O Coruja/II/I
Dois anos depois do casamento de D. Geminiana, Teobaldo e André chegaram ao Porto da Estrela acompanhados por três pajens e mais por um moleque, o Sabino, que vinha para ficar ao serviço daquele durante o tempo dos estudos.
Desmontaram cobertos de pó e derreados por vinte dias de viagem a cavalo. Foi recebê-los à boca do caminho o Sampaio, um negociante de meia idade, a quem Emílio recomendara os rapazes.
— Então o barão não quis dar um pulo até a corte? perguntou a Teobaldo o negociante, depois de fazer descarregar o bagageiro e providenciar para que o moleque se não extraviasse.
— Não lhe foi possível, respondeu o interrogado. Não nos pôde acompanhar, a despeito do empenho que fazia nisso. Minha mãe está doente e ele não quis deixá-la sozinha.
— Sozinha, não; ficaria com a irmã.
— Já não mora conosco. Seguiu com o marido para Tijupá.
— E o que sente a senhora sua mãe é coisa de cuidado?
— Diz o velho que sim; um pouco de cuidado.
— Qual moléstia?
— Não sei. Uma complicação. Nervoso principalmente.
— Coitada! E já está assim há muito tempo?
— Há mais de ano. Foi isso que retardou a minha vinda para a corte.
— E este moço é o tal que seu pai também me recomenda?
— É, confirmou Teobaldo, apresentando o amigo. Bem! disse o negociante — Aí está a diligência. Podemos ir. As bagagens já seguiram adiante.
Os três encarapitaram-se no carro e tomaram a direção da cidade.
Teobaldo estalava de impaciência por cair nesse burburinho da corte, que de longe o atraía em silêncio, mas confessou-se prostrado pela viagem. Precisava desfazer-se de toda aquela roupa, meter-se num banho e estender-se ao comprido numa boa cama.
— Tenho pó até dentro dos miolos! exclamou ele, a sacudir o seu poncho de brim enxovalhado. Hei de ver-me limpo e ainda me parecerá um sonho!
— E ter um bocado de paciência. Daqui a nada estaremos em casa.
— Onde mora?
— Na rua de S. Bento.
— É longe?
— Nem por isso. Este seu companheiro é que não gosta muito de falar... observou o Sampaio, querendo puxar o Coruja à conversa. — Também vem para os estudos?
— Não sei, balbuciou André secamente.
— Talvez se empregue, acrescentou Teobaldo.
— No comércio?
— Ou em outra qualquer coisa.
E Teobaldo, abrindo a boca em um bocejo:
— Não sei que mais tenho, se vontade de dormir, de comer ou tomar banho!
— Com poucas fará tudo isso. Estamos quase em casa; e descanse que nada lhe faltará. Há de ver!
Estas atenções do negociante pelo rapaz não eram puro espírito de hospitalidade e provinha sem dúvida dos interesses que o barão dava anualmente à casa comercial dele. Sampaio era o encarregado de lhe sortir a fazenda de tudo que precisava ir da corte, e nessas faturas o fornecedor de antemão pagava-se de todas aquelas galanterias.
Às nove horas da noite achavam-se os nossos rapazes, depois do indispensável banho, assentados em volta do seu hospedeiro e defronte de uma excelente ceia, que fumegava sobre a mesa.
Sampaio, enquanto eles comiam, procurava instruí-los pelo melhor os costumes da vida fluminense, da qual se julgava grande conhecedor, sem nunca aliás ter arredado pé do burguês e acanhado círculo em que vivia.
— Isto aqui, rezava ele — é um demônio de uma terrinha, que tanto pode ser muito boa, como pode ser muito má. Depende tudo de cada um e de cada qual. Não há terra melhor e nem há terra pior! Para aqueles que desejam se fazer gente, trabalhar, dar-se ao respeito não há terra melhor; mas para os que só pensam na pândega e têm, como o senhor, ordem franca em uma casa comercial como esta, — não há terra mais perigosa! Estou certo, porém, de que o Sr. Teobaldo há de dar boa conta de si!
— Também eu, disse o filho do barão, recuperando o seu bom humor.
— Sim, continuou o negociante, mas com esses ares, com essa carinha de moço bonito, é preciso ter muito cuidado com as francesas!
— Com as francesas?
— Francesas é um modo de dizer. Refiro-me a todos esses diabos de que vai se enchendo o Rio de Janeiro e que não fazem outra coisa senão esvaziar as algibeiras dos tolos!
— Mas de que diabo fala o Sr. Sampaio?
— Ora essa! das mulheres! Pois então o senhor não me compreende?
— Ah! Com que isto por aqui é fechar os olhos e...
— Um desaforo! Dantes ainda as coisas não iam tão ruins; mas ultimamente é uma desgraça! Todos os dias estão chegando mulheres de fora! Eu nem sei como o governo não toma uma medida séria a este respeito!
Teobaldo sorriu desdenhosamente, e o Sampaio acrescentou:
— Todo o cuidado é pouco para não cair nas garras de algum dos tais demônios! Encontrando o perigo — é fugir, fugir, para não chorar ao depois lágrimas de sangue! O senhor veio ao Rio foi para estudar, não é? Pois enterre a cara dentro dos livros e feche os olhos ao mais!
— Pode ficar tranquilo, respondeu Teobaldo, levando o seu copo à boca,
— Não digo que não se divirta... prosseguiu o Sampaio; consinto que vá ao teatro de vez em quando; se se der com alguma família, pode frequentá-la; mas tudo isso, já se vê, com muita prudência e com muito juízo. Evite as más companhias, fuja dos vadios e dos viciosos; não frequente a rua do Ouvidor; não entre nos cafés! E, abaixando a voz e chegando-se mais para o moço, disse, com o mistério de quem faz uma revelação terrível: — E, principalmente, meu amigo, não se meta a escrevinhador.
Teobaldo ergueu a cabeça, surpreso:
— Como?
— Sim, confirmou o outro. — Não se meta a escrevinhador, que isso tem posto muita gente a perder! Poderia citar-lhe mais de cem nomes de estudantes, de quem fui correspondente, que perderam anos, que cortaram a carreira por causa da maldita patifaria das letras! Eu os vi, a todos, por aí, enchendo as ruas de pernas, mal alimentados, e mal vestidos, com a mesada suspensa pela família, a fazerem garbo das suas necessidades e às vezes até das suas bebedeiras!
Teobaldo ouvia agora o negociante com singular atenção.
— Fuja! continuava aquele: fuja de semelhante porcaria! se não quiser ver o seu nome todos os dias na boca do mundo!
— O nome?
— Sim, sim, o nome, que seu pai lhe pôs à pia do batismo! Se não quiser vê-lo de boca em boca não se meta a escrevinhador! E ainda se fosse apenas isso... vá! É feio, mas enfim, sempre há homens sérios, cujo nome o público não ignora; o pior é que às vezes rebenta por aí cada descompostura, que é mesmo uma vergonha! Quem se deixa cair em tal desgraça não está livre das chufas da imprensa e dos comentários do mundo inteiro!
E o Sampaio, para melhor firmar os seus argumentos, principiou a citar nomes.
— Mas esses nomes — acudiu Teobaldo recorrendo às leituras que fizera na província — esses nomes são todos muito distintos. O senhor está citando os nossos poetas mais conhecidos!
— Ah! ninguém nega que não sejam conhecidos, nem que não sejam poetas, mas posso afiançar-lhe que não são homens sérios.
— Homens sérios?... Que diabo entende o senhor por homem sério?
— Ora essa! Que entendo por homem sério? — é boa! Por homem sério entendo todo aquele que não dá escândalos, que não é tratante e que se ocupa em alguma coisa séria! Enfim, todo aquele que trabalha!
— Então quem escreve não trabalha?
— Não digo isso, mas...
— Acabe.
— Mas não é um trabalho sério!
Teobaldo, em vez de prosseguir no diálogo, olhou para o Sampaio com um gesto que tanto podia ser de lástima como de repugnância, e, deixando escapar o seu predileto sorriso de ironia, ergueu-se, bateu-lhe levemente no ombro e disse:
— O senhor é um grande homem!... Mas eu preciso descansar. Boa noite!
Semanas depois, mudaram-se os dois rapazes para Mata-cavalos, levando em sua companhia o moleque.
Teobaldo, no meio da casa, envolvido em um robe-de-chambre de seda azul, um cigarro entre os dedos, dirigia a colocação dos móveis.
— Esse espelho ali, ó André! E a secretária deste outro lado. Assim! Agora, vejamos onde deve ficar o piano... Ah! cá está o lugar dele, aqui, entre estas duas janelas. E anda com isso, ó Sabino! que ao contrário não se acaba tão cedo a arrumação!
O Sampaio espantara-se quando ele lhe dera a lista dos móveis que precisava.
— Pois o senhor também quer cortinas? exclamou arregalando os olhos.
— Quero tudo isto que aí está notado, respondeu o estudante; — o resto me encarrego de comprar pessoalmente.
— O resto? Há então ainda outras coisas além disto?...
— Sem dúvida. É preciso alegrar a casa com alguns objetos de arte, Chegam-me quatro ou cinco estatuetas...
— Estatuetas?...
— ... uma pêndula de bom gosto, dois jarros para flores e meia dúzia de quadros.
— Mas o senhor onde já viu casa de estudante com esse luxo?
— Não preciso ver para usar: se faço deste modo é porque assim o entendo. Compreende?
— Bem, bem! isso é lá com o senhor... Tem ordem franca...
E jurou consigo que Teobaldo não havia de ir muito longe com aquelas tafularias.
A casa, depois de cada objeto no seu lugar, não parecia com efeito destinada à habitação de dois estudantes ainda tão novos; tal era a boa ordem o asseio, o gosto bem educado e familiar que a tudo presidia. Tanto assim que a proprietária e locadora do prédio, que a princípio não se mostrara lá muito satisfeita com os novos hóspedes, rejubilava-se agora ao ponto de lhes propor que almoçassem e jantassem com ela, mediante uma estipulada mensalidade.
Instalado, cuidou Teobaldo de arranjar os necessários explicadores para os preparatórios que lhe faltavam e mais ao Coruja, e dispôs-se a estudar com afinco.
Mas o seu espírito inconstante e vadio não se queria fixar sobre um ponto certo, e os dias passavam-se em repetidas polêmicas a respeito da carreira que ele devia abraçar.
— Mas, afinal, é preciso que te decidas por alguma... dizia-lhe o Coruja. — Se não saíres dessa hesitação, acabarás fatalmente por não estudares nada!
Teobaldo principiava sem dúvida a demorar muito a escolha de uma profissão. Ao sair da sua província vinha aparentemente resolvido a repetir na corte os preparatórios e seguir logo para a Academia de S. Paulo. O direito, porém, se lhe apresentava à trêfega fantasia com o insociável aspecto de um velho carregado de alfarrábios, tressandando a rapé, fanhoso, pedantesco, sem bigode e de óculos na testa.
— Abomino-o! exclamou ele a discutir com o amigo. — Aquilo nem é ciência: é uma coisa toda convencional... uma coisa arranjada segundo o capricho de quem a inventou! Nada possui de certo e determinado! No direito tudo admite sofismas; tudo se pode inverter; tudo está sujeito a mil e um alvarás e a duas mil e tantas reformas! Além disso, consta-me que ninguém pode se gabar de saber direito antes de lidar com ele pelo menos quarenta anos! Oh! bela carreira! bela carreira, que exige quase meio século de estudo para se ficar sabendo dalguma coisa dos seus mistérios!... E, demais, que diabo de vantagem oferece o tal direito?.... A magistratura? Deus me defenda! A advocacia? Mas eu detesto os advogados!
— Por que? atalhou o Coruja.
— Ora! Qual é o papel de um advogado, qual é a sua missão? Defender os réus; muito bem! Mas, das duas uma — ou o réu não tem crime e nesse caso está defendido por si; ou o réu é um criminoso, e não menos será aquele que, por meio da eloquência e da astúcia de seu talento, conseguir provar que ele é um inocente!
— Isso é asneira!
— Pois qual é a missão do advogado, senão empregar meios e modos para alterar a favor do seu constituinte o juízo feito pelos jurados? Qual é a missão do advogado, senão convencer a quem supõe um homem estar tão inocente como no dia em que vestiu o seu primeiro par de calças?...
— Enganas-te, acudiu o Coruja; o advogado serve para muitas outras coisas; serve para evitar que um inocente sofra a pena que não merece; serve para...
— Ora qual! interrompeu Teobaldo. O advogado quase nunca se acha convencido da inocência do seu constituinte. Defende-o, porque a sua vida é defender os réus, e para isso lança mão de todos os recursos da oratória e serve-se de todos os laços e armadilhas da retórica!
— Mas...
— Ora! se o advogado, empregando esses meios, consegue dos jurados a absolvição do réu, é um homem pernicioso, porque faz com que aqueles se pronunciem, não pelo seu juízo calmo e refletido, mas sim dominados pelos efeitos sedutores de um bom discurso; e, se o advogado não consegue vencer a opinião dos jurados, será nesse caso um fiador inútil, visto que não adianta absolutamente nada do que estava feito!
— Pois, se o direito te inspira tal repugnância, escolhe então a medicina...
— A medicina! Mas, onde iria eu buscar paciência e disposição para retalhar cadáveres e aprender os remédios que se aplicam no tratamento de tais e tais moléstias?... Acreditas lá que semelhante coisa possa ocupar a vida de um homem cheio de aspirações como eu?... Podes lá acreditar que eu chegasse a tomar interesse por um tumor ou por uma erisipela....
— É o diabo!
— De todas as carreiras, metendo a engenharia de que não gosto, por embirrância às matemáticas, só a das armas não me desagrada totalmente.
— Pois aí tens, decide-te pelo Exército ou pela Marinha.
— Mas, valha-me Deus! o curso militar baseia-se todo nos malditos algarismos e eu nem para fazer uma conta de somar tenho jeito ...
— Então...
— Além de que eu jamais daria um bom soldado ou um bom marinheiro. Só a ideia de ficar eternamente submisso ao governo do meu país; só a ideia de que tinha de deixar de ser um homem, para ser um instrumento do militarismo, um defensor oficial da pátria, com obrigação de ser um bravo a tanto por mês e de ter uma honra telhada pelo padrão de um regulamento; só isso ou tudo isso, meu André, faz-me desanimar.
— Então não há remédio, decide-te pela engenharia...
— Impossível! Seria um engenheiro que havia de contar pelos dedos, quando precisasse somar três adições!
— Então, parte quanto entes para a Alemanha e vai estudar ciências naturais...
— Que de nada me serviriam aqui no Brasil e para as quais tenho tanta aversão quanta tenho às tais ciências exatas e moreis!
— Dedica-te à igreja...
— Se eu tivesse jeito, quem sabe?
— Ou então às belas-artes. Faz-te músico, pintor ou escultor.
— E o talento para isso, onde ir buscá-lo? Queres que eu peça ao velho que me remeta lá de Mines, todos os meses, um pouco de gênio?...
— Ora! Tu tens talento para tudo.
— O que equivale a não ter para coisa alguma. Entendo um pouco de desenho, um pouco de música, de canto, de poesia, de arquitetura, mas sinto-me tão incapaz de apaixonar-me por qualquer dessas artes, como por qualquer daquelas ciências. Tudo me atrai; nada, porém, me prende!
E, depois de um silêncio, durante o qual não encontrou o Coruja uma palavra para dar ao amigo:
— Queres saber qual era a carreira que eu de bom grado abraçaria, se não fossem as conveniências...
— Qual?
— O teatro! Fazia-me ator.
— Estais louco?
— Ah! não! ainda não estou, que, se o estivesse, já teria-me resolvido a entrar em cena.
— Havias de arrepender-te...
— Quem sabe lá?...