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O Almada/Canto quinto

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I

Já nas macias, preguiçosas camas

Santamente roncava o grão conclave,

Quando, em frente da mesa, carregada

De volumes, papel, e tinta e penas,

O douto Vilalobos se assentava.

Isto vendo, a Preguiça, que o mais dócil

Dos seus alunos no vigário tinha,

As formas adelgaça, o colo estica,

Afila os dedos, o nariz alonga,

E as feições copiando do escrevente,

Busca o vigário, e do âmago do peito

Molemente esta fala arranca e solta:

“Senhor, que grande novidade é esta?

Pela primeira vez, depois das nove,

Esquece-vos colchão e travesseiro,

Que essas valentes e cevadas formas

Com tanto amor criaram? Que motivo

Apartado vos traz da vossa cama?

Porventura esse cargo precioso

Que tão alto vos pôs nesta cidade

Não vos dá jus a regalar o corpo

Co’as delícias do sono? Que seria

Dos empregos mais altos deste mundo

Se não fossem razão de boa vida?

E que lucrais, senhor, com essa guerra?

A vaidade abater de um insensato,

Todo cheio de ventos e fanfúrrias?

Mais do que ele valia Mitridates

Que Lúculo bateu; mas quem se lembra

Do forte vencedor do rei do Ponto,

Quando nele contempla o mais conspícuo

Dos grandes mandriões da antiguidade,

Que mais soube comer que Roma inteira?

Deixai lá que se esbofe a inculta plebe

No vil trabalho com que compra a ceia;

Um homem como vós não se afadiga,

Come e ronca, senhor, que o mais é nada.”


II
 
“Não, amigo (responde-lhe o vigário

Com benévolo gesto, e todo cheio

Dos elogios); não, esta campanha

Tão mesquinha não é, nem tão mofino

O insolente rival. Tolo é, decerto,

E presunçoso; acresce-lhe mordê-lo

Uma inveja cruel do nosso Almada.

Débil não é quem vícios tais reúne.

Derrubá-lo é preciso. O grande nome,

O poder que me dá este meu cargo,

E do prelado a nobre confiança,

Exigem que ao trabalho hoje me entregue

Algum tempo sequer. Nem tu receies

Que eu desperdice as minhas bentas horas

De descanso. Uma só que nisto empenhe,

Tão fecunda há de ser, tão esticada,

Que dará quatro ou cinco em muitas noites,

E tudo se repõe no estado antigo.”


III

Insta a Preguiça; afrouxa, afrouxa quase

O vigário; na mente se lhe pinta

O alto, fofo colchão de fina pluma,

Em que as noites repousa, em que na sesta

A sua reverenda inércia espraia.

Os olhos com fastio aos livros lança;

A descair os membros lhe começam

De languidez; mas a cruel idéia

De ver perdida a posição brilhante

Que na igreja lhe cabe, o brio esperta

Ao grão doutor e lhe dissipa o sono.

Em vão tenta a Preguiça convidá-lo

Com palavras de mel; sacode o corpo,

Encolhe os ombros, os ouvidos cerra,

E ríspido a despede o reverendo.


IV
 
Apenas se achou só na grande sala,

Com o lenço o papel sacode e a mesa,

E num velho tinteiro mergulhando

A branca pena de um comido pato,

Lança as primeiras regras. Dez autores

Largamente consulta; um trecho saca

Dez tomos diversos e massudos

Com que as velas enfune ao seco estilo.

A cada rasgo da tardia pena,

Que a suada expressão goteja a custo,

A cabeça levanta o reverendo,

Todo o escrito relê com grande pausa,

As paredes consulta, e novamente

Ao trabalho com ânimo arremete.

Enfim, ao cabo de uma hora longa.

A tarefa acabou. Contente salta

Da cadeira, repete a torva prosa,

E vaidoso de si, como dos versos

Que primeiro compôs infantil vate,

As mãos esfrega, os olhos arregala,

Pela sala passeia, e de memória

Algum trecho repete, alguma frase

Que mais arrebicada lhe saíra.

O espanto do ouvidor, o entusiasmo

Do prelado, os pomposos elogios

Da cidade, na mente lhe descreve

Com destra mão e delicadas tintas

A fantasia... Mas aqui começam

De lhe pesar as pálpebras; a custo,

Trôpego e bocejando, deixa a sala,

Entra na alcova, a trancos se despede

Das roupas, e na cama continua

O delicioso sonho interrompido
 

V

Lepidamente abrindo o alvo regaço,

E o chão juncando de purpúreas flores,

Do pastor fluminense à casa torna

A travessa alegria, e ao seu aspecto,

Pálida mágoa, lutuosa foges.

Sobre os moles colchões inda estendido,

O lôbrego papel ouve o prelado,

Que o douto Vilalobos lhe recita,

E com exclamações e com palmadas,

Lhe aplaude a erudição e o duro estilo,

E a infalível vitória lhe agradece.
 
VI


Um a um, vêm chegando os reverendos,

E a todos, um por um, de cabo a cabo,

A intimação lhes lê, que eles escutam,

Com muitos e rasgados elogios,

Maiormente os da boca do Veloso,

Que mal sofre ao rival este triunfo.

Mas como o fruto que seduz no rosto

E o verme esconde no corrupto seio,

Assim o pregador das grandes festas

Alegrar-se parece, enquanto a inveja

O punge, e mil idéias lhe insinua

De adular o prelado, e ao Vilalobos

Arrebatar os louros, que lhe impedem,

— O sono não, — mas o sossego d’alma.


VII

Ao ver-se tão cercado de zumbaias,

Em si mesmo não cabe de contente

O profundo doutor, em cujos lábios

A vaidade sorri, velada a meio

Dessas vãs cortesias de aparato,

E desse “Não, senhor! Oh! não! Oh! nunca!

Nunca esta prosa minha ambicionara

A tão alto subir como pretende

A bondade de Vossa Senhoria.

É um trabalhozinho feito à pressa

Só por obedecer às ordens suas”.

E outras tais mogigangas de modéstia,

De humildade, que são naqueles transes

Usual expressão.

 
VIII

                                        Mas tu, Cardoso,

Êmulo foste do feliz vigário,

Quando para intimar o austero Mustre

Te ofereceste ousado. Havia fama,

Temerário escrivão, que a natureza

Para servo do altar te não fizera,

Que nasceras com balda de meirinho

Ou capitão-do-mato. —“Eu mesmo quero [17]

(Diz o forte escrivão) dar-lhe este golpe,

E certo estou de que a fatal devassa

Das mãos virá do arrependido Mustre

A vossos pés cair”. Cheio de gosto,

Almada esta façanha lhe elogia,

E copiada a intimação famosa,

Rubricada e selada, prontamente

A recebe o Cardoso. Dous abraços

O prelado lhe dá, e mais a bênção

Que o livrará das tentações do diabo.

Dá-lhe inda mais. De uma gaveta saca

Um tremendo chapéu pomposo e feio,

Que lhe mandara um monge italiano,

E que ele a sete chaves escondia.

“Tomai (lhe diz) este chapéu, que há anos

De alheias vistas guardo; ele só vale

Mais que vinte orações; tomai-o, é vosso".

 
IX

Era um chapéu de três enormes bicos.

Respeitoso o escrivão lhe imprime um beijo

E na cabeça o põe, e assim de casa

Para intimar o Mustre se encaminha.

Vaidoso e cheio da missão que leva,

As ruas atravessa da cidade,

O pavor antevendo e os calafrios

Do mesquinho ouvidor, quando o mandado

De seus lábios ouvir, e na cabeça

Sentir descarregar o grande golpe.

A notícia entretanto ia correndo

Pela cidade toda, e a cada passo

Nas esquinas, nas lojas se detinha

A gente curiosa e os olhos punha

No famoso escrivão; mas, sobranceiro,

Impávido calcando a dura terra,

Sem fazer caso do miúdo povo,

No caminho prossegue. Já chegava

Aos edifícios últimos, e a planta

O despovoado chão pisava afoito,

Quando em frente lhe surge, lacrimosa,

Brígida, mocetona de mão cheia,

Caseira sem rival, mescla robusta

De áfrico sangue e sangue d’alva Europa.


X

Nos braços dela uma gentil criança

Dorme placidamente. Então sorrindo,

Ao ver o belo infante, e o brando sono

Que essa alma em flor, não machucada ainda

De ásperas mãos humanas, sobre as asas

À doce região dos anjos leva,

Pára o Cardoso. Brígida chegando

Da mão lhe trava, os olhos ergue a medo,

E estas palavras trêmula suspira:

“Revendo senhor, coragem tanta,

Cega destimidez, prendas tão raras

(Perdoai da caseira o atrevimento)

Fatais vos hão de ser. De boca em boca,

Corre que ides citar a toda a pressa

O bárbaro ouvidor. Ai, mais que nunca

A idéia de perder-vos me acobarda.

Que será desta mísera criança,

Se o padrinho lhe falta, e sem conforto, [18]

Nem amparo, nem mão experiente

Houver de caminhar do berço à campa?

Convosco irão, senhor, os dias dela,

E os meus dias também, tão bafejados

Daquelas auras que a fortuna sopra

Por que seja maior nossa desdita.

Quem mais irei servir? Que mesa estranha

Me verá preparar toalha e copos,

Se esse monstro infernal, que a liberdade

E a vida guarda em suas mãos de ferro,

Ousar tirar-vos ambas? Não me resta

Pai nem mãe; tive irmãos; soldados foram,

Morreram todos na holandesa guerra.

Todos acho eu em vós; vós, meu amparo

Té hoje heis sido. Oh! por quem sois, vos peço,

Não me deixeis, senhor, sozinha e triste

Semear de amargas lágrimas a terra,

A dura terra em que pousar meu corpo,

Deslembrada, talvez escarnecida.

É tempo ainda; arremessai ao longe

O mandado fatal; à casa vinde,

Escondei-vos dos olhos do prelado,

Que em paz ficando vos comete o risco,

E duas vidas salvareis de um lance”.


XI

“Ó Brígida (o Cardoso lhe responde)

Justos receios são do teu afeto.

Mas se eu agora depusesse as armas,

Que seria da honra desta igreja?

Onde iria parar o nosso Almada?

Eu conheço o rancor do feroz Mustre,

Eu sei que o braço da justiça pode

Mil afrontas fazer aos nossos cargos,

E a cada passo encher-nos de vergonha.

Mas quão pior seria a raiva sua

Se levasse a melhor neste conflito,

Se castigando esta mortal injúria,

Não lográssemos nós ao mesmo tempo

Aterrá-lo, humilhá-lo, escangalhá-lo.

Vê que terríveis males, que desastres

Sobre nós cairão, se inda a vitória

Couber ao ímpio. O temerário braço

Quem poderá deter-lho? Quem, se um dia

Ousar da minha casa arrebatar-te,

O golpe desviará do seu capricho?

Servi-lo irás então, mísera escrava!

Ao sol ardente cavarás a terra,

Sem gozar um minuto de descanso;

E se acaso na estrada, junto à cerca,

Um clérigo passar dos que me mordem,

Ao ver-te exclamará: “Lá serve ao Mustre

A famosa caseira do Cardoso!”

Triste suspiro de saudade e pena

Me mandarás em vão... Oh! antes, antes

(Se tal desgraça me prepara a sorte)

Num cárcere fechado à luz do dia

Viver perpetuamente, condenado

A perpétuo jejum de pão e água!”


XII

Disse, e do tenro infante os lindos braços

Docemente puxou. Logo desperta

Do sono a criancinha, os olhos volve

Ao heróico escrivão; porém, ao ver-lhe

O gigante chapéu de três pancadas,

Grita, recua e no roliço colo

Da mãe esconde o apavorado rosto.

Leve sorriso então assoma aos lábios

Da tenra mãe, do intrépido padrinho.

Descobre-se o Cardoso, e pondo em terra

O tremendo chapéu, toma nos braços

A criancinha, um ósculo lhe imprime,

E aos céus envia estas ardentes vozes:

“Céus que me ouvis, fazei que ilustre e grande

Este menino seja; igual audácia,

Igual força lhe dai, com que ele assombre

A raça toda de ouvidores novos.

Que diga o mundo ao vê-lo: “Ali renasce

Do valente padrinho o brio e o sangue!

E à doce mãe console esta homenagem”.


XIII

Cala, e nos nédios braços da caseira

A criança depôs; do chão levanta

O chapéu; na cabeça o põe de chofre.

“Vai da casa cuidar (lhe diz), eu parto;

Corro a citar o bárbaro inimigo.

Vencê-lo cumpre ou perecer com honra”.

Brígida comovida se despede

Do impávido Cardoso, e lentamente

Para casa dirige os passos trêmulos,

Não sem voltar de quando em quando o rosto,

Que o medo enfia e que umedecem lágrimas.