O Último Concerto/X
Era a segunda vez que eu penetrava no edifício do teatro de Santa Isabel, depois da famosa noite de domingo de Carnaval.
O teatro estava todo iluminado, e na zona diáfana em que se derramavam miríades de estrelas de gás, flutuavam flâmulas e estandartes, prodigalidade excessiva da parte do empresário, em honra ao Salustiano, o beneficiado da noite.
Enchia o povo o saguão, e as carruagens enfileiravam-se no largo. Batiam oito horas quando entrei. A muito custo conquistei a minha cadeira e corri os olhos por todos os camarotes. Havia um desocupado, quase unido ao cenário, na segunda ordem.
Os músicos preparavam os instrumentos, e o regente Colas ainda não tomara posse da cátedra presidencial.
Marquei a cadeira e saí. O porteiro da caixa, meu conhecido desde épocas mais felizes, não pôs dúvida em ceder-me ingresso.
— Hoje não entra aqui ninguém disse-me ele entre um sorriso de incredulidade e um olhar de mistério.
— Oh! oh!
— Foi mesmo o sr. Salustiano quem deu essa ordem.
— Mas eu....
— Oh! O senhor, é outra coisa. A casa é sua!
— Obrigado, respeitável cérbero!
Salustiano estava no camarim, enluvado, encascado, frisado, mas lívido como um defunto.
Com a cabeça firmada nas mãos hirtas, ele parecia esquecer-se completamente do lugar em que se achava, e de tudo quanto o cercava naquele momento. Ardiam duas velas sobre a mesa, cheia de potes de carmim, pó de arroz, escovas, barbas postiças, plumas multicores e os demais utensílios de teatro, de que tantos príncipes e monarcas se têm servido durante o reinado de cinco atos de melodrama!
Chegavam até o camarim os sons variados da orquestra que se afinava. O contra-regra bateu palmas e o regente sentou-se de batuta erguida. Começava o espetáculo por não sei que comédia traduzida do francês. No primeiro e no último intervalo fazia-se ouvir a flauta do Salustiano; nos outros a atenção pública ia repartir-se entre os talentos mais ou menos festejados de vários músicos pernambucanos.
A ouverture na orquestra fez estremecer o busto pendido do meu taciturno amigo. Salustiano ergueu a cabeça, correu a mão sobre a testa úmida, como quem fustiga uma asa agoureira, e, vendo-me, aumentou-lhe a cadavérica palidez.
— Tenho medo — disse ele com a voz surda e vacilante. — Medo!
— Medo!?
— Sim, meu amigo — continuou o artista apertando-me vivamente as mãos entre as suas. — Sinto o terror na minha alma. Olha, o jogador que expõe em última parada o derradeiro pecúlio de seus filhos, não sofre o que eu padeço agora!
— Anima-te, rapaz! Deixa estas coisas para os romances de capa e espada!
— Não brinques, pelo amor de Deus! Passei um dia horrível hoje! Estive quase a transferir o concerto. Esqueci-me até, acredita! Esqueci-me da primeira nota da música!
— Logo te entusiasmas! O artista, Salustiano, é como o cavalo de batalha (salvo a comparação), cria fogo quando ouve o primeiro clamor das trombetas guerreiras, e aspira o sangue dos feridos! Quando soarem as palmas que te receberem, ganharás alento, e o artista ocupará triunfante o lugar do homem!
— Deus te ouça!
Ela não veio ainda.
— Antes não venha, meu filho! Vendo-a, a flauta cairá das minhas mãos covardes, e eu próprio rolarei no tablado como uma massa inerte!
— Ou erguer-te-ás na asa da inspiração, meu poeta, ascendendo ao paraíso da arte, do amor e da mocidade!
Os olhos dele fulguravam através das pestanas negras como a cauda do fuzil no meio da borrasca.
— Fala-me, que me dás vida!
— Joga-se hoje o grande lansquenet da tua existência, sublime mentecapto! Pede ao céu que o teu doublé seja em ouros, que é justamente a cor do sol e da fortuna!
Rindo-se o artista, respondeu-me com uma energia fora do comum na sua natureza lânguida e doentia.
— Estás no teatro, minha mãe e o R.; tudo se fará.
— O R. ainda não chegou, parece-me, mas ele virá com toda a certeza. Adeus; coragem, coragem!
— Reza por mim.
— Farei o possível; mas nota que eu sou herege... na arte.
Quando de novo entrei na platéia, volvi os olhos para o camarote, até então desocupado. Dessa vez estremeci vendo na frente, com o alvo braço nu pousado no parapeito do camarote, a tão esperada senhora dos destinos do beneficiado. Ela estava fulgurante de beleza e de juventude. Sua boca vermelha e voluptuosa entreabria-se em um sorriso admirável, e de seus olhos negros, como o crime, escapavam-se irresistíveis cintilações. Cobria-a um longo vestido de cetim azul, e em seus cabelos cintilava, como diabólicas pupilas, uma chuva de diamantes, formando um diadema. Da mão dela pendia um grande cacto, borrifado ainda de sereno.
Subiu o pano. Enquanto se representava a comédia, uma comédia fútil e banal, olhei para o camarote e vi que ela conversava, rindo com o velho, meneando a esplêndida cabeça, soberana e pura como a da Palas mitológica.
Caiu o pano e eu dirigi-me à caixa do teatro. Salustiano enfiava em surdina, na flauta, escalas sobre escalas; os sons trêmulos e chorosos entrelaçavam-se como os ais melancólicos de um rio à noite, ou os murmúrios do vento entre as ramas espessas do arvoredo sombrio.
— Ela está aí!
— Já a vi! — exclamou o artista, com a alegria de um cego que torna a contemplar o disco incendiado do sol.
— Ânimo!
— Por ora, tudo irá bem, creio eu. Pouco trabalho tenho. Para mais tarde é que peço forças ao céu. O Hino foi composto com o pensamento nela, e tremo à idéia de não poder interpretá-lo com alma!
— Mas tu cambaleias, desgraçado!... Se te sentes mal, transforma-se o programa.
— Qual! Na hora das grandes catástrofes ou dos grandes triunfos, a criatura humana é menor e mais vacilante que o átomo!
A orquestra deu o sinal. Corri à minha cadeira. Pouco depois dirigi os olhos para o camarote; ela tinha-os presos no palco.
Subiu o pano.