No País dos Ianques/VI

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Como militar e disciplinador o comandante Saldanha da Gama distinguia-se por sua inflexibilidade porventura exagerada, especialmente para com as guarnições sob seu zeloso comando. Temperamento atrabiliário, sanguíneo, nervoso, sujeito a transições bruscas, inesperadas, impetuosas e violentas, o ilustre marinheiro, espírito eminentemente ilustrado, não sabia, entretanto, guardar a necessária calma quando devia aplicar as penas do código. Essas penas, como se sabe, acham-se perfeitamente explícitas, precisamente formuladas de modo a não deixar dúvida nos espíritos retos e amigos da lei. Entre os artigos que constituem o código penal militar existe um que limita o número de chibatadas, o qual não deve, em caso algum, exceder de vinte e cinco por dia.

Pois bem, o comandante Saldanha pouquíssimas vezes castigava conforme a lei. Colocava acima dela seus caprichos inexplicáveis, sua natureza rancorosa, sua vontade suprema. Não trepidava, e isto é sabido, em mandar açoitar com duzentas chibatadas uma praça qualquer, tal fosse o delito cometido. A um simples olhar seu as guarnições tremiam como caniços. A qualidade característica desse ilustre oficial era ser arbitrário e prepotente. Por isso a guarnição do Almirante Barroso corria a seus postos, em ocasião de manobra, com a velocidade duma seta.

Estávamos quase à entrada do Mississipi, a grande artéria fluvial da América do Norte, que nós imaginávamos um colosso talvez superior em volume d’água ao Amazonas – o Mississipi, decantado pelo autor dos Natchez, e em cujas margens fica a cidade de Nova Orleans, nosso ponto de chegada.

Ninguém pensava mais no Rio de Janeiro para só se lembrar de Nova Orleans, a Cidade Crescente, como a denominam os americanos.

Três horas da tarde, mais ou menos. Embarcações à vela e vapores bordejavam fora da barra à espera de prático, sem o qual era impossível a entrada. Mar calmo, com uma cor esbranquiçada, lembrando na sua quietação dormente um vasto lago estagnado. Em frente, muito longe ainda, mal distinguíamos com o binóculo o farol, microscópica torre branca, invisível quase.

Envolvidos em grossas capas de lã, abotoados até o pescoço ao abrigo do frio que se tornava insuportável para nós da zona tórrida, de pé no tombadilho, máquina a um quarto de força, bandeira nacional desfraldada na carangueja do mastro de ré, esperávamos também o piloto que nos devia conduzir a Nova Orleans, 110 milhas da foz do Mississipi.

O Mississipi! Dentro em pouco sulcávamos a grande corrente.

Não tardou muito o prático, por cujo intermédio tivemos notícia da estrondosa manifestação com que os habitantes da cidade americana aguardavam a chegada do cruzador brasileiro.

Bela surpresa essa! Cresceu o entusiasmo entre os novéis oficiais.

Entramos. Durante o nosso trajeto pelo Mississipi a ansiedade a bordo tocou o seu auge. Queríamos, todos a um tempo, avistar as embarcações que, dizia-se, vinham nos receber.

O autor destas simples notas de viagem, que admira os Estados Unidos como uma segunda pátria, porque ali moram juntas todas as liberdades e florescem prodigiosamente todas as nobres idéias civilizadas, de braços cruzados estendia o olhar cheio de admiração, cheio de deslumbramento por cima das extensas planícies das margens do grande rio.

O pôr-do-sol entre a neblina que cobria os horizontes fazia lembrar as páginas de Chateaubriand na sua Voyage en Amérique, páginas esculturais e cheias da comovida nostalgia dos que se vão da pátria...

Quanta verdade nas suntuosas descrições do poeta! Quanta poesia naquelas paragens desertas da foz do Mississipi – Saara de neve estendendo-se a perder de vista nos horizontes sem fim! Que de maravilhas ocultavam-se por trás daquelas planícies, lá onde o olhar não atingia!

Eram ave-marias. Lembrei-me do Brasil, dos sertões de minha terra natal, da torrezinha branca do Senhor do Bonfim badalando o terço das almas, justamente aquela hora, quando as boiadas recolhiam mugindo, pesadas e melancólicas...

Ave-marias!... Mesmo quando não se é crente, àquela hora da tarde o coração fica cheio de não sei que terna e piedosa unção mística...

Fundeamos no ponto em que o rio se divide em dois braços ou pequenos confluentes, e aí passamos a noite inteira, essa longa e tristíssima noite de inverno.

Frio de rachar. As águas do rio, pardas e barrentas, estavam quase geladas.

As margens do Mississipi, em vários pontos, são, no inverno, verdadeiras planícies, onde apenas medra a erva rasteira. À distancia, pobre alma perdida no descampado, ergue-se às vezes uma árvore muito esguia, como um fantasma de braços abertos para o céu. De quando em quando atravessa a solidão uma ave desconhecida batendo as asas, como um agouro.

Noutros lugares, porém, vêem-se rebanhos pastando silenciosamente, plantações verdejantes, casas de campo, postes de correio, em cujas portas destacam-se em caracteres maiúsculos as palavras – Post office.

O povo parece viver satisfeito no meio de suas plantações e de seu gado, entregue à cultura e à criação.

Nuvens de mosquitos atordoaram-nos toda a noite. – “Caramba! exclamava o barbeiro de bordo, um estimável espanhol que trazíamos do Rio de Janeiro. Caramba! Mosquitos por mosquitos me gusta más los del Brasil!” E tinha razão o nosso companheiro. Os mosquitos do Mississipi são muito capazes de dar cabo dum pobre homem. E que medonha orquestração nos ouvidos da gente!

Felizmente na manhã do dia seguinte levantamos ferro.

O navio estava completamente pronto a fazer sua entrada em Nova Orleans. Durante quase toda a noite a guarnição ocupara-se em colher cabos, esfregar a amurada e baldear o costado.

Como passatempo líamos os jornais que o prático trouxera, os quais noticiavam a recepção popular e oficial que se nos preparava.

Dois iates a vapor – o Cora e o Pansy – propriedade de Mr. Morris, largariam de Nova Orleans a nosso encontro, embandeirados, com bandas de música, comissões de senhoras, representantes do comércio e de outras classes sociais.

Ou fosse a natural afinidade que existe entre as duas nações americanas, ou fosse o fato de ir a bordo do cruzador brasileiro um representante da família imperial do Brasil, o certo é que durante nossa travessia da foz do Mississipi à cidade fomos constantemente saudados de ambas as margens do rio a tiros de espingarda e a lenços que nos acenavam de longe.

E o Almirante seguia devagar, alvo de mil olhares curiosos.

Ao meio-dia ouvimos as notas de uma música alegre que se aproximava, e em breve surgiram numa curva do rio os dois magníficos iates – o Cora e o Pansy – apinhados de gente, enfeitados de galhardetes de cores variadas, em cujos mastros tremulavam as duas bandeiras amigas.

De ambos os lados, no cruzador e nos iates, hurras confundiam-se no ar.

Em viva efusão de inexprimível júbilo patriótico estreitavam-se as duas grandes potências da América; a mesma brisa balouçava simultaneamente os dois gloriosos pavilhões.

A gente do Barroso subiu às vergas acelerada, e acenando com os lenços e os bonés, saudava com vivas estrepitosas e delirantes aclamações aos Estados Unidos, ao mesmo tempo que das duas embarcações partiam ruidosas manifestações ao Brasil.

Fardada em segundo uniforme, espada e dragonas, a oficialidade do cruzador brasileiro, em pé no tombadilho, vivamente comovida, descobria-se a todo instante risonha e feliz.

Sentíamos a falta de uma banda de música bem organizada, que naquele momento, verdadeiramente solene, entoasse o hino da república a bordo.

Passado o primeiro momento de delírio, aproximaram-se os dois iates que nos acompanhavam e o cruzador diminuiu a marcha. Ficamos borda a borda. Num instante toda aquela gente, que vinha nos vaporezinhos, passou para o Barroso.

Houve um silêncio respeitoso de parte a parte e começaram os abraços.

O cônsul-geral brasileiro, sr. dr. Salvador de Mendonça, tão conhecido entre nós por seu talento e por sua ilustração, como homem de letras e diplomata, juntamente com Mr. Eustis, cônsul em Nova Orleans, foram recebidos no portaló pelo comandante e oficiais com todas as honras que lhes eram devidas. Seguiram-se os representantes da imprensa, do comércio, etc.

Conduzidos à câmara, desde logo estabeleceu-se entre brasileiros e americanos uma camaradagem franca, uma corrente comunicativa de afabilidades, como se já fôssemos conhecidos velhos. As taças de champanha chocavam-se, vivas sucediam-se, levantavam-se toasts às duas nações, trocavam-se os mais espontâneos cumprimentos.

A viagem continuou ao som da música do Cora e do Pansy.

Às 4 horas da tarde largamos ferro defronte da antiga capital da Luisiana.