Numa e a Ninfa/VIII

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A reação da opinião pública à candidatura de Bentes era tão forte, tão geral e tão intensa, que o aparelho de compressão governamental não se julgava suficiente para vencê-la. Num pais, em que nunca os votos foram contados para a eleição dos seus representantes, os adeptos de Bentes temiam que o fossem pela primeira vez e derrotado o candidato do sindicato. Por todos os processos, procuravam-se obter aderentes e estes podiam contar com os favores mais inesperados do poder e da administração.

Liberato era coronel da Guarda Nacional e o velho chefe político de uma longínqua freguesia do Rio de Janeiro. Nela, em Cambuci, estava habituado a vencer ou simular vencer, sem protesto, as eleições. De uns tempos a esta parte, porém, o seu prestígio decaía e os eleitores se insurgiam contra o seu mando infecundo e nocivo. Tendo chegado a época de escolher novos vereadores, Liberato temeu uma derrota mais completa, tanto mais que Cambuci, como o resto do país, se rebelava contra a ascensão de Bentes. Liberato, logo em começo, avariado como estava no seu prestígio, tratou de hipotecar seus préstimos a Bentes, por intermédio de Campelo. Escusado é dizer que foram bem recebidos e em troca ele pode contar com o apoio incondicional dos promotores da candidatura Bentes.

Aproximando-se o dia da eleição dos vereadores, Liberato verificou que, apesar das ameaças, muitas seções do seu distrito não lhe registrariam votos de que precisava para a vitória total. Convém não esquecer que as eleições são as mais vezes simuladas, que os mesários as fazem ao sabor de suas conveniências partidárias e raro se consegue apurar a votação que as urnas recebem efetivamente.

Sabendo que algumas seções resistiam às suas ameaças e ao suborno governamental, Liberato entendeu-se com Campelo e outros chefes de primeira categoria que o animaram a proceder das forma que entendesse, contando que o partido fosse o vencedor.

O velho coronel julgou melhor armar uma emboscada. Apossou-se com antecedência do edifício público em que ia funcionar o colégio eleitoral, estudou-lhe os aposentos, organizou seteiras e, no dia do comício, estava lá o seu bando por trás das portas e paredes, gatilho no dedo, canos em seteiras invisíveis sobre os eleitores descuidados.

Em dado momento, em hora aprazada, a descarga foi feita; caíram feridos e mortos e o médico que Liberato tinha alugado não tivera serviço porque aqueles foram só entre os adversários do velho coronel.

Exata manobra política indignou a cidade e a opinião mesmo sem conhecer a forma atroz com que fora armada a tocaia; mas Liberato não se incomodou muito, pois o inquérito policial nada apurou, não se sabendo mesmo se tinha sido feito.

Houve quem dissesse que isso estava no programa de Bentes, mas não era verdade. É certo que Lucrécio já tinha avisado do que ia acontecer a Bogoloff, convidando-o até a vencer os honorários médicos que Liberato piedosamente oferecia; mas dizer que tal proeza estava no manifesto de Bentes, é inverdade que não se sabe bem como foi gerada.

O programa de Bentes era até lírico, cheio de utopias e a candidez de suas intenções não se quadrava com certas atitudes de seus adeptos. Do que havia necessidade era impedir que os cidadãos dissessem nos jornais, pelo menos, que não queriam o paraíso que ele prometia. Seria bem fácil convencer o país com os processos mais comuns de baionetas e garruchas; mas tal não quiseram e tentavam uma catequese em que os incidentes como esse de Liberato não foram os únicos.

As urnas deviam manifestar-se; e, como sempre nas suas manifestações havia sangue, tratou-se de lhe aumentar a quantidade em relação à espontaneidade do candidato e da popularidade do partido que o apoiava.

Se os seus oposicionistas recebiam manifestações da cidade inteira, Bentes era aclamado muito decentemente por grande caudas de caleças de enterro.

Riam-se os filósofos de um esforço tão inutilmente dispendido e não esqueciam nunca de lembrar o célebre pensamento de La Rochefoucauld: " A hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude".

É difícil de dizer todas as belas coisas que Bentes prometeu no seu programa. Leu-o num dos mais luxuosos teatros da cidade que, por sinal, nesse dia para nele entrar não se pagavam bilhetes. Fuas disse, ao dia seguinte, que era uma peça magistral, valendo ouro os seus conceitos e as suas arrojadas tentativas de engrandecimento do país.

Se valiam ouro nem todos podiam garantir, mas que prometiam despesas avultadas é fácil de afirmar.

Um dos seus propósitos mais altos era melhorar a navegação interior do Brasil. O seu interesse era pela bacia do São Francisco. Notava Bentes que os seus rios serviam cinco Estados do Brasil, interessando alguns mais; e, entretanto não tinham merecido até ali a atenção dos poderes públicos. Notava ainda que nessa portentosa bacia vivia uma população enérgica, ativa, corajosa e o governo tinha o dever de auxiliá-la. O seu primeiro cuidado, se fosse governo, seria torná-lo navegável da foz à nascente, destruindo a dinamites e outros explosivos a cachoeira de Paulo Afonso e outros obstáculos que lhe impediam o livre aproveitamento pelos barcos.

O outro seu alto propósito tendia a homenagear a mulher brasileira, esse exemplo extraordinário de mãe, dizia o manifesto; e havia de fazer, quando chefe do executivo, distribuição gratuita de brinquedos às crianças, desde que tivessem mães - continuava a dizer o manifesto.

Não eram idéias comuns as que aventou e nem tão pouco inviáveis; o que havia nelas era um altruísmo exagerado que muito desgostou os seus adeptos. Fuas dissera mesmo que era o seu programa, um programa de ideólogo; se não fora a experiência que já tinha a opinião conservadora de sua capacidade de administrador, as idéias do general deviam pô-la de sobreaviso.

Afirmou com uma coragem de inovador que nunca as ações consultariam a economia política e muito menos as finanças; que o país era soberbamente rico e não devia obedecer a essas tiranias espirituais criadas nos caducos e pobres países da Europa.

Fuas ainda disse no seu memorável artigo que essa opinião era de sábio, e, para ela, deviam voltar a sua atenção os eruditos rotineiros, adstritos às coisas misantrópicas do Adam Smith da Wealth of Nations . Citou vários exemplos negando que a riqueza fosse o trabalho acumulado.

A esfuziante profundeza do manifesto foi recebida pelo país inteiro boquiaberto e Numa, na Câmara, defendeu-o dos ataques da oposição ignara. A sua defesa foi lógica e consistiu unicamente em pedir que esperassem a execução para se obter um critério seguro da certeza das proposições avançadas por Bentes.

D. Edgarda, mulher de Numa, não andou muito contente uns dias; ela os passou recolhida à sua biblioteca a ler e a pensar.

Os livros estavam fora dos seus lugares nas estantes; viviam pelas mesas, pelo chão, abertos, com arcas à vista; e um tal aspecto era mais o da biblioteca de um sábio em desesperada polêmica que o da de uma senhora que faz plácidas leituras.

Essa preocupação de estudo e exame não foi a de Inácio Costa. O ardente republicano, fundador da República, que foi ao lado de Benjamim Constant, não sentiu absolutamente na plataforma nem grandes coisas nem motivos de dúvida. Aquilo era uma simples cerimônia e não precisava mesmo Bentes cumpri-la, porque bastava inspirar-se nos grandes antecedentes históricos de Benjamim, Tiradentes e Floriano, para fazer um bom governo.

— Bogoloff - dizia ele, certa vez ao russo, no seu gabinete - os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos. Os metafísicos não querem concordar e têm perturbado a marcha ascendente da humanidade, a completa passagem do período metafísico para o científico industrial. Essas preocupações dos legistas retrógrados não são mais da nossa época. A grande síntese social que Comte estabeleceu, completando Condorcet por De Maistre, demonstra perfeitamente isso. Bentes tem razão em fugir à pedantocracia universitária... Bastam os exemplos! Floriano...

— Que fez Floriano?

— Não sabe? Foi o maior estadista que tivemos.

— Quais são as suas obras?

— Manteve a forma republicana federativa com uma energia verdadeiramente republicana. Era um estadista moderno... Quer saber de um ato dele?

— Quero.

— Você vai ouvir. Como o marechal precisasse de dinheiro para fazer face às urgentes despesas que a revolta acarretava, mandou que o Tribunal de Contas registrasse um crédito de que ele tinha necessidade. O presidente do Tribunal negou-se formalmente a dar a sua assinatura ao tal pedido, por não estar de acordo com as leis. O ministro da Fazenda, ao saber dessa resolução, foi comunicá-la imediatamente ao marechal. Floriano não gostou; mas, sorridente, pediu ao ministro que conseguisse do presidente do Tribunal ir ter com ele uma conferência. Na manhã seguinte, muito cedo, estava no Itamarati o presidente do Tribunal de Contas. Floriano recebeu-o muito amável e mostrou a situação do governo e a urgente necessidade que havia de tal crédito. O presidente, inabalável, disse que não assinava o pedido, pois era ilegal, inconstitucional, que era isto, que era aquilo. Floriano ouviu tudo muito calmo e, em meio ao discurso do presidente bateu na testa e perguntou: —"O senhor é o Doutor Fulano?" —"Sim senhor, respondeu o presidente" —"Ora, Doutor, queira me desculpar. Esta minha cabeça anda tão cheia de atrapalhações!... Não era com o senhor que eu queria falar, era com o seu sucessor". — "Como? perguntou surpreso, o ministro do Tribunal". — "É verdade, Doutor, o senhor está aposentado desde ossim Floriano! Isso é que é um estadista, Bogoloff!

E Inácio Costa bateu-lhe no ombro e saiu do gabinete, abanando o seu fraque preto.

Continuava Bogoloff a trabalhar intensamente no ressurgimento da pecuária nacional. O seu campo de experiência era limitado a um salão e os laboratórios eram constituídos por um armário cheio de regulamentos que Xandu expedia a mancheias.

Desde a manhã até às quatro horas, passava a ler, assinando de quando em quando um ofício que o secretário trazia, porque a Diretoria estava constituída do diretor, secretário e ror de escriturários. De bois ainda não se cogitava; e Bogoloff não se aborrecia.

As visitas de Inácio Costa eram constantes e vinham quebrar a monotonia das horas em que o russo passava no gabinete. Ele ouvia com paciência as suas conversas políticas, observa-lhe as opiniões e surpreendia-se com elas. Verificou com singular assombro que Inácio tinha do governo uma concepção paternal de "mujik"; que o seu desejo era entregar todos os poderes a um só, a um tirano e que esse tirano fosse um militar. Não compreendia que um homem como ele, que se dizia republicano, democrata, tivesse semelhante idéia de república. Inácio se supunha ilustrado, culto; entretanto, desprezava todo o ensinamento, todo o esforço dos homens de pensamento em restringir a autoridade, o poder total de um só. Inácio parecia não se ter apercebido dessa feição dos governos modernos, dessa necessidade de contrapesos, de recíproca fiscalização entre os depositários do governo, para que nenhum fosse efetivamente governo. Acusava de retrógrados os que a queriam, mas nele é que havia uma volta ao governo absoluto dos orientais.

Essa sua mórbida admiração por Floriano era tanto ingênua quanto sem razão. Como esse homem era estadista eminente e não tinha deixado nenhuma obra de estadista, obra que redundasse em benefício geral, que tendesse para a felicidade dos povos, na expressão de Bossuet? Como ele tinha mantido a ordem republicana , se atentara contra os tribunais, os parlamentos, as leis, e queria tudo isso curvado à sua vontade? Não era bem República que Costa queria; Costa desejava o regime russo ou melhor dos knatos tártaros.

Curioso é que na Rússia os avançados sonhassem com constituintes, tribunais independentes, ministros responsáveis e os que aqui se julgavam avançados não quisessem todo esse aparelho governamental...

A Revolução, que teve como um dos seus grandes escopos o estabelecimento de uma constituição escrita que limitasse o poder real, era armada por Costa, como?... Não se sabia bem como e por quê. Costa falava muito em princípios republicanos; mas a República na sua cabeça era um ídolo oco, vazio de significação, já não tinha mais fetiche, não era mais nada senão uma simples palavra, um palavrão que soava aos seus ouvidos mas que não continha uma idéia segura.

Não se pode bem dizer que fosse totalmente vazio; havia nele, no ídolo, alguma coisa: um desejo imoderado de sangue, de violência, de carnificina. Os sacerdotes não sabiam mais por que idéia, por que concepção imolavam a Moloch; mas continuavam a imolar com o automatismo de sacerdotes de crenças mortas , e mais ferozes até.

O que se contava de crueza empregada para vencer a revolta, igualava, se não excedia, às execuções russas; e com uma diferença: é que lá sempre houve uma forma de julgamento, mas na daqui - nenhuma!

Bogoloff, velho anarquista, compreendia que se pusesse em dúvida a lei, que se a condenasse; mas querer o Estado sem lei, admitir o despotismo como progresso, não querer restringir o governo, era absurdo, que não compreendia em inteligências tão medrosas da palavra rei ou imperador.

De resto, aquela superstição de virtudes especiais do militar tinha uns restos de concepção de nobreza, de classe privilegiada, muito de admirar na mentalidade de um republicano.

Alongava-se o russo nessas considerações quando o cansaço mental levou-o a ler um jornal. Ele os lia durante as horas que administrava a Pecuária Nacional, com vagar e distraído. Na primeira leitura, não lhe tinha caído sob os olhos aquele trecho. Leu:

"Agita-se agora a sucessão presidencial do Estado das Palmeiras. Com a resignação do cargo pelo senador Macieira, presidente eleito, a curul governamental daquele Estado, deve ser preenchida brevemente, por meio de eleição. A abandalhada oligarquia que faz a infelicidade daquela terra, quer levar para o palácio das Pitangueiras a inválida figura do deputado Malaquias. Há nisso uma indecente manobra de Macieira. Não estando certo de que maneira o honrado general Bentes irá proceder com estas pustulentas oligarquias, resignou o poder para ficar aqui no centro, neutralizando a ação purificadora do governo que vem; enquanto isso, punha lá Malaquias, tio-avô da esposa do futuro presidente. Nós nada temos a dizer quanto ao Sr. Malaquias, a não ser que é uma figura apagada na política; mas, quem devia ir reger os destinos de Palmeiras, era o Coronel Contreiras, também parente do honrado general Bentes, possuidor como ninguém de uma brilhante fé de ofício com o curso de estado-maior, e engenharia, tendo no peito medalhas que muito recomendam os seus serviços de guerra. Além de tudo, o coronel Contreiras é um homem honesto, que tem vivido até agora do seu soldo, apesar de ter passado por boas comissões, e é filho do venerando José Maria".

Esta notícia, ou como se diz nos jornais, esse "suelto", fora lido com espanto por todos os que se interessavam pela política. Desde dez ou quinze anos que se perpetuavam na presidência do Estado das Palmeiras os apaniguados de Macieira e o próprio Macieira, não tentando ninguém disputar-lhe a indicação. Tinha-se o fato como uma lei e aquela lembrança que não podia ser Malaquias, mas Contreiras, longe de ser tomada como uma coisa sem valor, ganhou importância e foi discutida.

Lucrécio Barba-de-Bode que ainda descansava dos muitos vivas que dera a Bentes, quando foi a um prado de corridas, leu a notícia em casa, pois agora mais se demorava nela pela manhã em fora.

Morava na mesma casa da Cidade Nova e tinha as mesmas pessoas em sua companhia, exceto Bogoloff que resolvera morar numa pensão do Catete, depois de ter sido feito Diretor da Pecuária. Quisera este obter para Lucrécio um lugar na sua diretoria, mas só os havia de escriturário e Barba-deBode não quisera aceitar, por não saber escrever correntemente.

Totonho tinha prometido colocá-lo definitivamente desde que Campelo se firmasse. Era bem possível que o doutor viesse a ser ministro, e, em o sendo, Lucrécio ficaria arranjado de vez. Totonho pedia-lhe que esperasse pacientemente; fosse tenteando com o lugar de "encostado" e ele o fazia fiado nas palavras de Totonho e na estrela do Dr. Campelo.

Com o tempo Lucrécio ganhara certa inteligência política. Ele que, a custo, tinha ido até a tabuada, ficou sabendo muito da difícil arte de governar os povos. Passara muito além a sua inteligência do capítulo dessa arte que trata das desordens nas eleições e "meeting", com assassinatos conseqüentes: Lucrécio já compreendia certas manobras da alta estratégia dos deputados.

Lendo a notícia, lobrigou Barba-deBode alguma coisa de anormal nela. Como toda gente, ele estava habituado a considerar Palmeiras como sendo de Macieira, porque cada Estado era de certos e determinados que o presidente dava. Não se dizia até que Bentes tinha dito ao Crescêncio:

—"Doutor, não lhe posso fazer ministro; mas dou-lhe o Sernambi."

Palmeiras era de Macieira desde muito tempo; Bentes tinha confirmado a doação - como é que agora o presidente que Macieira queria para o Estado podia sofrer contestação. Ele sabia perfeitamente que a propriedade desses homens é sempre disputada. Ninguém lhes disputa a casa, o casaco, as jóias; mas os Estados, há sempre uns galfarros que lhes disputam. A Neves Cogominho era Salustiano; mas o Macieira ele não sabia quem fosse. Conhecia o coronel Contreiras... Era um oficial limpo, alto, severo... Que ele se metesse em política, Lucrécio não sabia. É verdade que Bentes... Mas Bentes! Bentes tinha o exército em peso...

— Não é possível! Não é possível!

E atirou com zanga o jornal para o lado. Apanhou-o ao fim de algum tempo. Leu o tópico de novo e de novo exclamou:

— Não é possível! Não é possível! É intriga!

A mulher, que trabalhava na cozinha, não se conteve e observou lá de dentro.

— Você está doido, Lucrécio!

— Qual doido, Angela! Qual doido! Você não sabe o que é a política.

— Homem, filho, eu não sei mesmo o que seja e nem quero saber. Se é como essa coisa do Cambuci, fresca história! É mesmo uma vergonha!

— Isso é política do Liberato. A minha política é outra... Você conhece o Doutor Macieira?

— Não.

— Aquele que arranjou o Lúcio na Escola dos Desvalidos.

— Que aconteceu com ele?

— Querem lhe tomar a chefia das Palmeiras.

— Mas ele não é do general?

— É, minha filha; mas tem muitos invejosos... Não falta quem o vá intrigar com o general...

— Eu não dizia, Lucrécio?

— O quê?

— Que esse general não prestava. O que ele fez com o "Velho" não é de homem bom; é de malvado... Ninguém mais pode fiar-se nele... Quem faz um cesto faz um cento - fique você sabendo.

Lucrécio nada respondeu. Deixou pender a cabeça sobre as mãos, apoiados os cotovelos no joelho, e esteve a olhar muito tempo o soalho encardido de sua casa velha.

Se Lucrécio se preocupava com a notícia, Macieira muito naturalmente havia de avaliá-la por todos os aspectos. O jornal que a estampara era um dos mais lidos na cidade, tinha grande prestígio nos meios políticos; e, certamente, se não traduzia um desejo de Contreiras, manifestava o começo do plano dos seus inimigos para tomarem-lhe o lugar. Na redação do jornal estava o José Pedro que nascera no Estado; mas nunca Macieira o viu com desejos de figurar na política e muito menos que fosse contra ele. Ao contrário: pedia-lhe informações, dava-lhe notícias tendenciosas e como patrício inteligente, freqüentava-lhe a casa como a de Contreiras que também nunca deixara perceber que queria ser qualquer coisa no Estado. Toda a gente, imaginava ele, quer ser político, e os meninos dos jornais não pensavam senão em sê-lo. Vêem os seus patrões deputados, senadores, escrevem também e se propõem também a sê-lo. Demais, a candidatura de Bentes foi imposta da mesma forma que a de Contreiras. Lançara-a um qualquer num jornaleco A Cimitarra , de uma cidade longínqua, começou a falar-se nela, tomou vulto e eles tiveram que aceitá-la. Aproveitou-a como salvação, agora, porém, estava vendo que a arma se voltava contra ele.

Arlete ainda não tinha saído do quarto e Macieira já se havia embrenhado mil vezes nessas considerações. Arlete que, tantas vezes, interviera para salvá-lo de dificuldades, agora lhe parecia impotente. Se estivesse em casa, seria pior... Quando acontecia surgir-lhe essas dificuldades matutinas, em casa de sua mulher, ele as achava mais difíceis. Dormir fora era para ele dormir na sua casa legal... Pensou em procurar Bentes, em pedir-lhe francas explicações do caso. Quem podia, porém, fiar-se em Bentes? Prometia e... Seria melhor rodeá-lo, correr aos amigos...

— Arlete!

— Que é?

— Já vou.

— Já, "mon cheri"? Que há?

— Querem me derrubar.

— Oh! Que coisa! "Mais, mon Dieu!"... É coisa assentada já, "cheri"? Que é?

— Não sei. Está aqui nos jornais...

— Qual! O país de vocês não presta para nada... É mesmo porcaria... Então você que é tão bom, vai sair! Será o general?

— Não sei, Arlete.

— É ele... "Sale type"!

Macieira vestiu-se apressadamente e encaminhou-se para a casa de Neves Cogominho. A situação delicada da política exigia movimentos rápidos, a ação pronta e o chefe da polícia de Sepotuba resolvera deixar Petrópolis. Habitava agora a casa de Humaitá, que ficava próximo da de Bentes, podendo em minutos alcançar este, aparar o golpe que lhe quisessem desferir. Neves Cogominho não aceitara a candidatura de Bentes com muita satisfação. O processo pelo qual o general se impusera, tirava a força e o valor políticos dele, Cogominho. Compreendia perfeitamente que ele e os seus colegas não tinham feito mais que ratificar uma escolha de quartéis e imposta sob disfarçada ameaça de uma revolução. Bentes estaria sempre disposto a apelar para a violência, para a coação da força, e desprezar portanto os conchavos de votos, as compensações políticas. Sentia como certo que o bastão de chefe ia escapar-lhe das mãos; sentia também que lhe escaparia da mesma forma se se tivesse recusado a homologar a imposição. Aderindo, simulando admirador de Bentes, ao menos podia salvar alguma coisa, se não de toda a sua autoridade política, ao menos amparar o genro que começava agora a carreira.

Até aqui Salustiano ainda não pudera avançar um passo; ao contrário, aproximava-se cada vez mais dele. Acreditava que isso fosse devido a conselhos de Bentes, pois que o general sempre dizia que a sua missão era harmonizar a família republicana. Certamente, Salustiano queria ser deputado. Neves Cogominho estava disposto a fazê-lo; e assim golpeava a efetiva oposição do seu Estado que festejava Salustiano para feri-lo. Na Câmara, Salustiano seria como os outros; e, não podendo dispor de empregos e concessões não organizaria um partido forte que pudesse abalar o antigo prestígio do sobrinho do venerando Frutuoso.

Lendo, porém, aquele "suelto", Neves Cogominho verificou que as suas considerações podiam ser burladas. O processo estava claramente indicado. Um repórter levantava o nome de um coronel, parente ou não de Bentes, para presidente, e, naturalmente, o general, por camaradagem e espírito de classe, dava a mão forte a esse coronel. Chegado este ao poder não iria com toda certeza receber o santo e a senha dos chefes, mas agir a seu modo, com a arrogância de militar e inspirar-se na crença íntima de que era infalível por ser militar.

Tendo tomado no devido valor a meditação, Neves Cogominho resolvera confabular com o seu amigo Macieira. Esperava encontrá-lo no Senado; Macieira, porém, veio procurá-lo em casa.

— Eu já esperava você - disse Neves. - A notícia do O Intransigente devia ter posto a pulga na orelha de você.

— Não sei bem o que hei de pensar dela. Neves, você sabe perfeitamente com que antecedência adotei a candidatura de Bentes... Muito antes de vocês; e pode-se mesmo dizer que, nos meios políticos, fui dos primeiros a toma-la a sério. O Bastos...

— É verdade: que diz Bastos? Você já falou com ele?

— Ainda não... Estou saindo de casa... Como ia dizendo: Bastos ainda não a julgara objeto de cogitação e eu já a tinha como excelente.

Numa sabendo que Macieira estava em casa, veio ao encontro do senador e da sua desdita. Estava justamente Macieira a relembrar sua ação na candidatura do general, quando ele entrou. Macieira acrescentou:

— Está aqui o Dr. Numa que se lembra perfeitamente dos esforços que fiz, para que você adotasse Bentes em vez de Xisto. Não foi, Dr. Numa?

— É a pura verdade - fez Numa. Lembro-me bem de que até o senador procurou-me mais de uma vez na Câmara.

— Por que você resignou a presidência, Macieira? - fez Neves.

— Ora, por quê? Havia tantos boatos. Tantos enredos que julguei melhor ficar aqui.

— Vigiando - completou Numa.

— Vigiando - confirmou Macieira.

— Pois você quer saber de uma coisa, Macieira? - disse Cogominho.

— Que é?

— Você fez mal. Eu no caso de você, ia para lá. Estava eleito e tomava posse.

— Mas estavam as eleições federais à porta...

— Que tinha?

— Era preciso trabalhar no reconhecimento.

— Você trabalhava mesmo de lá...

Numa interrompeu:

— Ou senão, depois de ter tomado posse, o Doutor pretextava licença e vinha até aqui.

— Eu não queria era abrir vaga no Senado.

— Por quê? - indagou Numa.

— Que tinha a vaga? - fez Cogominho.

— Que tinha? Pois você sabe que o Torres, que nunca prestou serviços ao Estado, que nem lá nasceu, já andava se empenhando com Bentes para ser senador.

— Quem disse a você?

— Bastos.

Cogominho olhou muito seriamente para Macieira, como se tivesse entendido mais do que as palavras diziam.

— Creio - disse Numa - que o general não se deixará levar por essa camarilha. Ele há de ter na consciência gratidão por nós que o temos apoiado e o apoiamos.

Os dois senadores não quiseram dizer coisa alguma e o silêncio pousou sobre os três.

D. Edgarda veio cumprimentar a visita do pai;

— Já sei, Doutor, que não vão. D Celeste disse-me...

— É verdade.

— Resolveu ficar, então?

— Que remédio!...

— Macieira - interrompeu Cogominho - qual é a tua opinião franca sobre Bentes?

— É um bom homem.

— Isso não basta - observou Numa.

— Todos são bons - acrescentou Edgarda. - A questão é que sejam sempre bons.

— Para mim - disse Neves - eu não me fio muito nele.

— Nem eu - disse com pressa Macieira.

— Agora - aduziu Numa - o que ele fez com o "Velho" não foi leal.

— Eu sou de parecer - fez Edgarda - que não se deve muito contar com a lealdade dele. O que se deve fazer é que ele não possa ser desleal. Aparar os golpes, preveni-lo das intrigas - isso sim!

— Mas, menina - obtemperou vivamente Macieira. - Nem sempre isso é possível.

— Como?

— Seu pai sabe.

— Que há?

— É isto, Edgarda: Macieira queria por na província das Palmeiras o velho Malaquias; andam agora a insinuar que deve ser o Contreiras...

— O coronel?

— Esse mesmo.

— É parente de Bentes - disse Numa.

— Certamente é uma balela - duvidou Edgarda.

— Não é. Há alguma coisa atrás disso tudo.

Macieira não acabou de dizer isto, quando Numa exclamou vitorioso.

— Ora! Ora!

— Que é? - fizeram os restantes a um tempo.

— Todos nós estamos com medo de fantasmas. Se Bentes der força a Contreiras e ele tiver votação, a Assembléia não o reconhecerá.

Pelas faces de Macieira brilhou um ligeiro sorriso, e Neves também ficou satisfeito; a filha, porém, depois de alguns momentos de reflexão, disse:

— Assembléia não vale nada.

— Como?

— Eles empregam a força e tudo adere.

A situação voltava de novo a ser obscura e, após algumas outras palavras, Macieira despediu-se para continuar procurando amigos que o salvassem, o apoiassem, evitando o golpe que lhe queriam desferir no seu prestígio político. Lembrou-se de procurar o irmão de Bentes; era um remédio heróico do qual não convinha lançar mão já; Precisava poupar-se e, ir logo ao Hildebrando, seria gastar-se, lançar mão de um recurso desesperado.

Acudiu-lhe logo o nome de Fuas. O jornalista até bem pouco tempo tinha relações de cortesia com Bentes, mas desde que lhe escrevera a célebre carta de desafio em casa de Arlete, a intimidade entre ambos cresceu, como se fosse a de velhos camaradas de colégio. Ele devia estar no jornal. Quase nunca almoçava em casa. Lidos os jornais, logo bem cedo, saía, ia à redação, escrevia alguma coisa que a leitura lhe inspirava e corria a almoçar em algum restaurante da cidade.

O Diário Mercantil era um dos mais antigos jornais da cidade; e fora sempre extremado em matéria política. De mão em mão viera parar às de Fuas que não se enfeitava com o título de redator chefe; deixava-o a outro de mais fama, sendo ele de fato e também quase proprietário da folha,

Ocupava uma grande casa da Avenida; e, depois do O país e O Jornal do Comércio era o jornal mais bem instalado do Rio de Janeiro. A sua venda, sem ser grande, era considerável e a tradição da folha aparava bem as opiniões formalíssimas de Fuas.

Como quase todo o jornal do Rio de Janeiro, era deficiente e pouco preocupado com outros assuntos que não fosse política; mas, assim mesmo, dava fortunas, fortunas, que Fuas gastava com a liberalidade e a constância de um nababo oriental.

Fuas era amigo de Macieira. Tinham juntos negócios e o pôquer os tinha ligado indissoluvelmente. Podia bem ser que o jornalista, com artigos e palavras, demovesse Bentes de prestigiar Contreiras, porque tudo estava em Bentes. O atual chefe do interregno presidencial nada valia e diziam até que as salas e os quartos do palácio de Nova Friburgo já estavam arrumados ao gosto do general.

Como Macieira esperava, Fuas Bandeira estava no seu gabinete de trabalho, escrevendo em mangas de camisa. O charuto não o deixava.

— Tu por aqui?

— É verdade. Não sabes?

— De quê?

— Leste O Intransigente ?

— Li... Que há?... Ah! é verdade!

— Que pensas daquilo?

— Homem, filho, era de esperar. O exemplo partiu de cima e agora tens que agüentar. Já te tinha dito o perigo que corria a manobra.

— Mas... eu fui quem levantou, por assim dizer, a candidatura do general Bentes.

— Tu pensas que ele se ilude? que ele julga que deve alguma coisa a ti e aos outros?

— Homem... eu acho...

— Qual! Ele sabe perfeitamente que foram os camaradas que assustaram vocês e vão pô-lo lá. Não há por onde sair, meu caro; e entre um camarada, parente, além de tudo, e um paisano...

— Parente também.

— Parente, mas paisano, ele não tem que escolher. Olha: tu mesmo foste quem deu parte de fraco.

— Como?

— Não resignaste?

— Foi por...

— Sei: mas para que apresentaste o Malaquias?

— Porque era parente de Bentes.

— Está aí. Um pequenote aí qualquer descobre um parente melhor, porque é coronel por cima de tudo, e dá-te o tombo.

— Mas Bentes é contra as oligarquias.

— É contra! É contra! Ora, tu, Macieira!...

Fuas chupou o charuto, rodou-o entre os lábios para melhor queimar e disse:

— Agora é tratar de salvar-te.

— Como?

— Pois não sabes? Tens ainda muito remédio...

— Escreve alguma coisa.

— Escrevi; mas é preciso jogar influências em cima dele.

— Tu não podias?

— Direi alguma coisa; mas de que necessitavas era de uma influência permanente.

— O Hildebrando?

— Não te fies nele. Quer muito, quer tudo, e talvez não faça nada.

— Quem pode ser?

— Uma mulher!

— Quem?

— A mulher de Lussigny.

— Como?

— Pois tu não sabes?... Olha: quando Bentes foi à Europa, Lussigny estava a tinir. Tinham gasto o que possuíam e a mulher rendia pouco. Que fez Lussigny logo que soube da chegada de Bentes? Atirou a mulher em cima dele. Tu sabes bem que Bentes nunca esteve acostumado a essas mulheres de espavento, plumas, perfumes, cerimônias; e caiu que nem um patinho.

— É verdade?

— É verdade e tanto é verdade que eles pagaram as dívidas que tinham e vão embarcar para aqui, deixando a vida de "trem de luxo" que levavam. Por aí tu ias bem, infelizmente, porém, a coisa é para breve e os serviços...

— Como poderia conseguir?

— Como? Pois tu não sabes/ Como tu consegues os colarinhos e os punhos? No nosso tempo, todos os serviços têm o seu preço... Tu não sabes?

Macieira não sabia coisa alguma dessa influência poderosa sobre o ânimo de Bentes. A descoberta alegrou-o e ele a pôs de parte como um trunfo forte para ganhar a partida. Fuas fumava recostado na cadeira, batendo as mãos sobre o ventre farto:

— É isto! É isto, meu caro!

— E Bastos?

— Bastos está atarantado... Ainda não tomou pé nessa história toda... O melhor que tu fazes é adiar a eleição e esperar que a mulher do Lussigny venha.

Deixou-o o senador a escrever uma local em que se pedia ao Congresso que votasse afinal o crédito para instalação da Estação Experimental de Reversão Animal e Quadruplicação dos Bois. Não se compreendia como até ali não tinha sido feito e como é que o governo pagava empregados que não tinham o que fazer, visto lhe faltarem os meios adequados. A fazenda, laboratórios, aparelhos, e demais pertences não chegariam a alcançar o preço insignificante de quatrocentos contos de réis; e não se devia deter o patriotismo dos parlamentares em votar semelhante crédito, desde que levassem em consideração a utilidade da instituição. Fuas era entusiasmado dos projetos de Bogoloff; e, partilhando o seu saber e os seus planos, aconselhara-o a fazer suas compras em uma certa casa, até mesmo se encarregara de fazê-las diretamente.

— Pode entrar, minha senhora.

Fuas julgou reconhecer aquela senhora e logo simpatizou com o seu demorado sorriso que lhe banhava o rosto todo.

— Sente-se.

A senhora sentou-se, apertou a blusa na cintura com o auxílio do dorso da mão esquerda, e disse:

— Não me conhece, Doutor Fuas?

— Minha senhora...

— Eu sou a viúva do Dr. Lopo Xavier.

— Oh! Sim! Sim! É verdade!

Fuas descansou o charuto e continuou pressuroso:

— Não a tinha reconhecido... Não tem mudado nada...

— Não é o que dizem.... Creio que emagreci um pouco.

— Ainda mora em Petrópolis?

— Ainda, Doutor.

— Naquela casa da Westfália?

— Não, Doutor. Na Cascatinha.

— Oh! que bela casa... Tão bonita... Aquele seu jardim é muito "chic"; poucos há aqui como ele. E que camélias? De que morreu o Lopo?

— Tuberculoso.

— Parecia tão forte. Não fui ao enterro porque não me foi de todo possível; mas, creio que recebeu o meu telegrama.

— Recebi, Doutor; e agradeci.

— Lembro-me. O Lopo era muito meu amigo. Ultimamente encontrávamo-nos pouco. Vivia em Petrópolis e eu pouco lá vou. Quando o faço, é às carreiras; senão teria aparecido para um "poquersinho".

— Ele gostava muito...

— Eu morro por ele. Muitos filhos, minha senhora?

— Uma única, uma filha;

— Assim mesmo foi feliz.

— Nem tanto, Doutor. Lopo não deixou quase nada...

— Ah! É verdade... E o montepio?

— Uma coisa de nada. Não dá nem para nos vestirmos.

— Também Lopo era desprendido.

— Muito, Doutor, Eu lhe dizia sempre que pensasse no futuro.

— Era um poeta... A senhora não requerei uma pensão?

— Requeri.

— Já me haviam falado nisso. Quem foi, Fuas?

— Devia ter sido Mme. Arlete.

— É verdade. Em que estado está o "seu" projeto.

— Está no Senado, e eu esperava que o senhor se interessasse pela passagem.

— Pois não... Pois não...

— Muito agradecida.

A viúva ergueu-se arrepanhou bem a saia irrepreensível e pisou com firmeza na porta da saída.

Fuas ficou um instante em pé, acendeu o charuto que se havia apagado, tirou fortemente as primeiras fumaças, lembrou-se num relâmpago do que havia sido, como se apossara daquele jornal com a ousadia de pirata argelino, por fim pôs as mãos nas algibeiras da calça; e, com a boca semi aberta, ao lado esquerdo, e o charuto ao direito, em mangas de camisa, esteve a olhar com desdém a multidão que escorria lá em baixo roçando as paredes do seu cotidiano.