada, à margem direita do rio. Lá estava ainda, imóvel e muda, a descomunal artilharia que Farragut, o velho almirante, comandara na guerra sanguinolenta dos separatistas, que terminou com a tomada de Nova Orleans.
Os velhos canhões dormiam seu sono de bronze, lá dentro, nos corredores escuros como os de uma Bastilha, e a nós, estudantes de história naval, inspiravam não sei que respeito sagrado. Perante eles falávamos baixo, como para não os acordar...
A fortaleza é grande, mas só tem a importância arqueológica que a história lhe empresta; não resistiria, talvez, às modernas baterias. Opulenta vegetação rasteira cresce-lhe em derredor. O seu aspecto é sombrio como o de um cemitério: as grossas paredes denegridas e o silêncio que a cerca dão-lhe um cunho misterioso de cripta subterrânea e produzem no visitante uma incômoda sensação de abandono e tristeza. Em cada canto parece surgir a sombra de um confederado clamando vingança.
Retiramo-nos em marcha fúnebre, calados e supersticiosos...
Dormimos ainda essa noite sobre o rio para amanhecermos em Nova Orleans. Já estávamos com saudade do Barroso.
Continuaram as manifestações de amizade ao Brasil.
O neto do imperador, jovem e irrequieto, embalde procurava fugir às insistências da aristocracia local e por diversas vezes desejou ter nascido simples burguesinho, como qualquer de seus colegas.
E digamos aqui, muito à discrição, Sua Alteza podia ser um belo moço, um digno cavalheiro, um excelente amigo e camarada, mas... Sua Alteza era um péssimo príncipe. A sua grande aspiração era a vida livre, sem peias, essa vida alegre e boêmia que se esgota depressa nos cafés-concertos e nos restaurantes.
Não gostava de continências e desprezava o juízo imbecil dos que lhe apodavam de estróina. O certo é que esse juízo em nada o comprometia perante o high-life americano que o estimava suficientemente. Ele era o representante imediato da família imperial, era o alvo predileto de todas as manifestações ao Brasil na grande festa internacional.
Seria ocioso, senão monótono e fatigante, descrever, uma por uma, em todos os seus detalhes, com todas as suas cores mirabolantes, essas manifestações, profundamente fraternais e democráticas, com que nos recebeu a distinta sociedade de Nova Orleans. Bailes, regatas, passeios improvisados, concertos, brindes – e não raro a tolda do nosso belo cruzador converteu-se em esplêndido salão de baile, acordando a sons de orquestra e gritos de alegria o silêncio agreste das margens do Mississipi.
É este o único consolo daqueles que andam no mar em serviço da pátria – o repousar em terra amiga. Vão-se as saudades para dar lugar à franca expansão dos corações: a alma do marinheiro transforma-se, como por encanto, num hostiário de alegrias de uma ingenuidade incomparável, e ele ri com os outros, canta e sente-se tão bem como se estivesse em seu próprio país, no meio de seus amigos e de seus parentes. Encantadora ilusão, que só dura enquanto ele não abre as velas mar em fora nessa interminável derrota de argonautas que vão atrás do bezerro de ouro da felicidade...
Não direi, não, o que nos divertimos, as múltiplas sensações por que passou o nosso espírito nessa Luisiana que o Mississipi embala com o ritmo nostálgico de suas águas cor de barro. Seria desdobrar a natureza humana tão complexa e misteriosa.
Vamos adiante, consultemos o caderno de notas.
25 de abril... – Estávamos na Páscoa, a festa risonha e popular da ressurreição do Cristo. Até então nenhum desgosto, nenhuma tristeza, nenhuma mágoa toldara o céu puríssimo de nossas alegrias. Vagávamos em mar de rosa, egoístas de felicidade, sereno o espírito, aberto o coração a todos os influxos bons. Boa vida, por um lado, essa de quem viaja sem grandes preocupações, no bojo de um navio patrício.
Eis que, de repente, uma nota dissonante e sombria chamou-nos à realidade pungente da vida humana: morrera um nosso companheiro de bordo, o Leocádio..., que digo eu? um desses heróis anônimos que usam gola ao pescoço, um pobre marinheiro que a fatalidade arrebatou de sua terra natal para morrer tísico em país estranho.
Ninguém imagina a dolorosa impressão que produz a morte de um companheiro de viagem longe da pátria, num hospital desconhecido.
Fez-se o enterro com todas as honras devidas ao obscuro soldado e velho marinheiro, nascido, por assim dizer, sobre o mar e educado na escola das tempestades. Tinha sessenta anos. Era o “cozinheiro da proa”. Sobre o seu corpo foi estendida a bandeira nacional brasileira como símbolo da pátria reconhecida.
Nesse dia, conforme já estava assentado, toda a guarnição do Barroso desembarcou a fim de assistir à missa solene da Páscoa na catedral de S. Luís, o mais importante dos templos católicos da cidade, situado na Rua Chartres.
Bem que antiga, essa igreja parece resistir ainda por muito tempo. Foi o primeiro edifício católico erigido em Nova Orleans pelos capuchinhos, em 1718, ao tempo da fundação da cidade. Tomou o nome de S. Luís em homenagem ao rei da França.
Mais tarde, em setembro de 1723, desabou sobre a nascente cidade, cuja população elevava-se a 200 almas, formidável ciclone, que arrasou todos os edifícios, causando uma mortandade incalculável. Narram os cronistas que foram arrojados à costa três navios que se achavam fundeados no porto. Em breve, porém, a cidade foi reedificada, sendo em 1724 reconstruída a igreja, essa mesma que ainda hoje ergue seus torreões vetustos na Rua Chartres.
Naquele ano o território de Nova Orleans foi dividido em três grandes distritos sob a administração dos capuchinhos, dos carmelitas e dos jesuítas. De então em diante multiplicaram-se os edifícios religiosos, igrejas, palácios episcopais, conventos, etc.
O convento das Ursulinas data igualmente da fundação da cidade e é um estabelecimento católico à maneira do de Ruão conhecido por esse mesmo nome.
É um dos últimos conventos que ainda existem nos Estados Unidos. Consta de três andares e ergue-se à margem do rio, para onde abre suas janelinhas através das quais se vê passar a sombra fantástica das religiosas.