O Almada/Canto sexto
- I
Naquele tempo, a mão da arte engenhosa
Os elegantes bairros não abrira,
Refúgio da abastança deste século,
E passeio obrigado dos peraltas.
Por essas praias ermas e saudosas
Inda guardava o eco o som terrível
Do falcão, do arcabuz que a vez primeira
Despertou Guanabara, e o silvo agudo
Da frecha do Tamoio. Ainda o eco
As rudes cantilenas repetia
Do trovador selvagem de outro tempo,
Que viu perdida a pátria, e viu com ela
Perdida a longa história de seus feitos
E os ritos de Tupã, perdida a raça
Que as férteis margens... Musa, onde me levas?
Filosofias vãs, quimeras, sonhos,
Flores, — apenas flores, — que não valem
Tantos gozos reais dos nossos dias,
Em paz os deixa, e do ouvidor famoso
À rústica morada me encaminha.
- II
Não longe do tumulto da cidade,
Entre a verdura de copado bosque,
Tinha o Mustre uma casa de recreio.
Ali nos dias da estação calmosa,
Depois que à porta sacudia o tédio,
Tranqüilo descansava algumas horas
Da inércia do regaço. Ali gozando
Por olhos, boca, ouvidos e narizes,
Da fértil natureza os dons mais belos,
Correr deixava o mundo, sem que a fronte
O mínimo receio lha ensombrasse.
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- III
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O terrível Cardoso. Traz fechado
Na esquerda mão o singular decreto;
Com um gesto solene o desenrola,
Tosse, escarra, compõe a voz e o rosto,
E o venerando anátema lhe lança.
- IV
Do longo espanto o fulminado Mustre
Enfim voltou; os olhos pela estrada
Desvairados estende; à casa torna
Apressado; braceja, grita, ordena
Que o padre chamem; quatro escravos correm
E voltam sem mais novas do Cardoso
Que veloz se tornara ao grande Almada
Da triunfante missão a dar-lhe conta.
- V
Já trêmulo de raiva, já de susto,
O magistrado fica; ora, calado
Algum tempo rumina; ora, soltando
Descompassadas vozes e suspiros,
Atônito percorre a casa inteira.
Vagamente cogita uma vingança
Contra o duro rival; mas logo a triste
Realidade o coração lhe afrouxa.
A fantasia pinta-lhe o desprezo
Dos devotos sinceros, a medonha,
A dura solidão da vida sua,
O fugir dos amigos, os estranhos
Que por trás uma cruz fazendo nele,
Mais sozinho na terra vão deixá-lo
Do que em praia deserta ingrato dono
Deixa um triste cavalo moribundo.
Ora pensa em fugir; ora em prostrar-se
Do sagrado pastor aos pés, rendido...
Enleia-se, vacila, nada escolhe,
E nesta triste, miserável vida,
Entre sonhos, visões, medos e angústias,
Passa o duro ouvidor três horas longas.
- VI
Enfim ceder a Almada determina,
A devassa entregar-lhe, assentar pazes,
Comprar com pouco a salvação eterna,
Uma esperança ao menos. Manda logo
À casa do escrivão que ali lhe traga
A famosa devassa, que enviada
De véspera lhe fora, e todo aflito
De sala em sala passeando espera.
- VII
Mas a terrível Ira que perdia
Deste modo a campanha começada,
Pois no seio da paz de novo entrando,
Todo seria da Preguiça e Gula
O grão pastor da igreja fluminense,
Entra na pele do escrivão Ramalho
E à casa vai do esmorecido Mustre.
Este, apenas lobriga da janela
O fiel serventuário, e nenhum rolo
Lhe descobre nas mãos, trêmulo fica
E outra vez assustado ao portão desce;
A tempo que o Ramalho, mais risonho
Que um céu azul, que um dia de noivado,
Apressado chegava e lhe dizia:
— “Senhor, matai-me embora! Não vos trago
A devassa pedida, que acho injúria
Ao finíssimo sangue que vos corre
Nessas honradas veias, ao respeito
Em que há muito vos tem el-rei e a corte,
Abaixar-vos aos pés de um vão prelado,
E rojar-vos no pó da sacristia”.
- VIII
Disse, e nas amplas ventas inserindo
Do recente rapé duas pitadas,
Foi por este teor desenrolando
Mil razões, mil inchados argumentos,
Com que em todas as eras deste mundo
Um naire ilustre convencer se deixa.
- IX
“Eu bem sei (convencido lhe responde
O ouvidor), eu bem sei que fora triste
Que um preclaro varão da minha estofa,
Cujo nome não ouve o delinqüente
Sem desmaiar de susto, e que este povo
Respeitoso contempla, na baixeza
Caísse de ir ao pés de um vão prelado
E rojar-se no pó da sacristia.
Mas, meu caro Ramalho, que recurso
Nesta vida me resta? Tu não sabes
Que de mim vai fugir a gente toda?
Que eu vou ser o leproso da cidade?
Que meirinhos, beatas, algibebes,
E quem sabe se até os cães vadios,
Que à sumida barriga andam de noite
Pelas ruas catando algum sustento,
Tudo vai desprezar-me? Bom aviso
Quando falha a vitória na batalha,
É ceder às falanges do inimigo,
E preparar uma futura guerra”.
- X
O mofino ouvidor assim falando,
Com apuro a vestir-se principia,
Uma arenga compondo de cabeça
Em que do seu pecado arrependido
Claramente se mostre, quando a Ira
Ao Ramalho sugere este conselho:
“Salvo, salvo senhor! é salvo tudo!
Conhecido vos é como o Senado,
Em luta com o pastor da nossa igreja,
Dele tem recebido tanta injúria,
E em risco está de semelhante pena.
Procurai-o, senhor, e com protesto,
Em nome da coroa e da justiça,
O negócio deponde. Deste modo
A muitos caberá toda essa afronta
E mais certa será nossa vitória”.
- XI
Aceita foi a salvadora idéia.
Saem ambos os dous no mesmo instante,
Voam, chegam à casa do Senado,
E na sala penetram. Conversavam
Justamente do caso os camaristas.
E, na pele mordendo do prelado,
Receavam talvez igual destino
Ao do fero ouvidor, se no conflito,
Que há muito trazem com o grande Almada,
O jus do povo defender quiserem;
Quando na sala entrando furioso
A sua excomunhão refere o Mustre,
E lhes pede em defesa da coroa
O braço popular. Todo o congresso
Gelado fica. Súbito as cadeiras
Pela terra deitando, às portas correm
Os graves camaristas, e fugindo
Ao mísero ouvidor excomungado,
Para casa se lançam. Da pedreira,
Lançado o fogo à mina, a toda a pressa
Da mesma sorte os cavouqueiros fogem
Receosos de avulsos estilhaços.
- XII
Em vão a Ira, com diversas formas,
A todos busca, e amaciando a fala,
A lembrança do afeto lhes desperta,
Os jantares comidos noutro tempo,
Os festivos saraus, cartas de empenho,
Mil finezas, em suma, sepultadas
No vasto cemitério da memória...
A filha do diabo então sacode
Irritada a cabeça, e do mais fundo
Das entranhas um grito de ameaça
E frio escárnio solta: “Homens! (exclama)
Lacaios da fortuna! Eu terei armas
Com que de ingratos corações triunfe!”
- XIII
Isto dizendo, mais ligeira voa
Que o soberbo condor, quando do cimo
Dos Andes rompe o assustado espaço,
E vai surgir além das altas nuvens.
Voa, e chega aos domínios da Lisonja.
Os flóridos umbrais transpõe de um salto.
Logo em frente lhe surge extensa e bela
Uma alameda de árvores copadas,
Que, para a terra os galhos recurvando,
Com singular donaire e afável gesto
Cortejá-la parecem respeitosas.
Caminha, e fina relva os pés lhe afaga;
Respira, e um doce aroma o peito lhe enche.
A tão brando contato, a tais delícias,
Ó milagre! um sorriso prazenteiro
Logo vem desbrochar-lhe à flor dos lábios
Que eterna raiva aperta. Segue avante,
A branca e longa escadaria sobe,
A varanda atravessa alcatifada
De brancas flores e cheirosa murta.
Já rendida de gosto, entra na sala,
Dá dous passos, e a recebê-la chegam
Vinte ou trinta Zumbaias, que vergando
Pela cintura o corpo delicado,
Beijar o chão parecem; após delas,
Com dourados turíbulos acesos,
Vêm quatro Rapapés; fechando tudo
Extensa procissão de Cortesias.
- XIV
De tais recebimentos namorada,
O primeiro salão transpõe a culpa,
Entra no camarim, forrado todo
De flores, de arabescos, laçarias,
Que enche contínuo, tépido perfume
De seis grandes caçoulas de alabastro.
Entra, e defronte de um pomposo espelho
A Lisonja descobre, que risonha
Mil cumprimentos novos ensaiava
E mil versos rasteiros repetia.
Ao ver a feroz culpa a dona amável
Uma grande mesura em quatro tempos
Graciosa faz, e diz: “A que milagre
Devo eu esta visita? Acaso o orbe,
Que ao peso treme de tuas nobres armas,
Estreito campo é já para teus feitos?
Vens o peito acender da serva tua?
Bem cruel me há de ser esse desastre,
Mas se é teu gosto, sofrerei contente,
A terra beijarei que tu pisares
E acharei na desgraça a glória minha”.
A ardilosa Lisonja assim falando
Toda se curva, e a orla do vestido
Da culpa chega aos lábios; mas a Ira
Prontamente a levanta, e nos seus braços,
Com meneios benévolos, a aperta,
E logo fala: “A tua paz respeito:
Turvar não venho a deliciosa corte
Donde o mundo governas; mas auxílio
Do teu engenho quero”. Aqui lhe conta
A famosa aventura do prelado,
A angústia do ouvidor, e a covardia
Dos ingratos amigos de outro tempo,
E pede que a Lisonja as armas suas
Contra estes empregue. “Que mesquinho
Serviço exiges! (a Lisonja exclama);
Eu podia mandar quatro Zumbaias;
Tanto bastava por vencer o ânimo
Dos rebeldes; mas sendo a vez primeira
Que vens honrar estes quietos paços,
Abater-lhes o colo irei eu mesma
E levá-los de rojo aos pés do Mustre”.
- XV
Com diligente mão os filtros busca,
E seguida da hóspede no espaço
Voa ligeira à plaga fluminense.
À casa dos rebeldes se encaminha,
E a todos, um por um, pela alma dentro,
O seu doce veneno lhes entorna.
De baixa adulação logo tomados,
Vestem-se a toda a pressa, e não podendo
Conter o intenso fogo que os devora,
Aos criados de casa e às quitandeiras
Vão fazendo profundas barretadas.
Tanto a Lisonja vã governa os homens!
- XVI
Abre a sessão de novo o presidente,
E deste modo fala: “Grave caso
Este é, senhores; mas as vossas luzes
Tudo podem vencer. Em meu conceito
Recusar não podemos o protesto,
E muito embora formidável seja
O prelado, não creio que devamos
Sem amparo deixar as leis do Estado.
Nem poupar desta vez um grande golpe
No atrevido pastor”. Com todo o zelo
Examinado o singular assunto,
O Senado resolve em pouco tempo
Que ao regedor supremo da cidade
Os papéis se remetam com protesto
Do povo, e petição em nome dele
Por que anulada seja sem demora
A excomunhão, e feito este decreto
Voam dali aos paços do Alvarenga.
- XVII
O alcaide-mor, que os meios estudava
De praticar no esmorecido povo,
Com a aguda lanceta do Senado,
Uma sangria nova, cortesmente
Os faz sentar e prazenteiro os ouve,
E depois de os ouvir com grande pausa,
A petição da Câmara recebe
Sem muita hesitação; mas porque seja
O caso novo, e caminhar convenha
Sem da igreja ferir os santos foros,
Manda o governador que se convidem
Os diversos teólogos da terra,
O reitor do Colégio, o Dom Abade,
O guardião dos filhos de Francisco,
Frei Basílio, prior dos Carmelitas,
E alguns licenciados de mão cheia,
Que o nó desfaçam deste ponto escuro.