No País dos Ianques/VII
Nova Orleans é, talvez, a cidade mais importante do sul dos Estados Unidos.
Nosso primeiro cuidado, como era natural, foi desembarcar, “ir à terra”, cear bem e dormir tranqüilamente um sono bom e reparador. Não nos faltariam esplêndidos hotéis e magníficos rooms, onde pudéssemos, à vontade, descansar dos trabalhos da viagem.
Nossa demora devia prolongar-se aí mais do que em qualquer outro ponto, por causa da Exposição e as instâncias dos habitantes da cidade, que nos preparavam deliciosas surpresas.
Tínhamos tempo bastante para ver Nova Orleans, para observar os costumes americanos e fazer um juízo mais ou menos aproximado daquele belo povo.
O porto estava atulhado de barcas de comércio – vastas embarcações de dois e três pavimentos, duas e três chaminés negras a deitar fumaça numa atividade constante, rodas na popa, muito mais amplas que as nossas barcas Ferry do Rio de Janeiro. Atopetadas de sacas de algodão e outros gêneros do país, esperavam o momento preciso e regulamentar de se fazerem ao largo.
Enquanto esperávamos, vivamente ansiosos, o escaler que nos devia conduzir ao cais, assestávamos o óculo para a cidade quase silenciosa àquela hora, e cujas ruas não tardaríamos a conhecer. Acendiam-se os primeiros bicos de gás. Ao longe, nalguma igreja remota, badalava um sino triste. Já não se ouvia quase o bruaá quotidiano. Numerosas embarcações cruzavam-se no rio. Ouvíamos guinchos de locomotivas e o surdo ruído de carros que ainda labutavam.
Alguns oficiais deixaram-se ficar aguardando o dia imediato para mais comodamente satisfazerem sua curiosidade de viajantes em terra estrangeira.
Era fim de inverno. Ameaçava chover. O frio continuava bastante forte ainda e os camarotes do Barroso ofereciam, nessas condições, agasalho confortável aos mais friorentos.
Na manhã seguinte, grupos de oficiais brasileiros, uns fardados, outros à paisana, percorriam Nova Orleans.
O St. Charles Hotel, um dos melhores estabelecimentos da cidade, e o Royal Hotel – primeiro em luxo e ornamentação – eram procurados avidamente.
Os jornais davam notícias circunstanciadas de nossa chegada e anunciavam festas em homenagem ao Brasil.
Uma vez instalados nos hotéis, cada um de nós em seu vasto aposento, onde nada faltava, tão diferente dos estreitos camarotes de bordo, dividimo-nos em grupos.
Quanto a mim, o meu primeiro cuidado foi munir-me de um guia da cidade, espécie de pocket-book muito cômodo, registrando indicações úteis de estabelecimentos e lugares principais.
Meu quarto ficava no segundo andar do St. Charles Hotel com frente para a rua do mesmo nome – uma saleta mobiliada com a máxima sobriedade, sem luxuosas decorações, contendo apenas os móveis indispensáveis a um rapaz solteiro, e o fogão a um canto.
Depois de magnífico banho morno em bacia de mármore (perdoem-se-me estas inocentes confidências, aliás de bom gosto) seguido de um valente almoço de ostras cruas, as melhores que eu tenho provado, regadas a Sauterne, mastigando (é o termo, porque não sou lá muito admirador de charutos) mastigando um charuto, que não sei bem se era de Havana, saí a fazer meu primeiro passeio, minha promenade matinal, começando pela Canal Street, a rua mais importante de Nova Orleans, que a divide em dois grandes bairros – o francês e o espanhol.
No cruzamento das ruas de St. Charles e Canal erguia-se a estátua de Clay. É esse o ponto principal da cidade e o de maior movimento nos dias úteis.
Parei defronte do monumento e consultei meu alcorão, quero dizer meu guia manual.
“Estátua de Clay – Inaugurada solenemente no dia 12 de abril de 1860. Joel T. Harl, de Kentucky, o artista que deu forma e proporções à estátua, assistiu ao ato. O orador oficial foi Wen H. Hent.”
Maldito laconismo! Pouco adiantei com as explicações do livrinho.
A estátua é de bronze, sobre pedestal de mármore, e mede, aproximadamente, quinze pés ingleses de altura.
– Continuam as estátuas! – exclamei recordando as que vira em Barbados e Jamaica. Felizmente até agora não vira a de nenhum monarca. Veio-me então à memória aquela colossal massa de bronze que se ergue no Largo do Rocio, no Rio de Janeiro, em forma de um monarca escanchado num belo cavalo.
Tive pena de não ser aquele bronze aproveitado para outra coisa mais digna e útil.
– Que diabo! Aquilo é uma página de história pátria, refleti. – E continuei o meu tour.
A Canal Street é o centro comercial de Nova Orleans, é a Rua do Ouvidor daquela cidade, sem os grandes inconvenientes do nosso querido beco.
Larga, bastante espaçosa e comprida, oferece trânsitos especiais para a população, para trens, bondes e carruagens.
As ruas, na maior parte, são mal calçadas, principalmente para o interior da cidade.
É, sem dúvida, admirável semelhante incúria em se tratando de americanos do norte, entretanto, é uma verdade que não deve ser esquecida, para consolo de nossas municipalidades.
Na Canal se acham os melhores e mais sólidos edifícios, as mais fortes casas comerciais, os mais importantes armazéns da cidade, cafés, restaurantes, clubes, etc.
Convenci-me desde logo que os principais produtos industriais de exportação eram – açúcar e algodão, como bem presumira ao desembarcar, no cais, onde era enorme a acumulação de fardos desses dois gêneros.
De vitrina em vitrina, observando sempre, escrupulosamente, curiosamente, à cata de novidades estrangeiras, posso afirmar que nada vi, surpreendente... Ah! sim, vi umas graciosas caixeiras acudirem pressurosas e desenvoltas, com o desembaraço próprio de sua raça, aos compradores, coisa aliás muito simples, muitíssimo natural, mas não no Brasil, onde as senhoras estão eternamente proibidas de competir com o outro sexo na vida pública.
Parece-me que só neste país ainda não se observa nem se permite esse costume tão natural, tão próprio, tão eficaz mesmo, das senhoras pobres empregarem-se no comércio a retalho. Na Inglaterra, em França, na Alemanha, na Itália e nos Estados Unidos é hábito velho, ao que me consta, as senhoras servirem nos balcões, e é de notar que cumprem seus deveres com assombrosa perícia. Às nove horas da manhã, que digo eu! às seis horas, depois de ligeira refeição, encaminham-se para o trabalho quotidiano, felizes, satisfeitas, envolvidas em grossas capas de lã no inverno, a bolsa de um lado, sem sequer fazerem-se acompanhar. Vão direitinhas de casa para a loja ou escritório, sem que ninguém lhes dirija uma pilhéria, sem que ninguém as desrespeite, e, à noite, recolhem-se da mesma forma, sempre alegres, transpirando saúde, a face rubra.
Muitas vezes saem das lojas, mudam a toilette, fazem seu penteado, perfeitamente dispostas, e daí a pouco estão nos bailes, nos concertos, nos teatros.
Rara a casa de modas, o armarinho, a livraria onde se não encontra uma senhora exercendo as funções de simples caixeira, ou como guarda-livros, silenciosa na sua carteira, escriturando cuidadosamente o Caixa.
Em alguns estabelecimentos públicos, no Correio, por exemplo, grande parte do serviço é feito por senhoras. Esse edifício, digamo-lo de passagem, na Rua Canal, é de aparência extraordinariamente simples e desgraciosa. O serviço, porém, como em toda estação americana, é correto e sem demora.
Indivíduos de muitas nacionalidades acotovelam-se na grande rua.
Em Nova Orleans, como em quase toda a Luisiana, fala-se mais o francês que outro idioma qualquer, não sendo raro ouvirem-se negociantes. mesmo senhoras de elevada hierarquia falar, embora mediocremente, o espanhol.
Havia chegado o momento fatal, inevitável, de nos exibirmos também em língua alheia.
Pouco a pouco, nos íamos familiarizando com a população e com o idioma desse adorável canto da terra que o Mississipi banha.
O dia seguinte ao de nossa chegada a Nova Orleans (31 de março) estava designado para o encerramento da Exposição das Três Américas. Avisados desta solenidade, devíamos comparecer a ela em grande uniforme, incorporados.
Foi um dia essencialmente brasileiro esse. Nos convites para a festividade lia-se esta impagável gentileza: Brazilian day.
Todas as atenções convergiam para o Almirante Barroso (brazilian man-of-war).
O palácio da Exposição estava situado a alguns quilômetros fora da cidade, num de seus pontos mais pitorescos, o Upper City Park, à margem do Mississipi – largo edifício vistosamente adornado e do alto do qual se avistava toda a cidade e imediações.
Na manhã desse dia, por sinal chuvoso e coberto de nevoeiro, embarcamos em trem especial, que nos fora destinado pelo presidente da Exposição, Mr. Ed. Richardson, um ianque muito amável, todo cortesia, sempre com um belo e espontâneo sorriso a cativar a gente, correto sempre, irrepreensivelmente correto.
Embarcamos na Canal Street, defronte do Pickwick Club, em companhia de muitos oficiais da Guarda Nacional, de Mr. Richardson e de oficiais da corveta francesa l’Étoile, que se achava no porto de Nova Orleans, dos cônsules e outras sumidades do país.
O trem abalou como um raio, todo enfeitado de bandeirolas americanas, brasileiras e doutras nações, ao som de músicas e aclamações delirantes, rasgando, na sua marcha vertiginosa, o nevoeiro que caía sem cessar penetrando os vagões escancarados ao ar frio da manhã, soltando guinchos medonhos...
Durante o trajeto não me cansei de observar os sítios que o trem atravessava.
De um lado e doutro da linha estendiam-se vastas plantações de algodoeiros desfolhados pelo rigor do inverno, amontoados de neve, imóveis, fantasmas brancos no silêncio infinito dos descampados; casas de campo deliciosas para se passar o verão, trancadas à neve, muito brancas e desoladas, riam, como saudando a nossa passagem, e desapareciam rapidamente no horizonte esfumado.
É de ver a simplicidade reunida à graça que apresentam essas habitações: ver uma é ver cem, tal a uniformidade de sua arquitetura. Em geral são de madeira, pintadas de branco e cinzento, com seu terraço para as cálidas noites de verão, jardim e horta arranjados com admirável cuidado e bom gosto.
Absorvido completamente pelo aspecto variado da paisagem, sem prestar atenção ao círculo ruidoso dos colegas, eu (lembro-me bem) formava planos de vida sossegada, nalgum eremitério entre a eterna frescura das plantas e o amor eterno duma criatura querida.
Invejava os simples, os sertanejos, os homens do campo – esses para quem a vida corre sempre calma, porque seu coração não conhece outro amor senão o da esposa e o dos filhos, esses de quem Boileau dizia:
Heureux est le mortel qui du mond ignoré Vit content de soi même en un coin retiré...
E eu me transportava outra vez ao Brasil, outra vez eu tinha a nostalgia da pátria, a saudade vaga e inexplicável de minha terra natal.
Parecerá uma fantasia de poeta adolescente isto que acabo de dizer, mas é a verdade, a expressão sincera do que eu sentia ao atravessar a região que ia ter lá, ao palácio da Exposição.
A tristeza da neve comunicava-se ao meu espírito imprimindo nele não sei que despretensiosas ambições de silêncio e recolhimento. Alguém já procurou explicar a influência que exerce o estado higrométrico da atmosfera no estado psicológico do indivíduo.
Eu de mim só sei que o patriotismo, longe da pátria, duplica.
E fechemos esta espécie de parêntesis.
Uma comissão de cavalheiros, competentemente encasacados, veio receber-nos ao desembarque.
Entramos. Nossa entrada foi verdadeiramente triunfal.
Dentro e fora do edifício era grande a agitação. Ondas de povo entravam e saíam percorrendo o pitoresco Upper City Park.
Felizmente “levantou o tempo”, como se costuma dizer.
Ao assomar à porta do grande salão de honra o primeiro oficial brasileiro, o comandante do Barroso, ao lado do cônsul e do presidente da Exposição, a orquestra de professores, brilhantemente organizada, rompeu lá dentro o hino nacional americano (não conheciam o nosso hino aliás tão vulgarizado), os espectadores que enchiam o vasto recinto ergueram-se, e uma salva estrepitosa de palmas acolheu o resto da oficialidade.
Houve um momento de verdadeiro delírio, em que todos batiam palmas sem interrupção, levantando vivas ao Brasil.
Serenado o entusiasmo, um entusiasmo indescritível, apoplético, tomou a palavra Mr. Richardson, que proferiu o discurso de encerramento, saudando a armada brasileira.
Seguiu-se na tribuna o orador oficial, que, num improviso eloqüentíssimo, patenteou a necessidade de uma união entre todas as nações americanas, desenvolvendo largamente as vantagens que daí proveriam a todas elas.
Falou também o governador da Luisiana, e, finalmente, os srs. Salvador de Mendonça e Saldanha da Gama, cujas palavras foram cobertas dos mais significativos aplausos.
Terminada a cerimônia oratória, foi-nos franqueado o edifício da Exposição, que percorremos examinando com interesse os diferentes pavilhões industriais.
O Brasil – é triste dizê-lo – fizera-se representar de modo bem insignificante.
Brilharíamos pela ausência, se o Governo não tivesse a lembrança de mandar o Almirante Barroso.
Amostras de madeiras, café em grão, fumo, artigos de borracha, constituíam os principais produtos brasileiros expostos à curiosidade dos visitantes de quase todas as partes do mundo civilizado. O pavilhão do Brasil deixava-se ficar em plano inferior aos das outras nações, como se fôssemos um pobre país, cujos produtos não valessem a pena de ser expostos num certame internacional!
Daí, talvez, o assombro dos americanos ao verem o Almirante Barroso, esse esplêndido vaso de guerra de envergadura possante, capaz de resistir aos mais fortes temporais e que eles, os estrangeiros, duvidavam fosse obra nossa.
– Como? Pois no Brasil também se fabricam navios de guerra? Está muito adiantado o Brasil!
E repetiam com um ar de dúvida e de ironia medindo de alto a baixo e de popa à proa o majestoso cruzador, que balouçava de leve sobre o Mississipi:
– Está muito adiantado o Brasil!
Entretanto o México, a América Central e as repúblicas sul-americanas, sem os recursos invejáveis da grande nação, sobressaíam admiravelmente. O pavilhão do México, sobretudo, desafiava a maior parte dos outros não só em abundância de artigos, mas, principalmente, em beleza e bom gosto, em elegância e riqueza.
Escusado, parece, falar do importante lugar que coube aos Estados Unidos. Que profusão de máquinas e instrumentos industriais de invenção puramente americana! Ali mesmo, à vista do observador, fabricavam-se os mais curiosos objetos de fantasia e de uso doméstico; o linho, o algodão, a seda – eram tecidos rapidamente aos olhos de todos.
Imagine-se agora o ruído, a algazarra, a movimentação que devia reinar ali dentro daquele imenso edifício, certamente muito longo de ser comparado aos palácios de exposições universais, mas ainda assim um dos maiores que se tem levantado nesse gênero.
Para dar uma idéia de suas dimensões – não o chamaremos vaticano da indústria para não exagerar – basta dizer que o salão de música – music-hall – acomodava 11.000 pessoas, inclusive uma vasta área para 600 figuras.
Impossível descrever as amabilidades, as gentilezas que nos foram prodigalizadas largamente pelas adoráveis americanas de Nova Orleans nessa festa democrática de confraternização internacional; recordar as frases deliciosas, os galanteios irresistíveis...
O que posso afirmar é que o brazilian day há de perdurar por muito tempo no coração daqueles que tiveram a felicidade de assistir essa belíssima festa.
Dias depois voltei ao palácio da Exposição, sozinho, como simples curioso que não tivera tempo bastante para examinar tudo no pequeno espaço de doze horas.
Nada mais restava senão o esqueleto nu do edifício em via de demolição. Todos os objetos tinham sido retirados com assombrosa rapidez. Operários em mangas de camisa martelavam grandes caixões, assobiando monotonamente, enquanto outros carregavam pesados volumes contendo os últimos espécimens da indústria americana.
Voltei imediatamente com um ar compungido de quem acaba de acompanhar um enterro, lamentando o tempo perdido e exclamando de mim para comigo:
– Ah! americanos duma figa, sois um povo excepcional!
Agora uma pergunta ingênua: Por que é que o Brasil, com os numerosos recursos que tem à mão, timbra em ocupar lugar secundário em quase todas as Exposições a que concorre?
Indiferença, talvez, simples indiferença de nossos governos.
Na célebre Exposição de Filadélfia não sabíamos à última hora como e onde acomodar os produtos deste país, em conseqüência de não ter o governo mandado construir um pavilhão especial.
Contentamo-nos em enviar objetos bastante conhecidos, não fazemos seleção na escolha deles, não nos importa o modo como devam ser acondicionados.
Na Exposição de Viena ainda o Brasil teve de ocupar lugar pouco lisonjeiro, e se alguns de seus produtos principais tiveram a felicidade de ser premiados foi isso devido, não ao governo, mas tão-somente a esforços de muitos negociantes do Rio de Janeiro e do Pará.
Anuncia-se para o ano vindouro uma Universal Great Exhibition, nos Estados Unidos, cujo sucesso irá rivalizar, talvez, com o da Exposição Universal realizada há meses em Paris e notável pela colossal e tão célebre Torre Eiffel. Nenhuma razão assiste para que a grande nação da América do Sul, o Brasil, não se faça representar com todo o brilho de sua incontestável riqueza.
Agora que somos república, torna-se duplamente preciso que patenteemos ao mundo inteiro a infinita variedade de nossas produções agrícolas, a opulência invejável da flora brasileira e da indústria já bastante adiantada deste belíssimo país, cuja natureza extasiou Humboldt, Agassiz e tantos outros sábios da Europa.
Se cada Estado souber cumprir seu dever não poupando esforços para esse nobilíssimo fim, certo desta vez não teremos que corar perante as outras nações como nos tempos do anacrônico império do sr. d. Pedro II.