O Último Concerto/VII

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Como chegara ele ao Recife sem que ninguém o esperasse ou pressentisse sequer?

Contou-me tudo a velha a quem procurei no dia seguinte e com quem conversei largamente, depois do restabelecimento de Salustiano.

— Este rapaz é doido, meu senhor — disse-me ela.

Quando chegamos ao Pará fomos muito bem recebidos por todo mundo, e até os jornais falaram de meu filho como se pode falar bem de um artista. Salustiano parecia estar satisfeito, alegre, trabalhava até cedo, quando não tocava no teatro, e todas as tardes ia com os amigos passear pelos arredores, donde voltava corado e forte. Imagine a minha felicidade! Nesse tempo, ele lhe escreveu?

— Algumas poucas cartas, sim.

— Deu concertos no teatro, onde foi muito aplaudido, coberto de coroas, versos, flores que era um deus-nos-acuda! Não sei quem lhe mandou uma carta daqui do Recife (nós estávamos fora de Belém) que o fez ficar triste de um momento para outro que nem um castigo do céu!

A pobre mulher enxugou os olhos molhados de lágrimas, enlaçando as mãos com um movimento de dor.

— Uma carta?

— É verdade; uma carta amaldiçoada!

— E a senhora não conseguiu fazê-la ler por alguém, para saber o que sucedia?

— Qual! Ele rasgou-a logo depois, e ficou branco como uma cera. Na véspera de seguir para o sul o vapor, Salustiano escreveu a noite inteira. Foi ele mesmo pôr a carta na agência do lugar, e, voltando a casa, nem quis comer, nem quis sair mais do seu quarto. Tinha-se tratado um concerto em casa particular e não houve forças humanas que o fizessem tocar naquela noite.

— É célebre!

— Veio segunda carta; ele acabou de a ler e disse-me que partíamos para o Recife no primeiro vapor.

“— Já!” — perguntei-lhe admirada.

“— Se me quer bem, minha mãe, vamos embora.”

— Fiz-lhe a vontade; embarcamos no Paraná, que fundeou em Pernambuco mesmo no domingo de entrudo. O mais, o senhor sabe...

— E ele compôs alguma coisa lá? Trabalhou?

— Ah! É verdade. Salustiano está fazendo não sei que música, que eu se pudesse punha no fogo até lhe ver as cinzas!

— Não diga isso!

— E então, meu senhor? é uma dor de coração ver o rapaz como sofre quando põe-se sozinho a cantar, a escrever e a tocar na flauta tudo aquilo. Sua, treme, fica amarelo, e já chegou uma vez a desmaiar nos meus braços!

— Não terá ele alguma paixão que oculta à senhora?

— Eu sei! Se tem, renegada seja a mulher que está o matando.

— Havemos de salvá-lo! Descanse!

— Agora estou mais tranqüila porque sei que o senhor e o sr. dr. R. são seus amigos às direitas!

— Pode crê-lo. O que couber em nossas forças empregaremos a favor dele!

Entrava o Salustiano da rua. Acompanhei ao quarto e sem mais preâmbulos:

— Deixa-me ver o retrato de que me falaste na tua carta.

Ele olhou-me enleado.

— Perdi-o!

— Pior! Deixa-me ver o retrato da moça que me mostraste na noite de Carnaval.

— Pelo amor de Deus não fales tão alto! — murmurou ele voltando-se para a porta entreaberta.

— Deixas ou não?

— Para quê?

— Para convencer-me da verdade. Em Olinda prometeste-me dizer o seu nome; é inútil; eu o sei na ponta da língua.

O artista aproximou-se-me palpitante.

— Pois é ela, sim, é ela mesma! — exclamou em um tom submisso e humilde.

— Com quem te correspondias tão em segredo do Pará para Pernambuco?

— Foi minha mãe que...?

— Não te importes. Qual era esse grande amigo por quem esqueceste aquele que te fala neste momento?

— Oh! Perdoa-me, vou contar-te tudo; é o coração em pedaços que tu exiges, pois bem; ficarás satisfeito. Votei-te sempre a mais decidida amizade, e, acima de tudo, uma gratidão profunda. Mas um acanhamento invencível apoderava do meu espírito e do meu coração, quando tinha de dirigir-me a ti nessa mal-aventurada rede em que embrulhei a minha existência. Receei as tuas censuras, aliás justíssimas, e...

— Procuraste outro confidente.

— Não procurei; ele já havia surpreendido o meu segredo. Queres saber quem é?

— Dispenso o nome de um mau amigo!

— Mau amigo!?

— Péssimo, traidor, cruel amigo! Todo aquele que não te arredar do precipício a que te arrojas fatalmente, não merece ser contemplado no rol dos verdadeiros amigos. E o que te dizia ele em uma carta que tanto te impressionou?

— Dizia-me que ela fora pedida em casamento.

— E tu tencionaste imediatamente assassinar o noivo, não é verdade?

— Não gracejes. Nunca em minha vida senti tormento igual ao que a notícia me trouxe. Cuidei morrer de desespero!

— Bom. Responde-me agora; foste ao baile de máscaras na certeza de a encontrares no teatro?

— Fui. Dou-me muito com o Zebedeu, o bilheteiro do Santa Isabel. Soube por ele que o comendador alugara um camarote para essa noite, e...

— O mais, meu ex-polichinelo, poderei contar melhor do que tu!

— Não me recordes coisas que eu resgataria feliz com o preço de meu sangue.

— Queres — resgatar o passado?

— Esquecendo-a? Não!

— Ouve-me, esplêndido louco. Estás matando a fogo lento tua mãe!

O artista empalideceu e fitou-me. amedrontado.

— O que esperas desse amor, Salustiano? O que esperas de semelhante empresa? Pois não tens certeza ainda do impossível que te separa, a ti, artista e pobre, duas vezes condenado, daquela moça milionária, aristocrática e filha de um comendador, quase barão?

— Tenho; mas amo-a...

— Compreendo, descendente de Pirro, compreendo os teus entusiasmos pela formosura dessa menina! És artista, e os artistas possuem o dom supremo de analisar a beleza através dos prismas celestiais. Mas, em nome do senso comum, em nome de teu futuro, em nome de tua...

— Basta, pelo amor de Deus! Se minha mãe nos ouvisse!

— Infeliz mulher! Ainda há pouco amaldiçoava à minha vista a criatura que te faz sofrer!

— E o que devo eu fazer então?

— Esquecê-la!

— Impossível!

— Queres um conselho? Carrega uma pistola até a boca, dirige à casa dela e depois de declarar-lhe o teu imenso amor, faz saltar os miolos ao teto!

— Seria melhor isso! — acudiu ele com um olhar sinistro.

— Se as almas são na realidade imortais, e se é certo que elas se reúnem em outro mundo, uma hora depois do teu suicídio, a alma de tua mãe iria queixar-se no céu da ingratidão de seu filho!

— Santo Deus! Queres enlouquecer-me!

— Responde-me, Salustiano; o que pretendes da mulher que adoras? Dize!

— Um olhar, ou um sorriso! Um sorriso dela seria a minha eterna felicidade!

— Se ela te contemplasse embevecida no meio dos teus triunfos artísticos, com toda a sua mocidade, com todos os seus sorrisos inocentes e o seio arquejante de entusiasmo e vida?

Ele tremia da cabeça aos pés e acompanhava as minhas palavras como quem assiste a uma revelação divina.

— Se isso acontecesse, tu fugirias dela para sempre e tentarias esquecê-la um dia? Juras?

— Juro — balbuciaram os lábios deslumbrados do artista.

Corri ao interior da casa e tomei pela mão a velha, surpresa e assustada. Conduzia-a ao pé do filho, sem lhe dizer uma palavra.

— Jura pela vida de tua mãe, Salustiano — exclamei eu, reunindo todas as minhas forças.

Ele curvou-se subjugado, e repetiu inundando as mãos vacilantes da velha de beijos e de lágrimas:

— Juro pela vida de minha mãe.