O Último Concerto/VIII
Como certas plantas enfezadas e maninhas, que ao primeiro raio do sol espalham ao ar fulgurante os novos botões de recém-nascida primavera, a alma de Salustiano começou a expandir-se feliz e animada, aspirando os ventos odorosos da mocidade, e expondo-se às irradiações solenes do astro do futuro.
Não era o mesmo aquele rapaz franzino, nervoso e apaixonado. Seus olhos cobriam-se de uma luz magnética, e de sua boca, outrora silenciosa, as frases espirituosas e vivas voavam em bandos infatigáveis.
A principio assustou-me a rápida metamorfose. Estaria curado? Estaria salvo? Por um desses raros, mas conhecidos fenômenos psicológicos, o espírito do meu louco amigo voltaria aos arraiais antigos, donde fora banido pelas Eumênides insaciáveis do amor e da juventude?
Um dia surpreendi-o à mesa do trabalho. Assim que me viu, debruçou-se sobre o papel de música que enchia, escondendo-o com o temor com que o ladrão oculta as provas do crime.
— Salustiano, tu me enganas!
— Eu te engano?
— Engana-me, sim. Que diabo estavas aí a fazer de tão monstruoso e negro, que a minha presença amedronta?
— Estou preparando a minha salvação — disse ele com um sorriso banhado em torturas e lágrimas. — Não era Isso o que querias? Não me preveniste ontem de que em breve eu daria o meu concerto de despedida?
— Bom, bom; copias músicas perfeitamente!
Os olhos do artista fuzilaram como o flanco tempestuoso da nuvem.
— Não copio músicas, não! Componho a última parte do Hino da Mocidade. Hino da Mocidade! Deverá intitular-se Hino do Desespero!
— Quê!
— Olha, Luís — acrescentou ele, apertando-me as mãos com um carinho fraternal -, há momentos em que tenho vontade de expor-me à tua maldição, aos desprezos do mundo, aos desprezos dela — dela, entendes? -, e como um alienado que escapasse às prisões do hospício, arremessar-me a seus pés pedindo-lhe a morte, já que a vida não quer me abandonar!
Seus olhos úmidos como os da ovelha moribunda fitaram-se dolorosamente em meu rosto.
— Quebras o teu juramento?
— Nunca. Sinto-me com forças de carregar o Atlas às costas e bater-me com o mundo inteiro!
— Nesse caso...
— Nesse caso, pensas tu, é facílimo afrontar o meu amor e a minha desventura? Eu nem sei, meu caro! Os tremendos sacrifícios importam a existência da criatura humana!
— Mas, qual era a tua intenção, se eu não te falasse?
— Matar-me.
— E tua mãe?
— Foi o que me prendeu à beira da cova, a idéia de torturar o coração de minha mãe. Desventurada mulher! Eu que por uma lágrima dela verteria sorrindo, gota a gota, todo o suor do meu corpo e todo o sangue de minhas veias!
— Bravo, Salustiano! És uma bela alma!
— Não sou, não, porque arremessei-me ao indefinido, cuidando marchar em estrada simples e comum.
— Privilégio dos privilegiados, meu caro! Se nascesses recebedor de impostos ou agente dos correios, nunca saborearias o indizível prazer de te expor à morte por uma visão ou uma quimera fugitiva!
— Perfeita visão, é verdade.
— Perfeitíssima! Nem ela te conhece!
— Não falemos mais dessas coisas que me atormentam. Vamos entrar em questões mais sisudas. Foste chamado à lição na academia?
— O que estavas escrevendo? Pergunto-te de novo.
— Nada; uma despedida às fantásticas delicias da arte.
— Tão cedo, meu poeta, foges ao afago das tentadoras musas?
— A arte é um inferno, e o artista é o maior e o primeiro de todos os condenados. A arte diz "voa" e prende os braços daquele a quem aponta os brilhantes horizontes, com torrentes mais pesadas que o universo. Mais vale a obscuridade que a luz nestes casos; prefiro a posição do morcego à da borboleta.
— Mau gosto!...
— As dores que eu tenho engolido e as mágoas que me acompanham São mais numerosas do que os astros que brilham nas eternas constelações. Não te rias! Para ti que és feliz, que vives satisfeito, que não amas, tudo corre às mil maravilhas, sem tropeços, nem cuidados. Mas eu! Eu, cujos dias são pesados, um por um, na balança das aspirações impossíveis, esforço-me como um miserável nos tortuosos labirintos da minha existência, e se não fosse... o que tu sabes, a esta hora estarias acompanhando a minha última viagem!
— Louco!
— Louco! Louco! Chama-me louco, e tens razão, porque não sentes o que eu sinto! Sabes o que eu escrevia?
Salustiano revolveu freneticamente os seus papéis de música, e estendendo-nos ante os olhos ávidos:
— Este Hino — exclamou ele — é a minha desgraça e a minha glória! Todos os meus pensamentos, todos os meus êxtases, suspiros, encantos, entusiasmos, desilusões, quimeras, sonhos, febres, arrojos, quedas e ascensões de mocidade e de talento, estão aqui, neste papel escuro, nestas folhas garatujadas, que o primeiro varredor lançaria ao lixo se as encontrasse à porta da casa!
— Sobre estas folhas chorei eu muitas noites, e muitos dias erguia o meu pensamento anelante como o poeta que traduz o último canto de uma epopéia, o matemático que descobre a solução de um problema estupendo, e o mineiro que arranca da terra convulsa o diamante envolto em sangue, suor e lodo! É o Hino da Mocidade! O Hino! O grande Hino da Mocidade!
Todo o seu corpo vacilava, como ao choque de uma carga elétrica, e os seus cabelos negros em redor da testa larga e pálida voavam flutuantes, à semelhança das nuvens obscuras que a tempestade revoluciona.
— Desde o dia em que vi pela primeira vez aquela mulher, uma harmonia selvagem surgiu do meu coração desvairado, e meus olhos começaram a descobrir, através das lágrimas do meu amor, o sombrio e fulgurante fantasma da glória! Arremessei-me à mesa do estudo e compus, compus, com o desespero do pobre que procura uma côdea de pão ou do astrólogo que persegue no céu a cauda de uma estrela!
As notas safam-me em borbotões, lavas, coriscos, raios, soluços, cóleras, que sei eu?! Um completo extermínio e uma completa vitória de harmonias! Hás de ouvir na flauta o Hino da Mocidade! É um furacão! É um tenor, é um naufrágio!
Tentei reproduzir as ânsias e as venturas supremas de minha alma deslumbrada! Às vezes, crê, às vezes a correnteza de minhas dores assemelhava-se à corrente caudalosa dos rios, quando a tormenta ruge e o relâmpago ensangüenta os ares! Outras vezes, era o murmúrio da fonte que se parecia com o suspiro do meu amor, o sussurro das flores ao afago da noite e ao resplendor das estrelas! As notas embebiam-se no papel; os compassos galopavam-me ante os olhos ardentes como uma legião de demônios e de fadas! Tudo entorpecia-me os sentidos! Tudo me agitava, erguia-me, torturava-me, incendiava-me, enregelava-me, pois tudo me inspirava como se Deus estivesse atrás de mim!
Repetidas crispações nervosas acometiam-lhe os membros e o suor brilhava escorrendo por sua face macilenta.
— Eu executarei esta música sagrada e maldita adiante dela! Não é o que tu exiges? Não é o que exige o mundo?
— Ouve-me, Salustiano!
— Não te ouço, não! Deixa-me contar-te tudo, já que o meu destino por tua causa...
— Por minha causa?!
— Por causa de minha mãe — acudiu ele, abrandando a voz -, deteve-se em frente de suas mais fogosas esperanças!... o Hino da Mocidade será acariciado por aqueles ouvidos divinos, e as vozes da flauta angustiada confundir-se-ão no esplêndido concerto de primavera e de inocência, que rompe do seu coração sublime! Oh! Feliz! Três vezes feliz e três vezes desgraçado, artista que te sepultas com as tuas próprias mãos suicidas!
Apertei em meus braços.
— Meu amigo!
— Quando é o concerto? — perguntou ele, transformando-se de súbito.
— De hoje a 15 dias, pouco mais ou menos.
— Tenho tempo. Vou estudar!
— Mas por tua honra, vê o que fazes!
— Se da prova final eu me salvar, acredita que conquistei o mais gigantesco de todos os triunfos.
Salustiano contemplou o céu profundo e luminoso:
— Felizes os que não têm mãe! — murmurou ele surdamente.
— Estás louco!
— Felizes! Porque esses podem morrer.