Numa e a Ninfa/IX
Entre nós, muita gente tem mania de caboclo e havia na cidade uma senhora idosa, D. Florinda Seixas, que cultivava essa mania com muito carinho e constância. Desde anos que a sua casa vivia cheia deles; e, ao surgir a candidatura Bentes, D. Florinda aderiu a ela com os seus caboclos hirsutos. Acontecia também que Bentes tinha um tio, já falecido, mais ou menos notável; e D. Florinda muito naturalmente juntou a sua mania indígena à admiração que sempre professou pela memória do tio de Bentes, o almirante Constâncio. Fundou, consequentemente, uma sociedade - Sociedade Comemorativa do Falecimento do Almirante Constâncio. O principal fim da sociedade dizia-lhe o nome; mas tinha outros, entre os quais, o do ensino do guarani e o das aclamações às pessoas de destaque.
D. Florinda, tendo fundado associação tão útil encontrou dos poderes públicos a maior boa vontade . Foi subvencionada e, graças ao jeito que tinha para agradar, todos a julgaram muito útil em sanar as dificuldades e procuravam-na, aderindo à sua proveitosa associação.
A velha senhora, antes mesmo da fundação, já tinha demonstrado os seus préstimos e, não havia noite em que, com um, dois, ou mais caboclos, não aparecesse nas casas de Bentes ou do Bastos.
Corria que os caboclos eram duvidosos; que eram desertores de regimentos do exército, estacionados no Paraná e Rio Grande do Sul; o certo é que, como caboclos, eles se portavam nas visitas que faziam com a preceptora.
Homens da selva, pouco habituados às regras e preceitos das salas, esses jovens hurons praticavam em casas tão respeitáveis uma única inconveniência: embriagavam-se de cair e caíam pelos jardins, dormiam familiarmente com o rosto para o céu estrelado, como filhos das brenhas que eram.
Não se diga que D. Florinda não empregasse os seus esforços de domadora ou civilizadora para impedir tão indecente caboclismo. Ela era vista a dizer no "buffet":
— Tupaná penê cotê!
Os caboclos respondiam, amuados como crianças teimosas:
— Quelo bebê! Quelo bebê!
E sacudiam a juba de cima dos olhos, das bordas dos copos e os bebiam às dúzias cheios de cerveja. Gostavam mais de "whisky".
D. Florinda, porém, não desanimava de levá-los às recepções de Bentes e de Bastos, dar-lhe hábitos civilizados; e ambos, muito republicanos e brasileiros, não se podiam negar a receber tão autênticos e autotônicos representantes da pátria. Os hurons, porém, embriagavam-se lamentavelmente.
A parcial incompreensão dos seus atos e desígnios, levou D. Florinda a criar uma aula pública de guarani. Era seu intuito ensiná-lo aos jornalistas, para que, conversando estes com os tupinambás, ficassem certos do seu adiantamento mental e da ciência que tinham armazenado. Os poderes públicos, graças à influência de Bentes, logo viram a grandeza do intento de D. Florinda e deram-lhe a subvenção.
D. Florinda tinha muitos caboclos e sempre aumentavam conforme a sua fortuna. Dentre todos, porém, ela estimava sobremodo um chamado Tupini. Era um índio alto com uma cabeleira de apóstolo; calçava com dificuldade as botinas, e os seus pés debaixo delas eram só ossos. Tinha as pernas arqueadas e o caiapó bem parecia ser familiar à montaria do cavalo. Tupini veio assistir à lição ao lado de D. Florinda. Começou a professora por asseverar que o guarani era a língua mais antiga, mais bela do mundo; e exemplificou:
— Meus senhores, vejam só esta frase: amané saçu enacá pinaié . Sabem o que quer dizer?
O auditório ficou suspenso e D. Florinda explicou:
— O peixe vive no mar.
— Tá eado - gritou Tupini.
D. Florinda voltou-se para o índio e respondeu em guarani:
— Puxiguera che aicó.
— Tá eado - gritou Tupini.
Os circunstantes entreolhavam-se, esperando pela continuação da lição.
— Não é só nessa frase que a beleza da língua se revela. Temos outra: meu mameara cê necê - que quer dizer: minha noiva é bonita.
Tupini disse devagar:
— Tá eado.
— Tupini! Tupini! Não queira emendar-me!... Esta é a língua de outra tribo. Xerêrê corê!
— Tá eado.
Os discípulos foram um a um saindo e a lição não foi adiante naquele dia.
Aproveitando os seus conhecimentos do guarani e a malta de caboclos que tinha, cansada de simples recepções de pessoas importantes no momento, D. Florinda fundou a sociedade destinada a cultuar a memória do almirante Constâncio, tio de Bentes.
Ainda dessa vez, ela ia ao encontro de uma corrente popular. Desde que a fortuna de Bentes começara a brilhar, a lembrança de seu tio veio de novo a certas pessoas já totalmente esquecidas. Nos dias de finados ou no do aniversário da morte de Constâncio, o seu túmulo ficava coberto de cartões de visitas, registro piedoso dos seus amigos, e dos do sobrinho também, sempre lembrados do almirante.
No aniversário do falecimento do almirante Constâncio, D. Florinda, após os trabalhos preliminares e obter auxílio dos poderes públicos organizou o préstito mais votivo e comemorativo dentre os muitos que tem visto o Rio de Janeiro.
As tribos dos Munducurus, Caiapós, Omaguas, Pataxós Kaingangs, Tamoios, Carijós, Charruas, Xavantes e outras apareceram e foram representadas por comissões vestidas a caráter tendo os respectivos estandartes: folhas de palmeiras, de bananeiras, remos de canoas, capivaras empalhadas; e, ao centro, num caminhão, reclinado sob um bananal verdejante, Tupini, de cocar e enduape, arco e flecha ao lado, pernas nuas, coxas nuas, peito nu e braços nus - o rei da floresta brasileira, que marchava para o túmulo do almirante inesquecível.
Músicas militares, de espaço em espaço, tocavam elegias; os lampiões de gás semi acesos, cobertos de crepe, davam um ar fúnebre às ruas; e D. Florinda, com a sua choregiada de caboclos entoava nos intervalos um fúnebre hino tupi.
E jo mi rean
Maenram pico?
E jo tenan
Apu ma nico
Ao acabar a quadra, todos, a uma só voz, repetiam:
Maenran pico?
Maeran pico?
Pela turba passava um estremecimento religioso e trombetas fanhosas e agudas estridulavam sinistramente. E continuavam:
Eguapi napê...
Maenran pico?
Eguapi tenon!
Aguapi ma nico
Mal terminavam de cantar a quadra, o coro repetia em longa e profunda toada:
Maenran pico
Maenran pico
De novo as trombetas guinchavam e o préstito caminhava lentamente, em direção ao cemitério. Houve quem dissesse que o hino de D. Florinda era uma canção erótica de origem paraguaia; entretanto, esse detalhe não foi notado e os adeptos de Bentes muito prezaram tão bela homenagem à memória de seu tio.
Esse aspecto caboclo não foi o único da singular manifestação fúnebre que D. Florinda organizou. Os caboclos, convém dizer, ao cantar - E jo mi rean - dançavam, sacudiam a juba e faziam roda ao chegar o coro.
Além desse aspecto, houve outros que não iam sendo mencionados. Havia associações de estivadores, de operários, de funcionários, de militares, de senhoras que tomaram parte com seus estandartes de seda, além dos clubes e cordões carnavalescos. Inácio da Costa acompanhou o préstito a cavalo, um cavalo do regimento policial. Ele vestido particularmente de verde e amarelo e o cavalo ajaezado com florões desses crótons que antigamente chamavam - "Independência".
Trazia, à guisa de lança, um estandarte em que se lia na bandeirola: "À bala".
Formou-se essa espécie de marcha solene, sob as vistas atentas da polícia; e desfilou vagarosa, ao som das músicas, cânticos e trombetas, pela Avenida em fora.
Na cauda, como representação do Futuro, condicionado pelo Passado e contido no Presente, grupos de crianças que, no descanso do préstito, faziam "roda" e cantavam candidamente:
Ciranda, cirandinha!
Vamos todos cirandar!
Vamos dar a meia volta,
Volta e meia vamos dar!
O alto simbolismo filosófico e patriótico do préstito foi muito gabado pelas pessoas simpáticas à causa de Bentes, sobretudo pelo Diário Mercantil , que viu no fato um ressurgimento do sentimento republicano e nacional. Foi gratuito.
O Rio de Janeiro todo moveu-se para ver o préstito fúnebre; mas era curioso que muitos não o vissem compungidos e não encontrassem nada nele que lhes lembrasse a homenagem que pretendia prestar.
Inácio Costa, com o seu - "À bala" - apoiado em um dos estribos, do alto da sela, olhava com severidade patriótica para as moças que se espantavam com seu vestuário bicolor; e, só na altura do Catete, pode desfazer a carranca, quando cumprimentou sorridente Benevenuto, que via aquele desfile com um assombro de idiota chumbado no rosto.
Pelas bordas do préstito, alguns entusiastas e mais membros da sociedade distribuíam em retângulos de papel os seguintes versos:
AO ALMIRANTE CONSTÂNCIO
Esta é a ditosa pátria minha amada
Camões. Canto III XXI
Oh! Pátria! Lugar em que nascemos.
Onde temos amor e amizades!
Escuta o nosso preito de saudades
Daquele que faz que nos juntemos!
Nele as vontades portentosas
Dos fortes patriotas se juntaram
E com resplendor nele brilharam
do passado as lembranças majestosas.
Que o seu nome seja sempre santo
Sob o lindo manto do cruzeiro.
Ele que foi grande pregoeiro
Da República - termo sacrossanto!
Inácio Costa
Benevenuto leu e releu os maravilhosos versos de Inácio Costa e pasmou. Será possível que aquilo tudo se estivesse passando no Rio de Janeiro? Como é que tanta gente tinha de uma hora para outra mudado tão inteiramente de mentalidade?
O préstito continuava a passar lentamente. D. Florinda com a sua choregiada entoava a canção equívoca do Paraguai e as trombetas, a longos intervalos, faziam: Fué! fon! Fué! fon!
Xandu passou no desfile, sentado sobre o selote de uma "charrua-tílburi", que governava com a naturalidade e elegância de quem guia um "tonneau" num parque de luxo. Um popular cochichou a outro:
— Por que. ao menos, ele não consertou as rodas?
As rodas cambaias da "charrua", tão necessárias ao seu serviço normal, intrigavam os habitantes da cidade, estranhos aos trabalhos agrícolas. O préstito lá se foi... Menran pico... fué! fon!... Maenran pico... fué! fon!
Benevenuto deixou o Catete e dirigiu-se vagarosamente ao encontro de Edgarda. Ela lhe havia escrito cheia de desolação. A situação se obscurecia e pedia-lhe o seu auxílio com mais insistência. Verdadeiramente amava-a, tinha necessidade dela na sua vida e no seu pensamento; mas, sempre lhe foi difícil compreender por que razão íntima Edgarda teimava em fazer figurar o marido como um orador ilustrado. Por meio do marido, parecia, ela dava expansão à sua necessidade de domínio; era ingênuo, porém, fazê-lo. porquanto Numa com a sua irremediável preguiça mental nem ao menos os autores que citava lia e deles compreendia alguma coisa. A sua atonia de inteligência requeria uma artificial alimentação intelectual e esta ainda não havia sido inventada.
Benevenuto era moço de trinta e poucos anos, alto e tinha o olhar miúdo e penetrante. O seu parentesco com a esposa de Numa era por parte da mãe dele, de forma que, por temperamento e pelo sangue, era completamente estranho às competências políticas dos Cogominhos.
Pudera bem ter-se casado com a prima; teria evitado aquele amor às furtadelas; mas não só, quando solteira, passou por junto dela e não a notou, como também percebia que, se o houvesse feito, não teria por ela a ternura de hoje. Não seria a mesma; o casamento tirou-lhe ou lhe deu alguma coisa, e isso que lhe tirou ou lhe deu, é que o atraía para ela.
De há muito quisera dizer-lhe que Numa não podia por muito tempo representar o papel; que era necessário que ficasse na fama; que não forçasse a sagacidade dos outros? mas vieram essas atrapalhações políticas e o orador do bando de Neves tinha que se manifestar de quando em quando.
Demais, com os absurdos que Bentes e os seus avançavam, o trabalho de justificá-los forçava de tal forma a inteligência que era bem preciso uma mentalidade totalmente diferente da humanidade para defender as proposições dos partidários do general com alguma vantagem.
As inteligências normais tinham até pudor diante delas mesmas, vexadas em sustentar as tolices que energúmenos berravam e escreviam por conta de Bentes.
Benevenuto vinha a pé com as mãos cruzadas às costas, agarrando a bengala; tinha a cabeça baixa e poucas vezes olhou o mar. No largo da Lapa, esperando o bonde, encontrou Mme. Forfaible e a sua amiguinha.
— Oh! Doutor! Muito bonito! Gostou do préstito?
— Estava bom.
— Gostei muito - continuou Mme. Forfaible. Aquele caboclo estava muito bom... O que é que representa, Maci?
A amiguinha respondeu com presteza:
— O rei da floresta brasileira. Gostei muito das crianças...
— Os cantos, Doutor, não reparou? - são muito bonitos.
Benevenuto pensou um instante que todas as nossas festas tendem para o carnaval e que aquelas damas falavam da grotesca panatenéia fúnebre, do préstito em homenagem a um morto, com o mesmo "elan" com que falariam das cavalgadas dos clubes carnavalescos. Mme. Forfaible continuou com volubilidade:
— Deixei Manoel dormindo... Não podia deixar de ver...
— Seu marido ainda está na comissão?
— Está... Mas está vendo se arranja outra coisa...
— Não tem se dado bem?
— Tem... Mas... É preciso coisa melhor...
— Naturalmente.
— Lá na terra dele, falam muito em ele ser presidente do Estado... Eu não gosto muito... Deixar o Rio de Janeiro, ir para o mato...
— Não é mato, minha senhora.
— Qual! Não acredito! Por mais que me digam que aquilo lá tem ruas, tem teatros, famílias, não sei por que não admito. Contudo, se fizerem muito gosto, nós iremos.
Mme. Foirfable e a sua amiguinha tomaram o bonde, Benevenuto acompanhou-as com o olhar, pensando nas causas que tinham determinado esse despertar, em tantos generais e coronéis, exímias capacidades políticas; e também nas que tinham provocado os próceres lembrarem-se deles assim de uma hora para outra.
Encaminhou-se para o seu destino, sempre a pé e vagarosamente.
Chegou à travessa. Entrou. Na sala, a mãe e a filha costuravam. As duas faziam a sua tarefa com resignação e cuidado. De onde em onde, uma delas deitava a cabeça, colocava de certo modo a costura e a examinava com alegria nos olhos. Um instante, Benevenuto julgou que ofendia com seu amor a miséria daquelas mulheres; afastou o pensamento, cumprimentou e entrou. Edgarda já estava lá e livre da "toilette" pública . Abraçaram-se muito e ela teve um gesto de choro. O primo quis afastar-lhe a emoção:
— Vieste cedo...
— Vim, meu amor, vim. Não viste o préstito? Numa e papai foram.
— Vi, mas não os vi lá.
— Foram ao cemitério. Fiquei só e vim.
— Mas que é que tens?
— Nada... Nada...
— Fala!
— Não sei... Um pressentimento...
— Que é?
— Não sei, Benevenuto; não sei. Está me parecendo que vão tomar o lugar de papai e de Numa.
— É possível, mas não compreendo esse teu desgosto. Se fossem empregos, se por isso a tua situação financeira fosse abalada, vá; mas continuas no mesmo; que te dá que o teu marido seja ou não deputado?
— É um desaforo! É um desaforo!
— Desaforo como? Essas funções são mesmo transitórias, tu sabes disso, minha filha.
— Mas... O que me aborrece é essa Anita, a mulher de Forfaible!
— Que tem ela?
— Quer fazer o marido governador.
— Ah! Ele é de Sepotuba?
— É... Não sabias?
— Ela acaba de dizer que tem lembrado muito o nome dele para presidir o Estado mas não sabia qual.
— Pois é verdade: são ela e o Salustiano que intrigam. Já o Macieira...
— Sê prudente, Edgarda. O teu orgulho te faz cega e apaixonada, o que vem a ser a mesma coisa. As eleições de governador ainda estão longe... Teu pai não se dá por achado... Faz o Forfaible senador agora, ele se contenta e vocês embrulham o Salustiano.
Sentada na borda da cama, a moça ficou pensando. A sua fisionomia abriu-se por fim num sorriso e disse:
— É verdade!... A Anita fica até contente... Tu és uma jóia.
E abraçaram-se e beijaram-se por um tempo perdido no mais absoluto silêncio.
Quando Benevenuto deixou Edgarda o dia ia adiantado e já na rua do Ouvidor estavam de volta os romeiros ao túmulo do almirante Constâncio.
Inácio Costa tinha ainda o seu traje verde e amarelo e na cabeça a esfera azul com estrelas de papel branco. Não trazia mais a terrível lança - "À bala" - mas continuava a distribuir os versos que trazia nas fundas algibeiras da vestimenta.
No Café do Rio, muitos como ele se juntaram. discutindo e sempre proclamando a salvação da República. Parecia que queriam voltar aos cruéis dias do florianismo. Na Avenida, da mesma forma, havia grupos de civis, discutindo com entusiasmo e era de supor que a excitação e a satisfação lhes tivessem vindo do brilho, da imponência e da majestade do préstito de D. Florinda, préstito que mostrou de que maneira Bentes era popular com os dotes do tio morto.
Benevenuto afastou-se cautelosamente daquele fervedouro de patriotas que ele não compreendia, por não querer julgá-los todos interessados e ambiciosos. Havia neles não sei quantas ilusões do poder do governo, da efetiva riqueza da pátria; havia neles tanta maldade, tanta intolerância em nome da República, que Benevenuto os evitava para nãos e irritar.
Sentia bem o vago da pátria, o misticismo da idéia, a sua força religiosa, e tinha medo que essa sobrevivência mesclada ao delírio republicano não desandasse em seringueira, em violência, em perseguições em nome de Bentes impassível e inerte.
De caminho para casa, viu no bonde que descia o senador Macieira. O homem vinha triste e certamente a tristeza lhe trouxeram as cogitações políticas.
De fato, Macieira tinha jogado mal a cartada. A sua resignação do cargo dera azo a que os seus adversários lançassem a candidatura de Contreiras. Seria lógico que os adversários de Macieira, que apoiava e desejava a presidência de Bentes, não a apoiassem nem a quisessem. Os adversários do senador de Palmeiras queriam, entretanto, a presidência de Bentes. Nesse ponto eram correligionários.
Esperando a chegada da mulher de Lussigny, o senador tinha procurado todas as influências que pudessem afastar o apoio de Bentes às ambições de Contreiras. Bastos falara com franqueza e afiançara que por ora nada podia fazer; que era melhor dar carne às feras e esperar a digestão sonolenta delas para domá-las. Macieira, porém, não tinha esse sangue frio de estrategista político. Fora a Bentes.
— Qual, Doutor! - dissera. - O Contreiras não quer nada absolutamente... Nunca se incomodou com política.
Entretanto, as notícias lhe chegavam desoladoras. A oposição se armava e os jornais anunciavam claramente motins de modo a permitir uma intervenção ou impedir que a assembléia deliberasse livremente.
Macieira punha as mãos na cabeça e pedia a Fuas que escrevesse denunciando o plano dos adversários. No dia seguinte, ele lia o artigo de Bandeiras e também a notícia da remessa de mais um batalhão para a capital das Palmeiras. Macieira corria ao Ministro da Guerra e este lhe dizia:
— Qual, Doutor! Não interviremos... É só para garantir as repartições federais.
Na capital do Estado, os "meetings" se sucediam e o senador dava ordens que aumentassem a polícia. Contreiras, até aí estivera calado; um belo dia, porém, apareceu uma declaração sua. Se era para felicidade do povo palmeirense, dizia ele, até agora escravizado a uma imunda oligarquia, punha a sua vida e a sua espada à disposição dos seus patrícios. Macieira correu a Bentes:
— Qual, Doutor! Contreiras é maluco... Não passa daquilo... Palmeiras é seu...
Macieira sossegava um pouco; mas, daí a dias, recebia telegramas que alguns dos seus correligionários, deputados estaduais, tinham aderido a Contreiras. A mulher de Lussigny não chegava; quis adiar a eleição; os deputados simpáticos a Contreiras não deram número e o projeto ficou encalhado. A mulher de Lussigny não chegava...
No dia da eleição a força federal que inflara o Estado, espalhou-se em pequenos destacamentos pelos municípios e Contreiras foi proclamado eleito. Restava o reconhecimento e a mulher de Lussigny não chegava....
Dias antes da apuração pela Assembléia estadual os oposicionistas armaram uma passeata de crianças; e por detrás dela começaram a hostilizar a polícia. Os milicianos fizeram fogo e um dos infantes morreu. Macieira foi chamado de assassino, de vampiro e os soldados do Exército alagaram a cidade, ameaçaram os amigos de Macieira e Contreiras foi reconhecido e proclamado governador do Estado das Palmeiras.
Procurando Bentes, este dissera compungidamente:
— Ah! Doutor Macieira! Eu não sabia... Julguei que o senhor fosse muito popular e estimado no seu Estado... Não está tudo acabado; havemos de harmonizar as coisas.
Macieira admirou-se que Bentes julgasse necessárias a estima e a popularidade para governar um país ou mesmo um Estado.
Toda a cogitação de Macieira vinha desses casos em que o seu incondicional apoio a Bentes tinha sido retribuído com tanta lealdade republicana. O seu poder, outrora discricionário, ia aos poucos se enfraquecendo. Apeado da chefia política de Palmeiras, nada mais conseguia. Xandu continuava a tratá-lo com toda deferência, mas não fazia as nomeações que pedia. Quem dominava agora era Contreiras ou melhor o Castrioto que governava o coronel agachando-se e bajulando-o.
A última nomeação que fizera Macieira, foi a de Bogoloff; e, como este tivesse autoridade para fazer algumas nomeações no Estado, os partidários de Contreiras começaram a atacá-lo. Os jornais não cessavam de troçar os seus planos; na Câmara, os ataques eram mais diretos e Xandu, cheio de tanto temor quanto em começo estava de confiança, estremecia na cadeira de ministro.
A votação do crédito destinado à instalação da Estação Experimental de Reversão Animal e Quadruplicação dos Bois fora pretexto para um ataque em regra à gestão de Xandu, qualificada de perdulária, fantástica, vítima de "contos do vigário" de estrangeiros audazes como esse tal de Bogoloff, que se fizera um curioso Cristo multiplicador de bois.
O audaz ministro tinha fé na ciência e ficou pasmo com o ataque que se fazia aos infalíveis processos de Bogoloff. Não podia compreender que não se respeitassem os estudos de um sábio e não se esperassem os resultados deles. O chefe do interregno governamental falara-lhe a respeito; e, Xandu, que, além de preparar no ministério o progressos das indústrias agrícolas, preparava também a sua chefia política do Estado das Tâmaras, temeu pelo seu destino político. Perdido o ministério, não poderia distribuir graças e favores; não arregimentaria, portanto, o partido à cuja testa ia ficar.
Xandu, no dia seguinte, não tomou de desgosto e apreensão o seu banho de frio, que tanta atividade lhe dava. Chegou ao seu gabinete amuado, triste, não assinou sequer um aviso e mandou ao fim de alguns minutos chamar o Dr. Bogoloff.
Não tardou que o russo viesse em obediência ao chamado do operoso Xandu. Bogoloff era meão de altura e tinha uns traços miúdos e sem relevo. Os seus olhos eram de um verde esmaecido, mas seguro na visada e perquiridores.
Alegrou-se logo Xandu com a presença do diretor da sua pecuária.
— Sente-se, Doutor.
O russo sentou-se à direita de Xandu por trás de uma pilha de regulamentos e decretos a assinar. O ministro consertou o monóculo e disse com doçura:
— Mandei-o chamar, Dr. Bogoloff, por um motivo muito simples. É um mau vezo do nosso regime que tenhamos de dar satisfações ao público. Bentes, meu eminente chefe, julga isso totalmente prejudicial. Eu também; mas, como não sou chefe supremo, tenho que fazer concessões aos hábitos. Não sei, meu caro Dr. Bogoloff, se tem lido os ataques que têm sido feitos à sua repartição.
— Tenho, Doutor; mas os julgo tão inócuos e tão baldos de base que me supus dispensado de contestá-los.
— Seria assim, meu caro Doutor, se toda a população conhecesse as últimas descobertas da ciência... Eu estou perfeitamente certo da verdade dos seus processos, baseados na biologia transcendente; que eles são o resultado de úteis e profundas meditações. Mas essa gente por aí que nada conhece de ciência e não procura examinar a veracidade de seus processos, de que forma obedecem à alta ciência, acreditará nos ataques, nas mofinas, nas pilhérias dos superficiais.
— E que tem isso?
— Que tem, Doutor? Tem muita coisa. O seu cargo está entrelaçado com a política.
— Como?
— Pois o senhor não foi nomeado devido aos préstimos do senador Macieira? O senhor não é amigo do Macieira?
— Sou?
— Pois bem. Como o senhor não deve ignorar, Macieira deixou com alguns constrangimentos a chefia da política das Palmeiras e, desde que ele não é mais chefe, as nomeações federais para lá não são feitas por propostas dele.
— E que tenho eu com isso?
— Ouça-me. O senhor Doutor Bogoloff, de posse da verba total da diretoria, pode fazer nomeações no Estado e nessas nomeações servir à política de Macieira. Eu sou amigo de Macieira, mas política é política, e estou fazendo demissões lá, para servir a Contreiras.
— Eu, porém, não me oponho...
— Não é isso. Quero-o sempre a meu lado e tenho que a glória dos resultados de suas pesquisas vai ser para mim um padrão de valor político e grandeza do meu ministério. Defenda-se, Doutor, defenda-se!
— Não é difícil. Sei bem que o desconhecimento dos deputados das ciências modernas , leva-os a ataques desabridos. Eles não conhecem a Citologia Experimental e ignoram os mais simples elementos da Citomecânica.
— Uma ciência nova, Doutor?
Xandu perguntou, virou-se um pouco na cadeira, descansou a cabeça sobre o braço que se apoiava na mesa pelo cotovelo.
— Sim, Doutor. São experiências recentes de mecânica celular, que pretendem estabelecer experimentalmente não só o que é uma célula em si mas o que são os diversos órgãos celulares e também quais são as relações recíprocas desses órgãos e as relações da célula em presença do meio ambiente ou de outras células.
As rugas aumentavam na testa de Xandu e Bogoloff continuou com método:
— Estudei sempre as experiências feitas para reproduzir artificialmente o protoplasma e as figuras cariocinéticas , a ação dos agentes físico-químicos e os movimentos das plastidas; as relações do núcleo e do citoplasma; as modificações experimentais da mitose e a sedimentação do óvulo.
— Doutor - disse Xandu, mudando de posição - os seus trabalhos são de um valor incalculáveis. A minha esperança nas suas experiências é ilimitada!
— Eu, Doutor, estudei a adaptação, os tropismos, tatismos, a quimiotaxia, o fotauxismo das plastidas, profundamente.
O ministro recostou-se na cadeira, olhou demoradamente o sábio russo e recomendou:
— Doutor, defenda-se por escrito. Publique no meu relatório, a sair, as linhas gerais do seu plano, mas não divulgue o seu segredo para que não nos furtem a glória. Depois de ter feito isso, a fim de deixar o agudo do momento político, vá viajar pelo Brasil em comissão que lhe encarregarei.
Bogoloff obedeceu à recomendação do seu ministro e apresentou sem demora a defesa escrita dos seus aperfeiçoados projetos zootécnicos. Xandu publicou-o e a ciência nacional respeitou o valor do russo e teve como certos os seus propósitos.
Ficou Bogoloff encarregado de visitar os Estados, de estudar-lhes a pecuária; e de ver se em algum deles já não se procedia espontaneamente conforme as idéias técnicas do diretor.
Como não tivesse Bogoloff predileção por este ou aquele Estado, pôs dentro da copa do chapéu vinte pedaços de papel com o nome deles e mandou que um dos seus contínuos tirasse um dos tais pedaços. Caiu-lhe por sorte justamente o Estado das Palmeiras, para onde partiu em breve.
Esse Estado, como se sabe, não é dos maiores do Brasil, nem dos menores; é dos médios. Tem uma população de cerca de um milhão de habitantes e uma lavoura de cana de açúcar que se arrasta através de dolorosas crises como a indústria de que ela é base.
A sua capital, a cidade de Tatui, tem uns cinqüenta mil habitantes e é uma desgraciosa cidade de casas baixas, quase sem calçamento, sem esgotos e com uma péssima iluminação pública.
Espanta logo a quem chega, com a quantidade de mendigos e pobres que possui, além da grande porção de gente que exerce ofícios miseráveis, como baleiros, carregadores, vendedores de água, pois não a há encanada.
Possui uma linha de bondes preguiçosos, servida por um único veículo, que só parte dos pontos quando está a meio de passageiros.
Quando o viajante se afasta da zona urbana, o espetáculo é mais miserável ainda. Só há palhoças de sapé, cercadas de pobres roças desanimadas; pelos caminhos encontram-se mulheres públicas meio rotas. carregando as esteiras em que realizam os seus tristes amores.
Pelo tempo que Bogoloff partiu, construía-se um teatro majestoso, num estilo compósito e abracadabrante.
Palmeiras já estava "salvo" pois tinha à sua frente o coronel Contreiras, filho do venerando José Maria. Essa sua filiação foi um dos grandes títulos eleitorais; e ninguém mais se lembrava desse homem, de sorte que na rua perguntavam:
— Quem é esse Contreiras?
— É filho do venerando Zé Maria.
— Quem é esse Zé Maria?
— Não me lembro bem.
Não se atemorizou Bogoloff em visitar o Estado governado por estadista tão conhecido. Partiu o russo para aquela parte do Brasil, a bordo de um vapor do Lloyd, em fins de ano. De há muito o governo queria "salvar" essa companhia e o remédio já tinha sido achado por Xandu - o seu presidente era um general.
O paquete estava com a partida marcada para 26 de dezembro; como o governo, porém, queria número na Câmara e temia que muitos deputados fugissem nele para os Estados, adiou-a para o dia 30. Bogoloff embarcou ao meio-dia, pois os anúncios diziam que o navio levantava ferros às quatro horas.
Havia congressistas passageiros e, tendo as sessões da Câmara se prolongado até tarde, o vapor só deixou as amarras às nove horas da noite.
Foi, portanto, vendo a cidade iluminada, a se mirar nas águas negras da baia, que o russo atravessou a barra em demanda ao Estado das Palmeiras.
Navegava num mar calmo sob um céu negro em que as estrelas faiscavam como diamantes nas trevas.
A linha da costa era de longe em longe marcada por fracas luzernas à altura das águas. As águas estavam negras e o mar tinha de noite menos atração e aparentava mais segurança. A luz manifestava toda a sua fascinação e esclarece os perigos e as suas perfídias.
De quando em quando, o jorro luminoso do farol da Rasa cobria um instante o navio. Não havia quase fosforescência e as hélices escachoavam ritmicamente.
Bogoloff, no salão, travara conversa com um tenente que, com uma juvenil atitude de superioridade, não o amedrontava. O russo, habituado a tudo isso, vencera pouco a pouco as desdenhosas respostas do rapaz. Ao fim de algum tempo, ele mesmo perguntou:
— Para onde o senhor vai?
— Para Tatui.
— Vou também. Vou tratar de minha eleição a deputado.
Admirou-se o russo que aquele menino, simples tenente, já quisesse ser deputado e julgou-se obrigado a explicar.
— Vou em comissão do meu ministro.
— Conheço muito o seu ministro. O Xandu é muito operoso. Já mesmo fiz-lhe um elogio. Conhece Contreiras?
— Não.
— Dou-me muito com ele; é meu amigo.
— Grande político, não é?
— Grande! Fui eu mesmo quem lhe levantou a candidatura. Dei o tombo no Macieira. Contreiras, meu caro senhor, é um Marco Aurélio. Nunca aceitou gratificações de fornecedores.
Bogoloff afastou-se, pensando que esse moço não sabia bem quem era Marco Aurélio. Pois um homem é Marco Aurélio só porque não furtou dez tostões? Então ele deixava de lado a sede de perfeição moral do imperador romano, a sua profunda piedade e a sua ânsia de bondade e fraternidade, para crismar de Marco Aurélio um coronel jactancioso aí qualquer? Era curioso um tal fato e Bogoloff dirigiu-se compungido para a coberta do navio que a noite envolvia e o mar suportava.
Havia poucos passageiros na tolda e, entre eles, não se estabelecera conversas. Todos se tinham mergulhado no insondável mistério daquela noite de trevas sobre o oceano imenso.
De repente, um grito quebrou aquele augusto silêncio:
— Meu binóculo! Ó comandante! Pare! Pare!
Às perguntas de explicação, ele se limitava a responder:
— Onde está o comandante?
Vendo o capitão, entre o tom de pedido e o de ordem, ele disse:
— "Seu" comandante, é preciso voltarmos ao Rio. Esqueci-me do meu binóculo.
Fez-lhe ver o comandante que isso era impossível e tal coisa iria causar graves prejuízos à companhia e aos passageiros. O homem enfureceu-se e gritou:
— Sabe com quem está falando?
O comandante disse que não sabia, mas que não havia necessidade de sabê-lo, pois se tratava de medida de suas atribuições, sendo ali a sua autoridade em tudo soberana.
— Pois bem - disse o homem - tenho imunidades; sou o senador Leiva, amigo de Bastos.
Retorquiu o comandante no mesmo tom de voz:
— Vossa Excelência há de perdoar-me, Sr. Senador, mas não posso voltar.
Nisso apareceu um indivíduo metido em boas roupas de onde desentranha a cabeça e exclama:
— Que desaforo! Desrespeitar um senador!
O comandante tentou convencer o parlamentar de que se podia servir dos binóculos de bordo, pois os havia muitos; mas o senador intimou:
— Quero o meu binóculo. Não quero outro. Ou o senho volta e eu voto a autorização para o empréstimo da companhia, ou não volta e eu e a minha bancada faremos uma guerra tremenda ao projeto.
À vista disso, o comandante que sabia das dificuldades da empresa, tanto assim que não recebia os seus vencimentos havia três meses, virou de bordo e voltou para buscar o binóculo do senador Leiva, amigo de Bastos.