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O Choque das Raças/Capítulo 22

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CAPITULO XXII


AMOR ! AMOR !


— Depois da sua espaventosa adhesão ao homo, continuou miss Jane, a leader do partido feminino voltou a si. Percebeu que o desvairamento no dia da victoria negra lhe quebrara a soberba linha das bellas attitudes e a transformara numa perfeita louca, á moda das velhas suffragistas britannicas. E envergonhou-se. Que pensaria della o presidente Kerlog? Como teria o leader branco, lá no intimo, recebido aquelle arroubo de sinceridade explosiva ?

Miss Astor amava a Kerlog. A nobre figura do presidente, sua firmeza no governo, sua agilidade de espirito e sua serenidade de força constructiva seduziam-na de modo incoercivel. E talvez até que, no fundo, toda a actuação politica de miss Astor não visasse outro fim alem de approximal-a do leader branco, por emparelhamento num mesmo nivel de prestigio social.

— Por que então contrapoz-se a elle nas eleições ? perguntei sapatescamente.

— Porque a linha recta da mulher é sempre torta. Elvinismo, senhor Ayrton !... Mathematica, sciencia elvinista ! Dois mais dois egual... ao que convem. Mas miss Astor errava, si acaso se suppunha diminuida na opinião de Kerlog. O presidente era homo e, apesar de todos os progressos da eugenia, um homo tão sensivel ao contacto feminino como... como o senhor Ayrton, por exemplo.

Corei forte. Momentos antes havia eu, sem o querer, está visto, tocado com o meu pé o mimoso pé de miss Jane, e não pudera esconder a corrente electrica que me percorreu o corpo. Seria que miss Jane, sempre tão desentendida, alludia a esse facto ? Estava a minha amiga um tanto differente nessa tarde. Menos impassivel que de costume, e assim como quem quer e não quer, como quem vae e não vae, como quem diz e não diz. Apesar de toda a minha pouca penetração feminina, eu sentia isso, presentindo nella os primeiros estremecimentos da mulher.

— E já que era assim sensivel, continuou a joven, o amplexo que no momento do perigo poz miss Astor em contacto com Kerlog calou fundo nas cellulas presidenciaes e|impregnou-as disso que os homens chamam desejo.

Tive vontade de perguntar a miss Jane como chamavam as mulheres a isso que os homens chamam desejo — mas me faltou a coragem.

— E d'ahi por deante, sempre que a razão do senhor Kerlog se punha a pesar prós e contras relativos a miss Astor, intervinham as cellulas abraçadas, collocando na concha dos prós a tara da saudade — e lá se ia a frieza da razão do senhor Kerlog. Pobre razão humana ! Pobre hoje, pobre em 2228 !... E tanto era assim que logo depois da invasão da sala pelas elvinistas arrependidas commentou o senhor Kerlog o facto nestes termos, dirigindo-se ao ministro da Equidade :

— "Miss Astor sempre se me apresentou aos olhos envolvida em attitudes, bellas, não resta duvida, porque ha sempre belleza em todos os seus movimentos, mas attitudes que me chocavam como falsas. Nem uma só vez a vi ao natural. Foi preciso que o desastre sobreviesse e o terror se apossasse de su'alma para que eu a visse como sempre desejei vel-a : mulher.

E lá comsigo recordava a doçura do seu abraço.

Esse abraço ficou. Os dias se foram passando. Veio a Convenção Branca. Veio a dôr de cabeça. Veio o omeguismo. Nada apagava das cellulas cervicaes do senhor Kerlog a impressão do doce contacto.

Certa vez, reunido o ministerio, perceberam os ministros que o presidente olhava muito amiude para o relogio. O assumpto em debate era o progresso do desencarapinhamento dos negros, materia de especial attenção para o chefe do estado. Especial e demorada — menos naquelle dia. Naquelle dia o presidente atropelava os seus auxiliares, como que desejoso de encerrar mais cedo a reunião.

As informações estatisticas apresentadas pela Dudley Uncurling Company deviam ser bastante favoraveis, avaliar-se pelo sorriso com que o leader branco as recebera.

— "Estamos no fim, disse elle. Resolveu a sciencia, de facto, o grave problema ethnico — e que magistral solução ! Em vez de expatriar o negro ou dividir o paiz...

— "Desencarapinhal-o ! completou, piscando o olho, o ministro da Selecção.

Todos se entreolharam com certo ar de velhacaria. O da Equidade disse :

— "O binomio racial passa a monomio. Só o aryano é grande e Dudley o seu propheta.

Eu cocei a cabeça num gesto muito lá do escriptorio.

— Mas, então, miss Jane, a solução é mesmo a que eu adivinhei — a egualificação das raças !...

Miss Jane tossiu uma tossezinha de encommenda e desconversou :

— O neologismo está bom, senhor Ayrton. Por mais rica que seja uma lingua, a expressão humana tem sempre necessidade de palavras novas. — "Egualificação" muito bem! menta

Encolhi-me no fundo da minha poltrona.

— Mas, continuou ella, o relogio do senhor Kerlog, consultado pela decima vez, marcou tres horas. O presidente ergueu-se e deu por finda a reunião. Os ministros sahiram. Na, escada disse o da Paz ao da Equidade:

— "Notou a impaciencia de Kerlog?

— "Notei sim. Estava inquieto...

— "Cherchez...

— "Não é necessario. Si ninguem resiste á acção catalytica de miss Evelyn, quem lhe resistirá ao contacto ?

Riram-se, e lá se foram cada qual para o seu lado.

Não erravam os dois ministro. Logo depois parava miss Evelyn Astor em frente da Casa Branca e, agil como as deusas — ou as amorosas, subia as escadas.

Foi introduzida incontinente.

—"Bemvinda seja a minha formosa rival ! disse com o mais amavel dos seus sorrisos o presidente flexado.

— "Ex, aliás, presidente Kerlóg ! respondeu com um sorriso que era outra flexa a encantadora Circe.

— "Abandona então a politica ? Não insiste na sua candidatura ?

— Abandono. Perdi a confiança nos meus nervos. Alem disso, mudei de juizo a respeito de um homem...

— "Fazia máo juizo delle ?

— "Máo, não. Erroneo apenas. Vejo hoje que esse homem está no seu logar.

— ´Obrigado, miss Astor, exclamou o presidente. Recebo a sua alta homenagem como o premio dos premios.

— "Pague-m'a então com outra. Chefe que ainda sou de um partido, creio merecer a confiança do leader branco. Não é justo que conheça o pensamento intimo do governo relativo á questão negra ?

O presidente Kerlog sorriu com affectada diplomacia.

— "Segredos de estado, miss Astor !...

— "E já houve algum segredo de Estado que não fosse conhecido das... mulheres de estado ? retrucou a ex-sabina com vivacidade.

Kerlog, bom esgrimista, tinha fama de ligeiro nas replicas.

— As rainhas, as favoritas de outróra eram, de facto, cofres, lindos cofres de segredos. Hoje, porém, que não ha mais rainhas nem favoritas, só podem conhecer os segredos de estado as...

Parou. Embebeu os olhos nos de miss Astor. Viu nelles o que procurava e concluiu numa gentil mesura :

— "...as presidentas !

Miss Astor fez ar de desapontada e armou bico de creança a quem negam doce.

— "Quer dizer, que só conhecerei tal segredo quando for eleita presidenta...

Os olhos de ambos encontraram-se de novo e metteram-se pelas respectivas almas a dentro. Liam-se os dois amorosos como em livros abertos.

— "Crê, então, miss Astor, que só as eleições fazem presidentas ?

Nova cara de. desentendida, novo bico de creança. A coitadinha não percebia cousa nenhuma e foi mister que o leader branco dissesse tudo :

— "Esposa de presidente, presidenta é...

— Novo olhar... ia dizendo eu.

Miss Jane atalhou-me :

— Não. Os olhos ficaram em paz. As mãos de Kerlog é que se estenderam para miss Astor. As de miss Astor foram-lhes ao encontro. Uniram-se no eterno gesto das mãos amorosas que se unem — e... o silencio que diz tudo se fez entre aquelles dois admiraveis typos de gorillas evoluidos.

A minha amiga parou, a olhar-me muito firme nos olhos. Perturbei-me. Quiz espichar para ella as minhas mãos, como Kerlog, mas não tive animo. A sua superioridade amedrontava-me ainda.

Miss Jane fez uma pausa de alguns segundos — essa pausa de quem espera e não vê chegar. Por fim disse, como que inconscientemente desapontada :

— Quer que continue ou prefere aqui uma linha de reticencias ?

Eu não queria coisa nenhuma. Eu só queria estender as mãos como Kerlog e embeber meus olhos nos de miss Jane e ficar assim a vida inteira. Mas os musculos me trahiram miseravelmente. Qual ! pensei furioso commigo mesmo, quem nasceu para empregado de Sá, Pato & Cia não chegará nunca a marido da filha do professor Benson...

Miss Jane (pareceu-me) deixou escapar um imperceptivel suspiro de despeito, rematando a historia do duo presidencial com desinteresse evidente.

— O mais o senhor Ayrton imaginará. O anno 2228,; em materia de amor, não se distinguia dos anteriores. O dialogo de Adão e Eva é talvez a cousa unica que não soffre grande influencia da evolução. As vezes até involue...

Tocou a campainha.

— Ponha o jantar, disse com seccura para o criado que appareceu. E traga uma aspirina.

— Sente alguma cousa? indaguei com timidez.

— Um fio de dôr de cabeça, apenas, foi a sua breve resposta.

Que jantar frio e desenxabido, aquelle ! Quando me vi fóra do castello desabafei.

— E's um animal de rabo, senhor Ayrton, e bem mereces o desprezo com que o senhor Sá te trata !

E furioso dei varios belisções nos musculos covardes que me falharam o movimento de mãos talvez mais opportuno da minha vida.

— Asno, asno, asno... fui-me repetindo pelo caminho todo. Estupido ether que não age nem interferido por uma interferencia tão clara...

A semana que se seguiu foi a mais desastrosa da minha vida. Na segunda-feira briguei com varios amigos, atirei com uma chicara de café á cara dum garçon e cheguei a ir parar na policia.

Terça-feira pela manhã bebi duas garrafas de cerveja e, contra todos os meus habitos, fui assim para o escriptorio. O senhor Sá olhou-me de esguelha por varias vezes. Por fim, notando a má vontade com que eu fazia o serviço, piou :

— Comeu cobra?

Tive impetos de mordel-o. Mas era o patrão e recolhi os dentes. Sá insistiu :

— Comeu cobra, moço ?

— Não comi cousa nenhuma. Eu lá como ? Quem ama lá come ? respondi de máo modo.

— Hum ! fez elle. Percebo agora. De ha muito venho notando que já não me é o mesmo. Não me dá attenção ao serviço, atropela-me tudo. O Pato me disse hontem...

Estourei a boiada.

— Importa-me lá o Pato ! O Pato lá diz hontem ! Patão choco é que elle é ! Patibulo... Patibulo de fraque !...

O assombro do senhor Sá chegou ao auge. Um empregado tratar assim ao commendador Pato, socio da firma, dono de quinhentas apolices, irmão do Santissimo Sacramento, provedor da Santa Casa... E tamanho foi esse assombro que o pobre homem engasgou.

Continuei no meu estouro :

— Estou farto, sabe ? Isto tudo por cá não passa de uma burrada. Mas a lei Owen rompe ahi qualquer dia e quero ver ! E a lei spartana, tambem ! E outras leis terriveis, leis de dar cabo do canastro, entende ? Selectivas !

O senhor Sá continuava mudo, de boca aberta, num estarrecimento de assustar um homem com menos cerveja no estomago. Olhei para elle, firme, e senti uma impressão comica. Disparei na gargalhada.

— Parece o presidente Kerlog quando soube da victoria do Jim ! Ah ! Ah ! Ah !... Não sabe quem é Jim ? Sabe nada... Era um leader ! O leader negro. Negro descascado. Despigmentado, entende ? Omegado ! Um bicho ! Um...

Não pude continuar. Senti uma revolução no estomago e ignominiosamente deshonrei com um "mico" de marcar epoca nos annaes da firma o austero escriptorio do senhores Sá, Pato & Cia.

Não me lembro de mais nada, a não ser que fui posto no olho da rua violentemente.

Amor ! Amor ! Amor !

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.