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O Cemitério dos Vivos/I/IX

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Outras considerações referentes ao meu dormitório me arrastaram a abandonar os motivos por que o deixei como lugar de leitura, para voltar à biblioteca.

Queria reatar a narração das razões, mas não me é possível. Um vizinho foi, afinal, quem me levou a fazê-lo. Só este, porque, em geral, como já descrevi, pouco os outros me incomodavam. Os mais próximos eram excelentes, tanto o da cama, à direita, de que já sobre ele falei, como o da esquerda.

Era este um menino, moreno, completamente idiota. Tinha as feições regulares, a não ser a boca, os olhos negros cravados nas órbitas, e balbuciava que nem um criança. Tinha poucas idéias e quatro ou cinco palavras. Parece que tinha mais idéias que palavras. Repetia:

— Papai é mau.

— F. é mau!

— Papai tem dinheiro!

— É mau!

— Que pena!

Eram mais ou menos estas as palavras que se entendiam na sua boca. Doce e bom, geralmente estimado, tinha tudo e de todos, e figurava no hospício como um cãozinho de estimação de todos. Hão de estranhar que não houvesse quem criasse animais, gatos, cães, pássaros, etc. A bem dizer, não havia; mas o Torres, o único pensionista de primeira classe, o tal que matara o rival e era o decano do estabelecimento, no almoço e no jantar, juntava restos de comidas e levava aos gatos ariscos que andavam pelos pátios e jardins. F. tinha toda a liberdade e andava onde queria. Fora deste, não vi louco algum que se interessasse por animais.

Na outra casa de saúde em que estive, havia um oficial reformado do Exército, declaradamente dementado, que tinha a cisma de que conversava com os pardais.

Em todas as refeições, munia-se de miolo de pão, mergulhava-o em água, na pia do seu quarto, e atirava pedaços da pasta assim obtida aos pássaros, que voejavam em torno do pavilhão às centenas. Não contente com isso, comprava chocalhos, apitos infantis, fazia poleiros, gangorras, para divertir ou chamar os pardais. Estes pássaros acorriam aos montes na varanda, que se estendia em face dos quartos, cujas janelas para ela davam, e tudo emporcalhavam com os seus dejetos. A irmã zangava-se, ameaçava-o, mas o tenente não se emendava. Continuava.

No hospício, não vi nada semelhante. Os loucos me pareciam pouco emotivos, e quase todos eles se queixavam dos seus parentes e das suas mulheres.

V. O. abrangia, na mesma queixa, a mulher, a sogra e os irmãos; o F. P. descompunha os irmãos e afirmava em alto e bom som que havia de falar mal da família até morrer.

Na minha convivência, ou melhor, nas minhas convivências com loucos, dois ou três vi chorar. O tal rapazola da cama, à esquerda da minha; e um outro, na janela do salão de bilhar, quando delirava. Alguém repreendeu-o por isso, mas ele, com propriedade e urbanidade, respondeu:

— O senhor nada deve observar-me, porque não sabe quais são os meus sofrimentos.

Como dizia, porém, eu tive que ir para a biblioteca ler, por causa do meu companheiro de dormitório. Tinha evitado travar relações com ele, mas, aos poucos, pedindo fogo e outros pequenos favores muitos, fomos travando conhecimento mais profundo.

Era um rapaz pálido, de feições delicadas, franzino, que vivia sempre com um lenço na cabeça, bem molhado. A princípio, julguei que fosse para manter a pastinha inalterável, com o seu vinco muito nítido no meado da cabeça; mas, bem cedo, vi que não. Uma noite, delirando, ele gritou:

— Estão me queimando a cabeça!

Atinei logo com o seu delírio, e em breve ele explicou todo o seu sofrimento imaginário, fazendo questão de que eu escrevesse e tirasse nota do que ele me expunha.

Trouxe-me escrito o seguinte:

[ .... ]

Deu-me isto a lápis, em papel amarelo de embrulho, dizendo-me: "resolva este problema". Mas não esperou a minha resolução, ele mesmo se encarregou de explicar-me a coisa, e eu pude registrar, mesmo à vista dele, alguma coisa, o essencial do seu delírio. Dizia-me ele:

[ .... ]

Quando me explicou isso, foi nas primeiras horas do dia, depois do café matinal, e não me deu tempo de ler os jornais. Quando voltei do almoço, às nove e meia, pude fazê-lo, mas acabado que ele foi, ele reencetou a explicação, e, para me livrar dele, fugi para a biblioteca. Lia eu o doutor Jousseaux, um livro sobre a geologia e fisiografia do Mar Vermelho, aqui e ali, interessante, no maior sossego, pois éramos dois malucos dos menos malucos — eu e o E. P. (o da cabeça branca) — quando vi que o inspetor seguia um visitante vestido de casimira, sem ar de médico, e entrava ele pela seção com o máximo desembaraço. Ele deu comigo e eu com ele, encontrando-se os nossos olhares. Pareceu-me já tê-lo visto e a ele, não sei porque, suspeitei que acontecesse a mesma coisa em relação a mim.

Quem é? Quem não é? Soube-se logo que era um dos fiscais do governo para casas de saúde e recolhimentos.

Logo que se soube isso, toda a seção se pôs em polvorosa. Não houve quem não apresentasse a sua queixa. V. O. fez um discurso e leu representações, cartas, que eu tinha corrigido e mesmo escrito. Ficou muito contente, porque o doutor ia tratar de tirá-lo de lá, tanto, isso depois, que ele sabia (ele sempre sabia do que se passava fora do alcance das suas vistas e ouvidos) que o fiscal falara a respeito dele, V. O., energicamente, com a alta administração.

O meu vizinho do holofote do monte Ararat não lhe deu a mínima importância. Limitou-se a perguntar, horas depois da saída do tal fiscal:

— Quem é esse doutor boa-vida que aí esteve?

Mais feliz do que V. O., ele se ria de todas as providências e solicitudes do governo. O fato é que o tal doutor boa-vida, como o chamou o A. de Oliveira, devia ter voltado para a casa, meditando sobre os percalços de visitar casa de loucos.

Quando saiu, deu por falta de sua bengala com castão de ouro...