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O Coruja/II/XIII

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Teobaldo saiu de casa verdadeiramente aborrecido.

— Malditas fossem todas as mulheres! Maldito fosse ele, que não conseguia dar um passo sem tropeçar logo num rabo de saia! Arre! Era preciso despedir-se de Leonília por uma vez e fazer com todas as outras o que fizera com Ernestina! Esta com certeza estava mais que despachada!

E, assim considerando pelo caminho, principiou a passar uma revista mental aos seus amores.

— No fim de contas, pensava, só trouxera de tudo isso consequências ridículas ou perniciosas, que serviam apenas para lhe atrasar a vida e afastá-lo dos seus verdadeiros interesses. Ah! mas desta vez havia de tomar uma resolução, uma medida séria! Naquele andar não conseguiria nunca fazer carreira... A ter de ter amores, que fossem estes com mulheres de quem lhe viesse algum benefício real: mulheres que, lhe abrindo os braços, abrissem-lhe também as portas de um futuro garantido e cômodo. Estava disposto a amar, sim senhor, contanto que lhe viesse daí algum proveito imediato para as suas ambições.

Com estes cálculos chegava ao largo de S. Francisco quando o Aguiar lhe bateu no ombro. Virou-se, sem ter tempo de compor um sorriso amável.

— Oh! Estás com uma cara! disse-lhe aquele.

— Não é nada! Tédio.

— Eu também não me sinto de bom humor. Dormi mal a noite passada e tive enxaqueca durante todo o dia. Vou beber para ver se distrai; queres vir também?

— Não, obrigado; estou incapaz de tudo.

— Anda daí.

— Está bom. Vamos lá.

E à mesa do botequim, defronte dos copos de cerveja:

— Mas, que diabo tens tu? perguntou Aguiar.

— Desanimado, filho, totalmente desanimado! Não imaginas a série de contrariedades que me sucedem todos os dias. Agora, para cúmulo de caiporismo, é o diabo da Leonília que entende perseguir-me de um modo atroz!

E contou minuciosamente o que ela fizera.

Aguiar abriu os olhos com exagero de espanto.

— Que! Pois seria crível? Ora, para que lhe havia de dar! exclamava a rir. Paixão aguda, com caráter pernicioso! Pobre Leonília.

— Pobre, mas é de mim! emendou Teobaldo, muito preocupado.

— De ti? Tu o que és é um grande felizardo! disse o outro. As mulheres procuram-te e são capazes de ir ao inferno para te descobrirem!

— Não esta má fortuna! Dava-a de boa vontade a quem a quisesse!

— Deixa-te disso...

— Juro-te, meu amigo, que estou deveras aborrecido com tudo isto e que de bom grado abandonaria o Rio de Janeiro, se me achasse em condições de fazer uma viagem.

Depois de alguns outros copos, os dois rapazes ficaram mais expansivos. Aguiar confessou então, que a causa do seu mal-estar não era a tal noite mal passada, nem tampouco a suposta enxaqueca, mas o diabinho de uma prima que ele tinha, um diabinho de quinze anos, que ele adorava, sem conseguir arrancar-lhe um ar de sua graça.

— Não te corresponde?

— Qual! parece até embirrar comigo. Talvez me confunda com os tipos que a cobiçam por causa do dote...

— Ah! é rica!

— Tem cento e tantos contos... Ah! mas tu sabes perfeitamente que eu, só por parte de minha mãe, possuo mais do que isso, sem contar com a morte de meu avô.

Teobaldo soltou um suspiro.

— Já vês... disse o outro, que não é pelo dote!

— Está claro!

— Pois, apesar disso, não consigo agradá-la. Tenho empregado todos os meios; não penso em outra coisa; persigo-a por toda a parte, e a malvadinha cada vez mais cruel!

— Decerto; toda mulher foge enquanto a perseguem. Deixa-a de mão; finge indiferença, e verás que ela se chega.

— Homem, e dizes bem, vou fazer-me indiferente.

Mas acrescentou logo depois:

— Qual! É impossível! Não tenho forcas para isso!... Será bastante vê-la, encontrá-la na rua, para que eu perca de todo a cabeça e não saiba mais regular os meus atos. Fico louco!

— Oh! mas então a coisa é séria!

— Que queres tu? Adoro-a!

— Ela é bonita?

— Encantadora! Queres ver o retrato?

E, tirando do bolso uma fotografia.

— Olha.

— É linda, com efeito. Pois, filho, se estás tão apaixonado, é insistir, porque a água mole em pedra dura...

— Sim, mas já me vão faltando as esperanças de conseguir qualquer coisa... ri. sabes? Ela depois de amanhã faz anos; hesito ainda no presente que lhe devo dar...

— Não lhe dês nada.

— Impossível. Há uma festa em casa da família. O pai, o comendador Rodrigues que protege as minhas pretensões sobre a filha, convidou-me.

— Ah! O pai protege-te?

— Pai, parentes, amigos, todos me protegem, menos ela.

— É o diabo! Estás mal!

— Contudo, ainda não desanimei de todo e vou experimentar uma idéia, que tive agora, uma idéia para o dia de seus anos.

— Qual é?

— Uma idéia magnifica; só tu, porém, me podes ajudar.

— Eu? De que modo?

— Vou levar-lhe de presente uma poesia... Que achas?

É um presente econômico.

— Mas eu não sei fazer versos; tu és quem os há de arranjar.

— Não seja essa a dificuldade. Podes contar com eles.

— Não. Há de ser já; ao contrário sei que não os pilho.

— Agora?

— Sim. Olha; ali tens uma mesa com papel e tinta; toma a fotografia para te inspirares, e mãos à obra!

— Ora, filho, mas isto é uma espiga.

— Anda! Escreve!

Teobaldo ainda recalcitrou, mas o outro insistiu por tal forma, que ele afinal não teve remédio senão fazer-lhe a vontade.

E, colocando o retrato defronte de si, compôs ao correr da pena meia dúzia de estrofes líricas, repassadas de arrebatamento amoroso; depois limou-as pelo melhor que pode e leu-as ao amigo.

— Que tal achas?

— Soberbo! com isto creio que avanço uma légua nas minhas pretensões.

E guardando os versos na algibeira:

— É verdade! Tu bem podias vir comigo à festa; é domingo. Hás de gostar.

— Pode ser... respondeu o outro.

— Não; quero que venha com certeza; desejo apresentar-te a meu tio.

Teobaldo, havia muitos meses, não tinha ocasião de visitar famílias, o que com a sua educação, fazia-lhe certa falta; não lhe foi por conseguinte de mau efeito o convite do amigo, e, logo que este pôs à disposição dele algum dinheiro, ficou entre os dois combinado que jantariam juntos no domingo em casa do Aguiar e seguiriam depois para o baile do comendador Rodrigues.

Depois foram daí ao teatro e à volta deste cearam no Mangini em companhia de uma francesa que se lhe agregara durante o espetáculo.

Eram duas horas da madrugada quando Teobaldo, um pouco eletrizado pelos seus vinhos italianos, recolhia-se afinal a casa, pé ante pé, para não acordar o Coruja. Mas, ao entrar no quarto, ficou surpreendido; alguém ressonava na sua cama.

Acendeu a vela; era Ernestina, que dormia o sono solto.

— Ora esta! pensou ele, tomando uma carta que acabava de descobrir sobre a mesa, e, ato contínuo, soprou a vela e tornou a sair, muito enfiado.

— Diabo! exclamou, fechando sobre si a porta da rua. Pois nem com a minha pobre cama posso contar?

Neste instante, Ernestina, que havia acordado, aparecia à janela, estremunhada e aflita.

— Que! pois não ficas em casa?! perguntou ela.

— Decerto! respondeu de baixo o moço com raiva.

— És um homem impossível!

E ouviram-se soluços.

— Impossível é a senhora! gritou ele. Creio que não podia lhe falar com mais franqueza do que falei! Fez mal em ficar!

— Sobe! pediu ela com a voz chorosa.

— Não me aborreça, replicou Teobaldo, afastando-se furioso.

E pensar, considerava o fugitivo pela rua, que não fui ter hoje com Leonília só para gozar uma noite completamente sossegada...

E, depois de alguns passos, enquanto seu pensamento trabalhava, deteve-se no meio da rua, batendo freneticamente com a bengala no chão.

— Mas isto não tem jeito! No fim de contas é uma violência que me incomoda, que me irrita, que me põe neste estado! Quero dormir, quero repousar e nem isso me permitem! Antes ser escravo! antes ser um cão, que esses ao menos descansam!

Então foi que se lembrou da carta encontrada sobre a mesa; aproximou-se de um lampião e abriu-a.

Reconheceu logo pelo sobrescrito que era de Leonília.

Teobaldo — Confesso-te que estou deveras surpresa com o teu procedimento; vejo que me enganei — não és um cavalheiro. Por tua causa enterrei-me neste arrabalde, transformei toda a minha vida e tu, logo nos primeiros dias, foges de mim como se eu fosse a peste em pessoa; ora, hás de...

Teobaldo não leu o resto; amarrotou a folha de papel entre os dedos e lançou-a fora com arremesso.

— Vão todas para o diabo! disse, e foi continuando a caminhar até à porta do hotel Paris. Bateu e pediu um quarto.

Só depois de recolhido se lembrou de que tinha consigo pouco dinheiro e, pois, não devia gastá-lo em coisas supérfluas.

— Amanhã... amanhã darei um jeito a tudo isto!... deliberou entre os lençóis. Vou falar com franqueza ao Coruja e pedir-lhe que me ajude a fugir desta crítica situação em que me acho... Ele é muito capaz de descobrir um meio, e se não descobrir, arranjarei o negócio por minha conta... Aqueles demônios das mulheres...

Adormeceu em meio deste raciocínio e tão profundamente, que só acordou no dia seguinte à uma hora da tarde.

A despeito disso não teve vontade de sair da cama; um entorpecimento doentio parecia chumbá-lo ao colchão; e com os olhos ainda cerrados, deixava que sua consciência funcionasse à vontade, grupando em torno dela um mundo de exprobrações.

Para mais lhe enervar o espírito ali estava aquele insociável aspecto do quarto de hotel, onde se sentiam ainda os rastros da última mulher que o habitara.

Teobaldo, despertando afinal, reparou para tudo isso, minuciosamente, com o doloroso prazer de quem repisa de propósito uma parte do corpo que está dorida e machucada.

— A cama era muito larga, com um grande colchão de molas, onde o corpo se abismava; os travesseiros monstruosos e enfeitados de rendas e fitas; e por cima um imenso cortinado de labirinto, enxovalhado de pó. Sobre o mármore do lavatório via-se a bacia de gigantescas proporções, ao lado de uma porção de vasilhas de porcelana; e, em contraste com o resto, um miserável pedaço de sabão de 200 rs., fornecido pelo hotel. A o canto da pedra, esquecida sobre os rebordos do lavatório, havia uma escova de dentes, suja de opiato.

E todo esse aspecto de abandono e desleixo, todo esse falso conforto de quarto sem dono e nunca desocupado, tudo isso ainda mais o entristecia e acabrunhava.

Depois — o fato de não ter mudado de roupa e ver-se obrigado a vestir aquela mesma camisa da véspera também o torturava.

— Maldita Ernestina!

Pagas a dormida e uma xícara de café que lhe deram, não lhe ficava dinheiro suficiente para o almoço; vestiu-se, disposto a sair logo. Mas, enquanto se aprontava, ouviu no quarto imediato uma voz grossa, de homem, que altercava com o criado.

— Esta voz!... pensou o rapaz.

E, tomando de curiosidade, abriu a porta e espiou para o corredor, justamente quando o seu vizinho ia a sair.

— Mas, não me engano! exclamou. É ele! é o marido da tia Gemi! o velho Hipólito!

— Velho, não! respondeu o homem. Velho é trapo!

E a sua testa enrugava-se em orlas regulares, como água onde caísse uma pedra.

E reparando:

— Ora, espera! Você é o Teobaldo!...

— Em carne e osso, meu tio.

— As orlas da testa do velho acentuaram-se mais, numa expressão de contrariedade, que ele não procurava disfarçar; circunstância que alterou no mesmo instante o ar de contentamento que se havia formado no rosto do moço.

— Não sabia que o senhor estava na corte... disse este, para quebrar o silêncio.

— Cheguei ontem e tive o caiporismo de meter-me no diabo deste hotel, que afinal me parece o menos próprio para mim! Com a breca, só vejo franceses e pelintras! E, demais, esfolam-me! Pedem-me os olhos da cara por dar cá aquela palha! Você mora aqui?...

— Não, senhor; vim apenas dormir esta noite: mas a ninguém lembra morar neste hotel. O senhor deve procurar outro. Como ficou minha tia?

— Bem. Está perfeitamente boa!

— Oh! dir-se-ia que o senhor dá notícias de sua mulher contra a vontade...

— É o meu gênio!

E, sem poder dominar-se:

— Demais, para que precisa você das notícias de sua tia? Parece-me que uma pessoa que, durante dois anos, não se lembrou dos parentes, não há de ter muito interesse por eles...

— Perdão! replicou Teobaldo. — Eu escrevi à tia Gemi por ocasião da morte de meu pai e depois creio que mais duas vezes; segundo, porém, a única resposta que recebi, quis acreditar que tanto ela como o senhor estavam persuadidos de que eu lhes escrevia para obter dinheiro, e...

— Ah, sim! Sua tia chegou a falar-me em dar-lhe uma mesada, mas, se me não engano, você foi o próprio a rejeitá-la.

— Não me lembro disso, mas é natural que seja exato.

— Pois eu me lembro perfeitamente e afianço que é.

— Bom.

E Teobaldo declarou o número da casa em que morava e pô-la à disposição do tio.

— Passe bem! respondeu este.

E, quando o rapaz havia-se afastado:

— Um peralta que abandonou os estudos, que não arranjou meios de vida, um pobre diabo! ainda vem para aqui com soberbias... Bata a outra porta, se quiser: comigo não se arranjará! Ah! eu logo vi que semelhante educação havia de dar nisto mesmo!

Entretanto Teobaldo sofria e sofria muito. Só quem já atravessou uma boa quadra de necessidade, quando se tem o estômago mal confortado e o coração cheio de orgulho, poderá julgar do desgosto profundo e do tédio homicida que o acompanhavam.

Maldita educação! Maldito temperamento! Compreender o seu estado e não poder reagir contra ele; sentir escorregar-se para o abismo e não conseguir suster a queda; haverá maior desgraça e mais dolorosa tortura?

A surda aflição que lhe punha no espírito a sua falta de recursos, a força de reproduzir-se, havia já se convertido em estado patológico, numa espécie de enfermidade nervosa, que o trazia sempre desinquieto e lhe dera o hábito de levantar de vez em quando o canto do lábio superior com um certo trejeito de impaciência.

Orgulhoso como era, a ninguém, a nenhum amigo, exceção feita do Coruja, confessava as suas necessidades e este fato ainda mais as agravava.

E quando em tais ocasiões lhe pediam dinheiro emprestado? Oh! não se pode imaginar que suplício para Teobaldo!

Principiava por lhe faltar a coragem de confessar que não o tinha; e, se o do pedido insistia, começava ele a arranjar pretextos, a remanchear, a prometer para daí a pouco, a mentir, como um caloteiro que deseja engodar um credor impertinente.

E, se o sujeito não desistia, Teobaldo dizia-lhe que esperasse um instante e corria a empenhar o relógio, a arranjar dinheiro fosse lá como fosse, contanto que não tivesse de confessar a sua miséria a outro necessitado.

Estes sacrifícios eram tanto mais rigorosamente cumpridos, quanto menos seu amigo era o sujeito que lhe fazia o pedido; não representavam desejo de servir, mas pura e simples manifestação de vaidade.

Quando, porém, o pedinchão lhe era de todo desconhecido, Teobaldo preferia passar por mau e respondia-lhe com a lógica de um sovina, e aos mendigos negava a esmola rindo, fingindo não acreditar nas lágrimas de fome que muita vez lhes saltavam dos olhos.