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O Coruja/II/XII

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Voltou de lá às três horas da tarde do dia seguinte.

— Mais um dia perdido! considerava ele amargamente ao entrar em casa já ao cair da noite e depois de ter jantado em companhia de amigos.

Ainda no corredor foi detido pelo Coruja, que lhe disse com reserva:

— Acho bom que não subas agora! Aquela sujeita do Almeida, a Ernestina, está aí a tua espera. Não subas!

— Está aí? perguntou Teobaldo deveras contrariado. Que diabo quer ainda de mim essa mulher?

— Não sei; diz o Caetano que ela já aí está há quatro horas.

— Ora esta! E, logo hoje, que eu precisava dormir!

— Recolhe-te mais tarde; ela talvez não se demore.

— Qual! Vou despachá-la! Verás!

E, enquanto subia a escada acompanhado pelo amigo:

— Não faltava mais nada!... Estou mesmo muito disposto a aturar mulheres!... Já me bastam as maçadas que me dão as outras! Além dela ninguém me procurou?

— Depois de eu chegar, não.

Teobaldo tinha por costume perguntar sempre se alguém o procurara na sua ausência. É que esperava que a fortuna viesse um belo dia ao encontro dele, como vinham as mulheres; era uma espécie de vaga confiança no acaso; um modo preguiçoso de desejar ser feliz.

Assim, quando pilhava dinheiro, arriscava algum na roleta ou na loteria.

Foi de mau humor que ele entrou na sua pequena sala, abriu a porta com um empurrão e dirigiu-se de cara fechada para a rapariga, que o esperava.

— Teobaldo! exclamou esta, querendo lançar-se-lhe nos braços.

— Perdão! disse o perseguido, afastando o corpo. Não estou disposto a dar abraços; venho incomodado. Faça o favor de dizer o que deseja, mas que seja breve!

— Oh! não te reconheço! Não pareces o mesmo!...

— Diz muito bem! Eu com efeito já não sou o mesmo. Grandes transformações se deram na minha vida. — Adiante!

— Compreendo; é que amas a outra!

— Ai, ai, ai, minhas encomendas! gritou o rapaz, sem poder dominar a impaciência. Teremos ainda discussões sobre o amor? Mas, minha senhora, há uma porção de dias que não ouço falar em outra coisa! Estou farto! o que se pode chamar farto! Oh!

Ernestina pôs-se a chorar.

— Então, então! resmungou ele; deixe-se de asneiras e diga o que a trouxe.

— Ah! já não me posso iludir; amas a outra!

— Engana-se! Não amo mulher alguma!

— Nem a mim?

— Mas que lembrança foi essa a sua de vir aqui? Há mais de dois anos que nos separamos, creio que sem protestos e sem juramentos!... E vê-la assim, sem mais nem menos, tirar-se dos seus cuidados e...

— É que então eu não era livre, não podia acompanhar-te: vivia meu marido!

— Marido?

— Sim. O Almeida afinal enviuvou, casou-se comigo, e três meses depois faleceu nos meus braços.

— Que não casasse... respondeu Teobaldo, rindo.

— És cruel!

A mesma frase da outra, pensou ele, com um suspiro de tédio.

Ernestina circunvagou os olhos em torno de si, para certificar-se de que estava a sós, e acrescentou:

— Um dia ofereceste-me a tua proteção, não é verdade? Venho reclamá-la...

— Sim, mas é que os tempos se mudaram; já não tenho com que proteger ninguém, nem a mim mesmo! Estou na espinha!

— Teobaldo! eu não vim pedir-te esmola!

— Então diga o que veio pedir.

— Vim em busca de amor! Para esquecer-me de ti fiz o que era possível; nada consegui e cá estou, disposta a afrontar o último sacrifício, contanto que fique ao teu lado. Amo! e, dizendo isto, tenho dito tudo!

— Sim?... perguntou o rapaz, apertando os olhos. Mas não me fará o obséquio de dizer que culpa tenho eu disso?

— Não sei; amo-te, e nós, as mulheres, quando amamos deveras, somos capazes de tudo!

— Pois se é capaz de tudo, veja se consegue deixar-me em paz!

— Menos isso!

— Pois, olha, filha, custa-me a confessar, mas acredite que estou em uma tal situação que não me é possível absolutamente pensar em mulheres. Não imagina! Acho-me com a vida muito atrapalhada; falta-me tempo para tudo; os dias fogem-me por entre os dedos como se fossem minutos. Se a senhora é minha felicidade, não queira ser a primeira a criar-me novos obstáculos. Já tenho tantos!

— Não! Quero apenas saber se amas a uma outra mulher.

— Não! já lhe disse que não, e acrescento que se não amo, é porque não posso, é porque não tenho jeito, não tenho tempo, e é porque agora me faltam recursos para isso! Está satisfeita?

— Pois, se não amas a outra, juro-te que hei de, à força de dedicação, fazer-me amada por ti! Verás!

— Aconselho-lhe que não tente semelhante coisa! Perderia o seu tempo! O que não falta por aí são rapazes em muito melhores circunstâncias do que eu. Experimente e verá!

— Mas se só a ti desejo e amo? Se ninguém é belo, forte, inteligente como tu?

— Sempre a mesma cantiga! exclamou Teobaldo. Malditos dotes! Afinal, preferia ser mais feio do que o Coruja!

— Não blasfemes!

— Qual blasfemes, nem qual histórias! Quer saber de uma coisa? Errou a pontaria. Veio buscar amor? Pois bem — não há!

E, passeando de um lado para outro furioso:

— Oh! oh! é demais! Não tenho obrigação nenhuma de aturar isto! Apre!

Ernestina defronte daquele transbordamento de cólera, principiou a soluçar, dizendo que era a mais desgraçada das mulheres; que amava um homem que a tratava daquele modo, e, enfim, que — se Teobaldo não estivesse disposto a ser mais generoso, ela daria cabo da vida.

— Faça o que entender, minha senhora!

— Tu serás a causa de minha desgraça!

— Paciência!

— Malvado!

— Não acho! A senhora é infeliz porque me ama; não me amasse!

Ela então lançou-lhe os braços em volta do pescoço e abriu a dizer entre beijos:

— Não! não é possível que sejas tão mau! Sei que dizes tudo isso para me experimentar! Amo-te, adoro-te! Estou disposta a afrontar tudo!

Teobaldo desembaraçou-se das mãos dela grosseiramente, foi buscar o chapéu, enterrou-o na cabeça e saiu, dando-se aos diabos.

A pobre rapariga, depois do esforço que fizera para detê-lo, deu ainda alguns passos, muito ofegante, até à porta e afinal caiu sem sentidos. Esta crise era promovida pelo despeito e em grande parte pela ausência do jantar.

Coruja, que no seu quarto aprontava com pressa um trabalho para o dia seguinte, ouviu-lhe o baque da queda e correu a socorrê-la.

— Que significa isto? perguntou ele, erguendo-a do chão e indo depô-la sobre a cama de Teobaldo, que ficava na alcova próxima.

— Fugiu-me! disse a infeliz, abrindo os olhos e soluçando com mais ânsia; — fugiu-me, depois de dizer que não me amava e que nunca me amaria!

— Pois ele disse isso!... murmurou André, sem saber o que devia fazer, muito perturbado com aquelas lágrimas e com aquele desespero.

— É um ingrato! É um homem mau! exclamava ela nas curtas intermitências do choro. É um malvado.

— Veja se consegue ficar tranquila... aconselhava o professor a acarinhá-la. Faça por isso...

E, com uma idéia:

— Mas, agora reparo, a senhora está aqui há um bom par de horas e naturalmente precisa comer. Vou arranjar-lhe qualquer coisa.

— Não se incomode.

— É que por essa forma a senhora ficará pior. Vamos, procure tranquilizar-se enquanto lhe arranjo a ceia.

Ela aceitou afinal e o Coruja afastou-se.

No fim de um quarto de hora voltava ele com uma bandeja nos braços.

— Veja se consegue sempre meter alguma coisa no estômago, dizia a arranjar a mesa; eu lhe farei companhia. Vamos.

Ernestina arrastou-se ainda muito chorosa até à mesa e, entre suspiros, principiou a comer. O Coruja ao seu lado desfazia-se em solicitudes, sem aliás conseguir animá-la.

— Oh! mas é que dói muito semelhante ingratidão! exclamava ela com a boca cheia. Um rapaz, por quem eu seria capaz de dar a vida, tratar-me deste modo, dizer-me cara a cara o que me disse e, afinal, sair como saiu, desprezando-me, nem que se eu fosse um cão tinhoso!

— É que ele estava hoje de mau humor, coitado! arriscou André. Há de ver que amanhã já a tratará de outro modo...

— Qual! amanhã fará pior; tola fui eu em mostrar-me apaixonada. Ingrato!

O professor empregou ainda alguns esforços para tranquilizá-la e depois confessou que estava muito atrapalhado de serviço e precisava continuá-lo.

— Não me posso descuidar um instante, acrescentou. É um trabalho com pressa. Olhe, a senhora fique a seu gosto, está em sua casa, se precisar de qualquer coisa é só chamar por mim. Com licença. Até logo.

E, enquanto ele se afastava, muito feio com o seu ar giguento e mal amanhado, Ernestina murmurava:

— Foi-se aquele ingrato e ainda por cima deixa-me aqui este maldito Coruja, que a gente só de olhar para ele parece que fica doente! Credo! Que estupor!