O Último Concerto/IX
Nos programas espalhados para o seu concerto, Salustiano fez inserir a seguinte epígrafe:
CONCERTO DE DESPEDIDA À ARTE
- em benefício
- do artista Salustiano Tenório
Procurei no dia em que os jornais publicaram o primeiro anúncio:
— Que diabo vem a ser concerto de despedida à arte?
Ele pareceu perturbar-se levemente com a pergunta.
— Nada. É um meio apenas de chamar concorrência. Sou americano, meu caro! Pertenço à propaganda civilizadora do pufe!
Não é preciso pufe para ti. O teatro vai encher-se pelo simples fato de te apresentares ao público de flauta em punho.
— Obrigado; mas é conveniente formar a estrada para se andar a gosto; o talento só, caro mio, se realmente eu o tenho, pode conseguir, e já não é pouco, morrer à fome em qualquer cantinho imundo e negro!
— Mau! Começas com as tuas descrenças oratórias!
— Não falemos mais disso. Gostaste do programa?
— Gostei. Estou ansioso por ouvir-te executar as variações dos Puritanos, de que o Colas fez-me ontem as mais laudatórias ausências.
— Bom amigo aquele! Mandou-me oferecer a orquestra grátis para o concerto.
— Decididamente teimas em não me revelar um ou dois trechos do Hino, antes da execução em público?
— Decerto, para causar-te surpresa.
— Creio que seria difícil.
— Como? Se nunca tu?...
— É o que tu pensas. Parece-me que cantarolaste alguma coisa do famoso Hino na noite do Carnaval, enquanto dormias, ardendo em febre.
— Maldita noite! Causa de todas as minhas desventuras!
— Olha, tenho às vezes ímpetos de desligar-te do teu juramento, Salustiano. Palavra de honra!
— Cuidas que me arrependi!
— Que dúvida!
— Não me arrependi, não; mas sofro as dores de uma operação horrenda! Imagina! É o mesmo que arrancarem-me, vivo e palpitante, com tenazes ardentes o coração do peito!
— Mas ficarás salvo depois?
— Salvo!
Um pálido sorriso vagou-lhe na boca desmaiada, e o suspiro cortou o lábio em tímidos arpejos. Imediatamente, porém, o rubor coloriu-lhe as faces mórbidas e um tremor nervoso sacudiu bruscamente.
— Vou trabalhar! — exclamou ele.
— Por que não cedes a algum copista a tua música? Salustiano olhou-me com o espanto de um homem que surpreende as primeiras palavras de um doido.
— É que o copista poderia errar um ou dois compassos — volveu ele, moderando-se instantaneamente.
Deixei-o no gabinete, de pena empunhada, e fui a negócio, no Recife.
Só os delicados afagos de uma mesada iminente teriam o poder de afastar-me de Salustiano. O correspondente esperava-me.